sexta-feira, 6 de novembro de 2009

A Linguagem e a Morte: um Seminário sobre o Lugar da Negatividade (Giorgio Agamben)


O homem figura como o mortal e o falante, mas como interrogar o homem livre, mantendo-o livre ao mesmo tempo da morte e da linguagem? A faculdade da morte e da linguagem pode permanecer impensada? A partir daí percebe-se que há um lugar da negatividade e o nexo entre a morte e a linguagem abrem a sua morada fundada na negatividade. Ressalta-se que a voz e a gramática são estruturas da negatividade, assim como a ética e a lógica são inseparáveis e repousam no único fundamento do negativo. O fundamento é compreendido no sentido de ser aquilo que vai ao fundo: o ser é o in-fundado, como fundamento negativo. O advento do niilismo desvenda-se quando a metafísica cai na ética, num declínio reconhecido como o advento do fundamento negativo: ‘morada habitual do homem’.

É notório o modo pelo qual, em um ponto crucial de Sein und Zeit (Ser e Tempo), Heidegger situa a relação do Dasein com a sua morte. O Dasein é um ser-para-o-fim, para a morte e sempre em relação com ela: experiência da morte como certa antecipação de sua possibilidade. Como possibilidade a ‘antecipação da morte’ é testemunhada na sua experiência da consciência e da culpa. O caráter negativo do apelo (Ruff) da consciência não diz nada e fala em silêncio. Assim, desvelar a culpa neste ‘lugar silencioso’ revela uma negatividade própria ao Dasein. Afinal, no culpado está implícito caráter do Não (Nicht). A idéia formal existencial do ‘culpado’ determina-se por ser-fundamento, para um ser que se determinou por meio de um Não, ou seja, ser de uma negatividade. A negatividade (Nichtigkeit) não significa de modo algum não estar presente ou não consistir, mas significa um Não que constitui este ser do Dasein, o seu ser-lançado. O Dasein é determinado como um poder ser, que pertence a si mesmo, embora não como se tivesse dado a si mesmo a própria posse. Sendo fundamento, ou seja, existindo como lançado, o Dasein fica constantemente atrás de suas próprias possibilidades. O cuidado – o ser do Dasein – significa como projeto lançado: o (negativo) ser-fundamentado de uma negatividade. Será a partir desta experiência de uma negatividade que se revela constitutiva do Dasein, na experiência da morte, como sua possibilidade mais próxima, que Heidegger passa a se interrogar sobre o problema da origem ontológica (ontologische Ursprung) da negatividade. Logo, Dasein significa ser-o-Da. Aceitar a tradução atualmente difusa de Dasein como Ser-aí, permite-nos então entender esta expressão como ‘ser-o-aí’. Se ser o próprio Da (o próprio aí) é o que caracteriza o Dasein (o Ser-aí), isto significa que, então,  justamente no ponto em que a possibilidade de ser o Da [de estar em casa no próprio lugar] é assumida, através da experiência da morte, da maneira mais autêntica, o Da se revela como o lugar a partir do qual ameaça uma negatividade radical. Portanto, a negatividade provém, ao Dasein, de seu próprio Da. Mas, perguntemo-nos agora, existe, acaso, uma analogia entre a experiência da morte que, em Sein und Zeit, revela ao Ser-aí a possibilidade autêntica de ser o seu aí, o seu aqui, e a experiência do ‘apreender o Isto’ que, no início da Fenomenologia, garante que o discurso hegeliano comece do nada?

O ‘mistério eleusiano’, que apareceu em uma poesia, intitulada Elêusis, que o jovem Hegel dedicou, em agosto de 1796, ao amigo Hölderling, definindo que todo mistério tem por objeto um indizível (des unaussprechlichen Gefühles Tiefe). A profundidade deste ‘indizível sentimental’ em vão poderia ser buscada em palavras e entre ‘ressequidos signos’. É interessante observar que um mistério eleusiano aparece uma segunda vez na obra de Hegel, precisamente no início daquela Fenomenologia do Espírito que constitui a primeira expressão acabada do seu pensamento, no seu primeiro capítulo intituado: A certeza sensível, ou o Isto e o querer-dizer (Die sinnliche Gewissheit oder das Diese und das Meinen). O mistério eleusiano aparece na Fenomenologia, mas Hegel tem em mira uma liquidação da certeza sensível. Esta liquidação é conduzida mediante uma análise do Isto (das Diese) e do indicar. Vai ser a ela mesma, a certeza sensível, que se deve perguntar: o que é o Isto? Se o tomamos na dupla forma do seu ser, como o Agora e o Aqui. O Agora é um ter-sido (gewesenes), e esta é a sua verdade; ele não possui verdade de ser. Contudo, é verdadeiro isto, que ele foi. Mas aquilo que foi, não é, de fato, um ser; ele não é, e era com o ser que estávamos lidando. Logo, mostrar algo, querer captar o Isto na indicação significa apenas ter a experiência de que a certeza sensível é, na verdade, um processo dialético de negação e mediação; que, portanto, a ‘consciência natural’, a qual se desejaria colocar no início como o absoluto, já é, verdadeiramente, sempre uma ‘história’. Acontece que a coisa sensível que pertence à consciência e se quer-dizer (Meinung, opinião, ponto-de-vista, ‘querer dizer’) é inacessível à linguagem. Aquilo que é indizível, para a linguagem, não é nada mais que o querer-dizer, a Meinung que permanece não-dita necessariamente em todo dizer, refere-se a esse não-dito, que é um negativo e um universal.

O iniciado aprende aqui a não dizer aquilo que ‘quer-dizer’, pois a linguagem conserva o indizível dizendo-o, colhendo-o na sua negatividade. Se a linguagem capturou em si o poder do silêncio é porque ela conserva o indizível nas suas profundezas, o que poderia ser dito ineffabile fatur, isto é, o discurso mostra o inefável como é: um nada, nichtigkeit. O sistema hegeliano parte de um ponto duplo: a um só tempo, ponto de partida e ponto de chegada. Apreende-se o Isto se temos o significado deste isto, que é um não-isto que ele encerra, logo, uma negatividade essencial. De um lado, o mistério eleusiano tem como conteúdo a experiência de um nichtigkeit (um nada), de outro lado, o problema da indicação e do Isto resulta evidentemente do surgimento em um ponto decisivo da história da metafísica. O Isto significa indicação ou a essência segundo o sujeito, assim Hegel afirma que o limite da linguagem cai sempre no interior da linguagem, que está desde sempre contido nela como negativo. Inicialmente o indizível é a coisa mais concreta, imediata, genérica e universal, mas é necessariamente o gênero supremo, além do qual não é possível definição. Trata-se da cisão aristotélica que se constitui a partir do núcleo originário de uma fratura, no plano da linguagem, entre mostrar e dizer, indicação e significação, que atravessa a história da metafísica e sem a qual o próprio problema ontológico permanece informulável.

Alguns gramáticos antigos haviam atribuído a origem da gramática a Platão e a Aristóteles, com suas categorias gramaticais e categorias lógicas, reflexão gramatical e reflexão lógica, que se implicam mutuamente e são inseparáveis. Se, para Aristóteles, o nome faz parte do discurso que correspondia às categorias da substância e da qualidade, o pronome significa substantiam sine qualitate, pura essência em si, antes de qualquer determinação qualitativa. A dimensão de significado do pronome vem a coincidir com aquela esfera do puro ser que a lógica e a teologia medieval identificavam como dimensão de significado dos assim denominados transcendentia: ens, unum, aliquid, bonum, verum. Estes termos eram ditos ‘transcendentes’ porque não têm acima de si nenhum gênero no qual possam ser contidos e a partir do qual possam ser definidos. O estatuto de pronome transcendentia é, pois, atribuído ao objeto na sua universalidade, portanto, o pronome indica uma essência indeterminada, um puro ser, determinados pelos atos de efetuação que são a demonstratio e a relatio. O puro ser, a substantia indeterminada que ele significa e que é em si insignificável e indefinível, mas que se torna significável e definível por meio de um ato de indicação. Se os pronomes são signos vazios que se tornam plenos quando um locutor os assume numa instância de discurso, então os pronomes têm por objetivo que operar a conversão da linguagem em discurso e permitir a passagem da língua à fala.

O pensamento medieval tomou consciência da problemática desta passagem entre significar e mostrar que tem lugar no pronome, mas não a conseguiu explicar. O entrelaçamento no pensamento medieval entre reflexão teológica e reflexão gramatical é muito cerrado, de tal modo que o Deus dos teólogos é o mesmo Deus dos gramáticos. Primeiramente ressalta-se que o nome decai de seu significado e não significa mais nada, transformando-se em pronome, mas se o pronome, por sua vez, é predicado de Deus, ‘cai da indicação’. Segue-se que o nome é formado por um pronome e pelo verbo ser, que é pensado como o nome ‘absoluto’ de Deus. Portanto, o que aqui é pensado como suprema experiência mística do ser e como nome perfeito de Deus é a experiência de significado do próprio grámma, da letra como negação da voz: ‘que se escreve, mas não se lê’. Por sua vez, o nascimento da moderna ciência da linguagem situou-se no próprio desenvolvimento da filosofia moderna que, de Descartes a Kant e até Husserl, não deixou de ser, em boa parte, uma reflexão sobre o estatuto do pronome Eu. De todo modo, tanto para Hegel quanto para Heidegger, a negatividade entra no homem porque o homem tem por ser este ter-lugar, quer colher o evento da linguagem, apreendido, em certa medida, a partir, respectivamente, do Dasein, ‘ser-o-aí’, e no das Diese nehmen, apreender o Isto. Percebe-se mais claramente entre os poetas do que entre os linguistas, que o eu [ou o me/mim] é a palavra associada à voz: aquele que enuncia, o locutor é, antes da mais nada, uma voz, e o problema da díxis é o problema da voz e da sua relação com a linguagem. Este é, pois, o problema.

A Voz situa-se, em relação ao estilo vocal, numa dimensão diversa e mais original, a voz constitui a dimensão ontológica fundamental, ou seja, a dimensão do significado da voz, mas a voz como pura intenção de significar (puro querer-dizer), quando uma coisa se dá à compreensão sem que se produza um evento determinado de significado. Vox, como querer-dizer ou intenção de significar sem significado, decai numa experiência amorosa como vontade de saber; experiência que mostra que a vox na sua pureza originária, como querer-dizer é uma palavra morta. Demarca-se certo flatus vocis, a voz como intenção de significar e como ‘pura indicação’(setentia vacum), significado da voz em si, antes de toda significação. Que o ser (substantiae universale) seja um flatus vocis não significa que ele seja um nada, afinal a dimensão do significado do ser coincide com aquela experiência da voz como pura indicação e puro querer-dizer. Dado que essa Voz (escrita em letra maiúscula para distinguir-se da voz como mero som) tem o estatuto de um não-mais (voz) e de um não-ainda (significado), ela constitui uma dimensão negativa. A linguagem tem um lugar no tempo e na voz, mostrando a instância do discurso, a Voz abre simultaneamente o ser e o tempo. Tanto em Hegel como em Heidegger reencontram-se um pensamento da Voz como articulação negativa originária.

Hegel seguiu o ‘despedaçar-se’ do espírito e sua ‘ocultação’ na natureza. O nome existe como linguagem que não se fixa, igualmente cessa, de imediato, aquilo que é. O despertar do espírito é o reino dos nomes. A linguagem é a voz da consciência, pois todo som tem um significado, nela tem um nome, idealidade de uma coisa existente: o seu imediato não-existir. Para Hegel a articulação se apresenta como processo de diferenciação, interrupção e conservação da voz animal: a voz é ouvido ativo – ele escreve –, puro si, que se põe como universal, todo animal tem na morte violenta uma voz, exprime a si mesmo como si mesmo suprimido. O sistema hegeliano é considerado em seu caráter ‘antripogenético’, no sentido que mantém o contato com a morte.

A dimensão negativa está presente também na linguística moderna, no conceito de fonema, deste ente puramente negativo e insignificante, o qual, contudo, é precisamente aquilo que abre e torna possível a significação e o discurso. Como ‘som da língua’, Jakobson está singularmente próximo da ideia heideggeriana de uma ‘Voz sem som’ e de um ‘som do silêncio’ (Sigé, pensamento silencioso). A fonologia, que se define como a ciência dos sons da língua, apresenta-se como um par análogo da ontologia, que, com base nas considerações precedentes, podemos definir como ‘ciência da voz suprimida, isto é, da Voz’. Existe no pensamento de Heidegger algo como um ‘pensamento da Voz’, mas cuja relação essencial entre linguagem e morte tem, para a metafísica, o seu lugar na Voz. Ter experiência da morte como morte significa efetivamente fazer experiência da supressão da voz e do surgimento, em seu lugar, de outra Voz, que constitui o originário fundamento negativo da palavra humana. A Voz, portanto, não diz nada, não quer-dizer nenhuma proposção significante: ela indica e quer-dizer o puro ter lugar da linguagem, é, pois, uma dimensão puramente lógica. A Voz é a dimensão ética originária, na qual o homem pronuncia seu sim à linguagem e consente que ela tenha lugar.

Morada habitual e hábito, ou seja, o êthos do homem, que se encontra para a filosofia, já sempre cindido e ameaçado por um negativo. Um dos mais antigos testemunhos no qual a filosofia se põe a pensar o êthos caracteriza, deste modo, a morada habitual do homem. O êthos, a morada habitual é, para o homem, o lugar da cisão – aquilo que ele jamais pode apreender sem receber daquilo uma laceração e uma fissura –, o lugar onde jamais pode estar verdadeiramente desde o início, mas aonde pode somente no fim regressar. É possível que o ser não esteja à altura do simples mistério do ter do homem, da sua habitação assim como do seu hábito? Estar na linguagem sem ser aí chamado por nenhuma Voz, simplesmente morrer sem ser chamado pela morte é, talvez, a experiência mais abissal; mas esta é precisamente, para o homem, também a experiência mais habitual, o seu êthos, a sua morada que, na história da metafísica, já se apresenta sempre demonicamente cindida em vivente e linguagem, natureza e cultura, ética e lógica e é, por isso, atingível, apenas na articulação negativa de uma Voz. Pensa-se, neste seminário, a Voz a partir de seu cancelamento, ou melhor, pensa-se a Voz como jamais sida, no seu lugar, morada sem vontade e sem Voz, esta morada é o aqui resta a pensar. Trata-se, em última instância, de um tal ‘fazer interdito’, que fornece à sociedade e à sua infundada legislação a ficção de um início: o que é excluído da comunidade é, na realidade, aquilo sobre o qual se funda a inteira vida da comunidade e é assumido por ela como um passado imemorável e, todavia, memorável.

O homem é o animal que possui a linguagem, enquanto o in-fundado tem fundamento na própria violência, no próprio fazer: facere sacrum (sacrifício, ‘fazer interdito’, afetado pela sacralidade, sacro, acessível apenas a certas pessoas e de acordo com regras determinadas). Noção ambígua esta de sacro, que significa tanto a lei quanto designa quem a viola. Que o sacrifício seja um assassínio, isso nós bem conhecemos, que não seja casual e que por isso mesmo seja violento: violência esta que em si não explica nada, todavia, aliás, por sua vez, essa mesma violência necessita de explicação. A inaturalidade da violência humana é uma produção histórica do homem e é implícita na própria concepção da relação entre natureza e cultura, entre vivente e logos na qual o homem funda a própria humanidade. Não é próprio ao homem ser um indizível, que permanece não dito em toda praxis e em toda palavra humana: ele é antes a própria praxis social e a própria palavra humana, tornadas transparentes a si mesmas. Mas a ‘transmissão indizível’ continua a dominar a tradição da filosofia: em Hegel, como aquele nada, que é preciso abandonar à violência da história e da linguagem para dele extrair a aparência do início e do imediato; em Heidegger, como o sem nome que, permanecendo não dito em toda palavra e em toda transmissão, destina o homem à tradição e à linguagem. É certo que em ambos os casos, o pensamento se propõe a absolução do homem da violência do fundamento. Assim como o fundamento da violência é a violência do fundamento.

O Ser e o Nada: Ensaio de Ontologia Fenomenológica (Jean-Paul Sartre)


O pensamento moderno realizou progresso considerável ao reduzir o existente à ‘série de aparições’ que o manifesta. Visava-se com isso suprimir certo número de dualismos, um deles, talvez o mais importante e primeiro tenha sido esse dualismo que no existente opõe o interior e o exterior. As aparições que manifestam o existente equivalem-se entre si, remete-se a todas as outras aparições. As aparições não são exteriores nem interiores: as aparências, em geral, apenas se remetem às aparências. Trata-se, sobretudo de compreender que a aparência revela a essência, afinal o ser de um existente é o que ele aparenta, ou seja, destaca-se o fenômeno como ‘relativo-absoluto’. Então, a aparência revela a essência, eis a lei que preside as sucessões de suas aparições, é a razão da ‘série’, isto é, a essência como razão da série é apenas o liame das aparições. O ser fenomênico se manifesta, portanto, ao manifestar tanto a sua essência quanto a sua aparência em uma série bem interligada. Neste sentido, a teoria dos fenômenos substitui a realidade da coisa pela objetividade do fenômeno, que se mostra transcendente, mas o sujeito transcende a aparição rumo à série total a que faz parte. Se a essência está apartada da aparência individual que a manifesta, assim compreende-se o ‘ser da aparição’ ou a ‘essência da aparição’ como um ‘aparecer’ que não se opõe a nenhum ser.

Enquanto a aparição possui o seu ser próprio – o ‘ser da aparição’ –, o ‘fenômeno do ser’ é o que se manifesta, o ser manifesta a todos de algum modo, dele se fala e temos compreensão, por isso deve haver um fenômeno de ser. A essência é o sentido do objeto, a razão de aparições que o revelam, mas o objeto não possui ser. O existente é o fenômeno, que se designa a si como conjunto organizado de qualidades. De modo que o ser é simplesmente a condição de todo desvelar, de outro modo, a aparição necessita de um ser com base no qual possa desvelar. Se há algo que possa medir a aparição, isso será o fato de que ela aparece, limitando a realidade ao fenômeno, então, diz-se que o fenômeno é tal como aparece.

A lei do sujeito cognoscível é ser-consciente. A consciência não é um modo particular de conhecimento, mas se define pela dimensão de ser transfenomenal do sujeito. Em outras palavras, toda consciência é consciência de algo, ou melhor, não há consciência que não seja posicionamento de um objeto transcendente, em suma, a consciência não tem ‘conteúdo’. Desta forma, toda consciência é posicional, pois transcende para alcançar um objeto. Se toda minha intenção está voltada para o exterior, então toda consciência cognoscente só pode ser conhecimento de seu objeto. Uma condição fundamental para que a consciência seja conhecimento de seu objeto é que ela seja ‘consciência de si’, ou seja, como sendo este próprio conhecimento. Primeiramente, uma consciência dirige-se para algo que não é ela, ou seja, trata-se de uma ‘consciência refletida’, assim, ela se transcenderia e se esgotaria visando seu objeto, como consciência posicional do mundo, mas este objeto não deixaria de ser uma consciência. Em seguida, compreende-se, pois porque ‘saber é ter consciência de saber’ ou ‘saber é saber que se sabe’.

Toda consciência de si não deve ser considerada como uma nova consciência, mas o único modo de existência possível para uma consciência de alguma coisa. Enfim, a consciência surge no ser, cria e sustenta sua essência (em uma ordenação sintética de suas possibilidades). A consciência é plenitude de existência e determinação de si por si, de tal sorte que a consciência existe por si. A consciência é, portanto, pura aparência, só existe na medida em que aparece: um vazio total (já que o mundo inteiro se encontra fora dela). A consciência pode ser considerada o absoluto (ou seja, ‘o sujeito da mais concreta das experiências), por causa dessa identidade que nela existe entre aparência e existência.

A subjetividade não deixa de ser uma espécie de imanência de si a si. Para tanto, capturamos um ser que tanto nos escapa ao conhecimento quanto o fundamenta, mas é o pensamento que é capturado enquanto estrutura do ser. De um lado, o conhecido não poderá ser atribuído pelo conhecimento, de outro, torna-se preciso que lhe seja reconhecido um ser: este ser é o percepi. A relatividade e a passividade caracterizam o modo de ser do percepi. Ressalta-se que a passividade é um fenômeno duplamente relativo: relativo à atividade daquele que atua e à existência daquele que padece. Em outros termos, a passividade não se refere a um ser existente passivo, mas à relação de um ser a outro ser. Neste aspecto, a passividade e a percepção são puras atividades, espontaneidade que nada pode capturá-las. Por ser espontaneidade pura, nada pode capturar a passividade, com efeito, a consciência não pode agir sobre nada. Assim, exige-se que a consciência conserve seu nada de ser (total absoluto) ao mesmo tempo depara-se com a relação entre a consciência e os existentes independentes dela, em uma palavra, hylé: fluxo puro do vivido e matéria das sínteses passivas. O ser percebido está diante da consciência, mas existe apartado dela, de sua própria existência. A relatividade e a passividade referem-se às maneiras de ser, não se aplicam ao ser.

Toda consciência é consciência de alguma coisa em dois sentidos, por um lado, como constitutiva do ser do objeto, por outro, com relação a um ser transcendente. A consciência é uma subjetividade real e a impressão, uma plenitude subjetiva. O ser do fenômeno depende da consciência, contanto que o objeto se distinga da consciência, não por sua presença, mas por sua ausência, seu nada. Se o ser pertence à consciência, então o objeto é um não-ser. Portanto, o ser do objeto é um puro não-ser, o que se define como falta, aquilo que se esconde. As coisas se dão por aparições, cada uma remete a outras, cada uma é plenitude de ser uma presença. O objetivo não sai do subjetivo, nem o transcendente da imanência, tampouco o ser do não-ser. A transcendência é uma estrutura constitutiva da consciência, que nasce com o objetivo de um ser que ela não é. A subjetividade é, pois, a consciência de ter consciência.

A consciência deve ser produzida como revelação – revelada – de um ser que ela não é e que se dá como existente quando ela o revela. A consciência é um ser cuja essência implica a existência, ou seja, a aparência exige ser. Aplica-se à consciência a formulação que Heidegger reservou ao Dasein: um ser para o qual, em seu próprio ser, está em questão o seu ser. Complementa-se essa proposição do seguinte modo: a consciência é um ser para o qual, em seu próprio ser, está em questão o seu ser enquanto este implica outro ser que não si mesmo. O ser é si-mesmo. Em primeiro lugar, porque todo o juízo sobre o ser já implica o ser. Em segundo lugar, pois o fenômeno de ser revela-se à consciência. Em terceiro lugar, por isso exige-se uma elucidação a partir da revelação-revelado. Por fim, desvelam-se duas regiões do ser, o ser do cogito pré-reflexivo e o ser do fenômeno. Trata-se de uma concepção realista das relações entre o fenômeno e a consciência.

O homem é ativo e os meios que emprega são passivos. O ser não é ativo, o ser é si, não é relação a si. O ser é em si, é este si mesmo, não remete a si. O ser pode estar além do si, porque está pleno de si. O ser é o que é. O princípio contingente do ser-Em-si é ser o que se é –, o que se traduz como opacidade do ser-Em-si. O Em-si pode ser designado como uma síntese ‘de si consigo mesmo’. Se o ser está isolado em seu ser, é porque é o que é por si mesmo: desconhece a alteridade, não se coloca como outro. O ser-Em-si é. Ordenado de uma seguinte forma tem-se: O ser é. O ser é em si. O ser é o que é. De modo amplo, partiu-se das aparições para se estabelecer dois tipos de seres: o Em-si e o Para-si, ainda sob informações superficiais e por demais incompletas.

O ‘concreto’ é uma totalidade capaz de existência por si mesma, ou melhor, uma coisa espaço-temporal com todas as suas determinações. Refere-se a uma totalidade da qual consciência e fenômeno são apenas momentos. A relação entre as regiões do ser nasce de uma fonte primitiva, parte da estrutura dos seres. Interroga-se, pois a totalidade do homem no mundo, ‘ser-no-mundo’, a cada uma das condutas humanas como sendo condutas do homem no mundo, revelando o homem, o mundo e as relações que os une. Uma conduta privilegiada é a que se traduz sobre o homem que sou (apreendido num momento e no mundo), frente ao ser em atitude interrogativa. Toda interrogação presume um ser que interroga e outro interrogado. Decerto, interrogamos o ser interrogado sobre alguma coisa, mas interrogamos o ser principalmente sobre suas ‘maneiras de ser’ ou sobre seu ser. Para qualquer investigador existe a possibilidade de uma resposta negativa, obviamente não se sabe se a resposta vai ser negativa ou positiva. Parte-se, enfim, em busca do ser, do seu núcleo, através da série de nossas indagações. A possibilidade permanente do não-ser, fora de nós e em nós, condiciona nossas perguntas sobre o ser. O não-ser é o novo componente do real. A negação é uma qualidade do juízo, deste modo, o ‘nada’ tem sua origem nos juízos negativos.

O ser-Em-si interrogado sobre a negação remeteria ao juízo, enquanto o juízo (plena positividade psíquica) remeteria ao ser. A negação é o resultado por operações psíquicas concretas e está sustentada por elas. A negação é incapaz de existir por si, ela reside no seu percepi. A negação acha-se na origem do nada, mas o nada é uma estrutura real, que origina e fundamenta a negação. Ressalta-se a negação sobre seu fundo primitivo de uma relação entre o homem e o mundo. Igualmente, destaca-se uma revelação do ser que se possa emitir juízo. Se eu espero uma revelação ao ser é porque estou preparado para o eventual não-ser. A relação ‘não está’, ela é pensadamas é o juízo da negação que está sustentado pelo não-ser. As indagações são feitas por um homem a outros homens, nota-se que muitas condutas trazem sua compreensão imediata do não-ser sobre o fundo do ser. A destruição, por exemplo, afinal o homem é o único ser pelo qual pode realizar uma destruição. Para a destruição é necessário uma relação entre o homem e o ser (uma transcendência). Assim, a nadificação é um recorte limitativo de um ser no ser, observa-se com a seguinte proposição: o ser considerado é isso e, fora disso, nada. A negação é recusa de existência, por meio dela um ser é colocado e depois relegado ao nada. O ser é descoberto como frágil, sempre além de toda destruição possível. O exame da ‘conduta da destruição’ nos leva, portanto, aos mesmos resultados da ‘conduta interrogativa’.

A conduta da interrogação se converte em simples apresentação, oscilando entre o ser e o nada. Na pergunta interrogamos um ser sobre o seu ser ou modo de ser, assim fica sempre em aberto a revelação do nada como possível. Desvela-se a interrogação e a sua negatividade, que é introduzida no mundo. Reconhece-se um processo humano em que o homem torna-se um ser que faz surgir o nada no mundo. Observa-se um paralelismo entre as condutas humanas frente ao ser e as condutas que o homem tem frente ao nada. Hegel estudou na Lógica as relações entre o ser e o não-ser, em que o concreto é o existente, com sua essência. Assim, para Hegel, o ser se reduz a uma significação do existente, que está envolvido pela essência (seu fundamento e origem), bem como o ser é condição de todas as estruturas e momentos (fundamento em que se manifestam os caracteres do fenômeno). Nesta perspectiva o ‘ser puro’ é determinado pelo entendimento, que só encontra no ser aquilo que o ser é. Há forças recíprocas de expulsão que ser e não-ser exercem um sobre o outro, onde o real é a tensão resultante dessas forças antagônicas. Entrementes, Hegel observa que o ser e o nada são dois contrários – simples modos de pensar; então, Hegel faz passar o ser ao nada, por introduzir a negação na definição de ser: o nada supõe o ser para negá-lo.

Indagar a legitimidade da interrogação sobre o ser foi um dos problemas que se propôs Heidegger. Há numerosas atitudes da ‘realidade humana’ que implicam uma compreensão do nada. É próprio do Dasein encontrar-se frente ao nada. O Dasein está fora de si, no mundo, e é um ser das lonjuras, pois ele não é em si e nem lhe está próximo. A filosofia de Heidegger é compreendida, nessa perspectiva, sob o uso de termos positivos, que mascaram negações implícitas para se descrever o Dasein. Aqui tanto a negação se fundamenta no nada como o nada fundamenta a negação, que compreende o ‘não’ em sua estrutura. Assim, o nada é a origem do juízo negativo, porque é negação e fundamenta a negação como ato e como ser. Então, não poderia ser de outro modo, a realidade humana se apresenta como emergência do ser no não-ser – o mundo está suspenso no nada (transcendência do mundo): o Dasein capta, pois a contingência do mundo. Questiona-se tanto em Hegel como em Heidegger uma atividade negadora que se apresenta sem a preocupação de se fundamentar num ser negativo.

Afirma-se que as relações entre o homem e o mundo são indicadas pela negatividade. Que a aparição do homem a um meio [o meio do ser] faz-se descobrir um mundo. Em seguida, que o momento essencial dessa aparição é a negação, portanto o homem é o ser pelo qual o nada vem ao mundo. Busca-se definir o homem condicionado à aparição do nada, mas ser que nos aparece como liberdade. Trata-se de uma liberdade em conexão com o nada, na medida em que o condiciona em sua aparição. A condição para a realidade humana é negar o mundo e ao mesmo tempo é carregar em si o nada como quem separa seu presente e seu passado. A liberdade pode ser definida a partir do momento em que o ser humano passa a jogar o seu passado fora e, com efeito, quando passa a segregar seu próprio nada? Procura-se não só repelir com todas as forças a situação ameaçadora, mas projetar diante de si condutas futuras destinadas a afastar as ameaças do mundo: essas condutas são as nossas possibilidades? Angustiamo-nos porque nossas condutas são apenas possíveis, definidas por um conjunto de motivos que virtualmente repeleriam uma dada situação, mas de um modo ou de outro identificamos esses motivos como ineficazes. Se pudéssemos interrogar temporariamente essa obra, a partir de poucas frases, arriscaríamos: a consciência específica da liberdade é a angústia? Ou nós é que buscamos estabelecer a angústia como consciência de liberdade?

domingo, 1 de novembro de 2009

A Genealogia da Moral (Friedrich Nietzsche)


Há um aspecto no homem que lhe fatiga; essa fadiga é o niilismo: o homem fatiga-se do homem. O homem, animal mais valoroso e enfermiço, não repele a dor, antes a procura, contanto que lhe digam o porquê. Assim o ideal ascético apresenta sua finalidade e explica a dor ao fazer uma interpretação que traz uma dor nova e mais profunda, mais íntima, ao mesmo tempo diz que era o castigo de uma falta. No entanto, o homem já não era mais uma folha levada ao vento, fosse o que fosse: ‘estava salva a vontade’. A natureza desta direção asceta que se segue através do ódio a tudo quanto era humano (aos sentidos, ao desejo, animal, material, ao esforço), tudo isso significa uma ‘vontade de aniquilação’. O homem ‘livre’, senhor de vasta e indomável vontade, acha em sua posse uma ‘tábua de valores’. Para julgar, fundado em si mesmo, respeita ou despreza: venera os seus semelhantes (fortes, soberanos) e está disposto a dar um pontapé nos miseráveis: o homem soberano chama-se ‘consciência’. Onde quer que exista a justiça se vê um poder forte em frente de poderes fracos, que procura por um termo aos insensatos furores do ressentimento, não só arrancando-lhe com mãos vingadoras, mas declarando guerra aos inimigos da paz, da ordem e inventando compromissos que impõem a força de lei a certas equivalências dos prejuízos – a todo um sistema de obrigações morais. Por mais estranho que hoje isto possa parecer: ‘nada custou mais caro do que esta migalha de razão e de liberdade, que hoje nos envaidece’. Toda essa maquinação infernal chamada reflexão: a razão, a gravidade, o domínio das paixões... e todos os privilégios pomposos do homem, como custaram caro! Quanto sangue, quanta desonra se encontra no fundo de todas essas ‘coisas boas’! Cada passo que o homem deu sobre a terra custou-lhe muitos suplícios intelectuais e corporais – tudo pode ter passado adiante e atravessado todo o movimento, mas em troca teve-se inúmeros mártires.

Todas as raças nobres deixaram vestígios de barbárie à sua passagem. Esta audácia das raças nobres, audácia louca, absurda, espontânea; a sua indiferença e o seu desprezo do bem-estar, da vida; a alegria terrível e profunda em toda a destruição, os prazeres da vitória e da crueldade, tudo isso, na imaginação das vítimas se resumia na ideia de ‘bárbaro’, ‘maligno’, ‘vândalo’. Por isso, no fundo destas raças aristocráticas é impossível não reconhecer a fera – o bruto de louros cabelos em busca de presa – este fundo de bestialidade mostra-se de quando em quando: a aristocracia romana, árabe, germânica, japonesa ou os heróis homéricos, vikings escandinavos, todos são iguais a esse respeito. Por outro lado, qual é o sentido da palavra ‘bom’, segundo a etimologia, nas diversas línguas? Através das palavras e raízes que significam ‘bom’, transparece o matiz principal pelo qual os ‘nobres’ se tinham por homens de uma classe superior. Em toda a parte, a ideia de ‘distinção’ e de ‘nobreza’ é, no sentido de ordem social, a idéia-mãe donde nasce e se desenvolve a concepção de ‘nobreza’ como privilegiada quanto à alma. Este desenvolvimento foi paralelo à transformação das noções ‘vulgar’, ‘plebeu, ‘baixo’ na noção de ‘mau’. Um exemplo dessa metamorfose é a palavra alemã schlecht [mau] que é idêntica à palavra schlicht [simples], em cuja origem designava o homem simples, o homem plebeu. O latim malus pode designar o homem plebeu de cor morena e de cabelos pretos, o autóctone pré-ariano do solo itálico que se distinguia muito, pela sua cor, da raça dominadora e conquistadora dos loiros arianos. Ao menos o gaélico subministra-se indício semelhante: a palavra ‘fin’, por exemplo, ‘Fin gal’, é um termo distintivo da nobreza e que, em última análise, significa ‘o bom’, ‘o nobre’, ‘o puro’, que significava antigamente ‘o de cabelos loiros’ em oposição ao autônomo de cabelos negros. Crê-se poder interpretar o latim bonus por ‘o guerreiro’: levando-se bonus à sua forma antiga de duonus [comparado a bellum duellumduenlum, donde parece conservar duonus]. Com efeito, bonus seria o homem da disputa [duo], o guerreiro: eis o que constitui a bondade de um homem da Roma antiga. E a nossa palavra alemã gut [‘bom’] não significaria der Goettlich [‘o divino’], o homem de origem divina?

Os dois valores opostos ‘bom e mau’, ‘bem e mal’, mantiveram durante milhares de anos um combate largo e terrível e ainda que, há muito tempo que o segundo valor logrou vantagem, não faltam ainda hoje terrenos onde a luta continua com variado êxito. O símbolo desta luta: ‘Roma contra Judéia, Judéia contra Roma’. Roma via no judeu uma natureza oposta à sua: um antípoda monstruoso. Os romanos eram fortes e nobres, enquanto os judeus eram um povo levita e rancoroso por excelência. Qual dos povos venceu? Roma ou Judéia? Note-se que na mesma Roma e em metade do mundo ou em toda parte onde o homem está civilizado ou tende a sê-lo, a humanidade inclina-se diante de três judeus e uma judia: Jesus de Nazaré, Pedro, Paulo e Maria, mãe de Jesus. Este é um fato notável. Roma foi vencida. Jesus de Nazaré, encarnado de amor e ‘Salvador’, trouxe aos pobres, aos enfermos e aos pecadores a bem-aventurança e a vitória, não deixava de ser precisamente a sedução mais irresistível que havia de conduzir aos homens e adaptá-los aos valores judaicos. Que coisa mais sedutora não é este símbolo da ‘santa cruz’, esta crueldade louca de um Deus que se crucifixa ele mesmo ‘pela salvação’ da humanidade?

Tudo o que na Terra se fez contra os ‘nobres’ (poderosos, senhores, governantes) não se pode comparar com o que fizeram os ‘judeus’. Os judeus se vingaram dos seus dominadores por uma radical mudança dos valores morais, uma vingança essencialmente espiritual. Só um povo de sacerdotes podia obrar assim, com uma lógica formidável, atiraram por terra a aristocrática equação dos valores: bom, nobre, poderosos, amado por Deus. Com encarniçado ódio, os judeus afirmaram: ‘só os desgraçados são bons; os que sofrem e os enfermos, os necessitados, os pequenos são bons. Com os judeus começou a emancipação dos escravos da moral. Esclarece-se que o ‘mau’ do aristocrata e o ‘maligno’ do rancoroso apresentam um singular contraste: o primeiro é uma criação posterior, um acessório, complementar; o segundo é a ideia original, o começo – o ato por excelência na concepção de uma ‘moral dos escravos’. O juízo da aristocracia segue-se na guerra, nas aventuras, na caça, na dança, nos jogos e em exercícios físicos que implicam uma ação robusta, livre e alegre; enquanto os sacerdotes são inimigos mais malignos, porque são mais impotentes, o que faz crer um ódio monstruoso, sinistro, intelectual e venenoso. De um lado, toda amoral aristocrática nasce de uma triunfante afirmação de si mesma, a ‘moral dos escravos’ opõe um ‘não’ a tudo o que não é seu – ‘não’ que por si só é o seu ato criador. Essa mudança total está sob o ponto de vista do ódio: a moral dos escravos necessitou sempre de estimulantes externos para entrar em ação; a sua ação é uma reação. A rebelião dos escravos na moral começou quando o ódio começou a produzir valores.

O homem designa-se a si mesmo como ser que estima valores, que aprecia e avalia por excelência: a compra e a venda, os seus corolários psicológicos são anteriores às origens de toda a organização social e o sentimento que nasceu da troca (do contrato, da dívida, do direito, da obrigação, da compensação) transportou-se logo para os complexos sociais mais primitivos ou mais grosseiros no mesmo tempo que o hábito de comparar uma força com a outra, de as medir e calcular. Fixar preços, estimar valores, imaginar equivalência, cambiar, tudo isto preocupa o pensamento primitivo que, em certo sentido, é o pensamento mesmo. Por meio das relações entre credor e devedor, pela primeira vez, a pessoa opôs-se à pessoa e mede-se com ela. Através dessa relação contratual entre credor e devedor, tão antiga quanto a de ‘sujeição moral’, todos foram levados às formas primitivas da compra e venda, do câmbio. Nos modernos, as relações da comunidade com seus membros são as de um credor com seus devedores. O culpado não é senão um violador do compromisso; falta à sua palavra para com a comunidade que lhes assegurava tantas regalias. O culpado é um devedor que não só não paga as suas dividas como também ataca o credor. O credor, por seu turno, humanizou-se conforme foi se enriquecendo; como no fim, sua riqueza mede-se pelo número de prejuízos que pode suportar – até se concebe uma sociedade com tal consciência do seu poderio, que se permita o luxo de deixar impunes os que a ofendem. Consiste, entretanto, um ‘princípio de equivalência’ que se descreve: em lugar de um benefício que compensasse diretamente o dano causado, concede-se ao credor certa satisfação e gozo à maneira de compensação e pensamento, a satisfação de exercer impunemente o seu poderio com respeito a um ser reduzido à impotência, o deleite de fazer o mal pelo gosto de o fazer, a alegria de tiranizar. Como pode a dor compensar as dívidas? O ‘fazer’ sofrer causava um prazer imenso à parte ofendida: fazer sofrer! Isto era uma verdadeira ‘festa’! Tanto mais grata quanto mais era o contraste entre a posição social do credor e do devedor. Ver sofrer, alegra; fazer sofrer, alegra mais ainda: há nisto uma antiga verdade ‘humana’ – sem crueldade não há gozo, o castigo é uma festa. O castigo tem a propriedade de despertar no culpado o ‘sentimento da falta’, ou seja, o verdadeiro instrumento desta reação psíquica que denomina ‘remorso’, ‘má consciência’. Então veio ao mundo, a maior e mais perigosa de todas as doenças: a ‘má consciência’ e o ‘homem doente de si mesmo’.

O sacerdote ascético dever ser o salvador predestinado, o pastor e defensor do rebanho doente, sua prestigiosa missão histórica. Eis o papel, a arte e a maestria do sacerdote ascético: a ‘dominação sobre os doentes’. É preciso que o sacerdote seja também doente, para se entender com eles, mas é preciso que seja forte, a fim de possuir a confiança dos doentes e ser para eles um amparo, um escudo, um deus, um tirano. Não resta dúvida que o homem seja o animal mais doente, mais incerto e mais inconsciente: é o animal doente por excelência, mas donde lhe veio isto? Grande experimentador de si próprio, o insaciável, que luta para reinar sobre os animais e a Natureza, sobre os deuses, o indomável e de futuro esterno; como o homem não haveria de estar exposto a doenças mais largas e terríveis? Quem não percebe por todos os lados uma atmosfera de um manicômio e de um hospital em todas as partes do mundo civilizado, europeizado. Os doentes são o maior perigo da humanidade e não os maus, as ‘feras de rapina’. O asceta apareceu, contudo em todos os tempos e em todas as classes sociais. A vida ascética é uma guerra intestina, um flagrante de contradição, converte-se em alegria e em triunfo toda dor íntima: o ideal ascético combateu sempre debaixo desta bandeira – no símbolo da agonia achou a sua luz mais pura, a sua salvação, a sua vitória definitiva. Em uma só palavra; o sacerdote ascético é um homem que muda a direção do ressentimento. Os meios que se empregam contra a dor são os que reduzem a vida à sua expressão menor possível: nada de vontade, nada de desejo, nada de paixão, nada de sangue; não comer sal, não amar, não odiar; não se perturbar, não se vingar; não se enriquecer, não trabalhar, mendigar; nada de mulheres, ou o menos possível; quanto ao intelecto – bestializar-se. Resultado em linguagem moral: aniquilamento do eu, santificação; e em termos fisiológicos: hipnotizado, hibernação, mínimo de assimilação compatível com a vida. Então para arrancar da consciência a dor, é necessária uma paixão e um pretexto para a excitar: esta não deixa de ser uma maneira própria do doente e quanto mais esteja oculta a verdadeira causa de seu mal. “Eu sofro, alguém tem culpa”. Assim discorrem todas as ovelhas. E então o pastor lhes responde: “É verdade, minha ovelha; alguém tem culpa; mas és tu mesma; os teus pecados são a causa do teu mal”. Isto é atrevido e soa até muito falso, mas obtém-se com isso um fim: ‘mudar a direção do ressentimento’. Tudo isto é ascetismo em alto grau... é niilismo. Nota-se no observador um olhar triste, duro, resoluto (‘olha para o longe’). Não vê mais do que neve, não há vida; as gralhas dizem: “E para quê?” Em vão! “Nada!” Nada cresce; talvez a metafísica russa de Tolstoi?