segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Sobre o Nomadismo: Vagabundagens Pós-Modernas (Michel Maffesoli)


A imagem de Hermes, o deus viajante, deus dos comerciantes e dos ladrões, paradigma da astúcia – hostil, imperceptível, e em perpétuo deslocamento, estes são fragmentos que figuram num pensamento arquetípico. Hermes e seu pé alado, para fugir quando não se satisfaz com a rotina. Atrativo e indício de uma fuga, Hermes leva a errância e toca de leve no chão, sem a ele se prender. Percebe-se, então, que o viajante testemunha um ‘mundo paralelo’, no qual o sentimento é vagabundo e a anomia tem força de lei. Trata-se do incômodo que afeta os sábios organizadores, cuja ambição é repelir o estranho e o imprevisível. Tal desconfiança é encontrada entre os romanos, pois seu medo do bárbaro vem do fato de que ele era nômade e apto ao movimento. O bárbaro perturba a quietude do sedentário e nada incomoda tanto um burocrata como a liberdade desses errantes – o que há é a fobia da mudança e daquilo que se move. Ressalta-se que a bacia do mediterrâneo foi um lugar excepcional de encontros de todos os gêneros e, no mesmo sentido, a Idade Média foi também um momento de circulação intensa. As Cruzadas tiveram motivações religiosas e sofreram grandes perdas militares, mas indicaram uma ânsia do ‘outro lugar’, percebe-se que o contato com outras civilizações fascinou parte da nobreza européia. De outro modo, na modernidade fez-se iluminar o espaço cercado do indivíduo, que se tornou inclusive a ‘territorialização’ moderna por excelência, sustentada pela ideologia individualista.

O indivíduo e sua família nuclear transformaram-se numa espécie de ‘prisão moral’, pelos quais a pessoa se fechava longamente, através da educação, da identidade, da profissão... A modernidade se caracteriza, portanto, por querer fazer tudo voltar a entrar na ordem, codificar e identificar, em suma, as massas deveriam ser domesticadas, assentadas no trabalho e na residência. Essa mesma domesticação marca a passagem do nomadismo para o sedentarismo – transição das comunidades para as comunas, destas para entidades administrativas maiores, até se chegar ao Estado nação. Acontece que o nomadismo é totalmente antitético em relação ao Estado moderno, mas o fechamento praticado durante a modernidade mostra sinais de fraqueza, dentre os seus vetores mais explícitos: hippies, vagabundos, poetas, jovens sem referências, turistas surpreendidos. Decerto, a ‘circulação’ recomeça, desordenada, e não deixa ninguém impune, nada parece poder represar seus fluxos, cujo movimento está em todas as cabeças e em todas as direções.

Nas cidades, os momentos e os lugares se oferecem totalmente vagos, em que o espírito e o corpo podem estar em vacância, onde a possibilidade de os seres que a habitam se traduz ao viverem a possibilidade de estar aqui e em outro lugar simultaneamente: o habitante da megalópole é, então, um nômade de gênero novo. Induz-se a uma ‘deriva psicogeográfica’, sob a qual as ruas lembram aberturas, que se desempenha a teatralidade social e predispõe a aventura, que nada parece poder frear. Os surrealistas e, mais tarde, os situacionistas da década de 1960 perceberam essa deriva urbana [psicogeografia]: a cidade como um terreno da aventura, um modo de experimentar todo tipo de vivência, suscitar encontros. A deriva urbana, em suma, explora um espaço determinado, confrontando com múltiplas estranhezas. Evidencia-se o nomadismo contemporâneo, portanto, quando a norma geral passou a dar lugar às especificidades ‘tribais’, cada um vivendo sua droga [alucinógeno, álcool], cultura, religião, música, esporte, etc. Torna-se necessário interrogar essas formas de trabalho ‘flexíveis’, o recrudescimento dos neo-artesanatos, o retorno à natureza, a multidão de práticas da dita New Age, assim por diante. O nomadismo contemporâneo é, enfim, um modo de relativizar o imperativo categórico da ‘disciplina’ e do ‘cercamento’ modernos.

Não-lugares: Introdução a uma Antropologia da Supermodernidade (Marc Augé)


Afirmar que a antropologia sempre foi do ‘aqui e agora’ é reconhecer, ao mesmo tempo, que ela supõe um testemunho de uma atualidade presente. Desse modo, a antropologia da contemporaneidade próxima não deve efetuar-se, exclusivamente, segundo categorias já repertoriadas, afinal novos objetos precisam ser construídos, senão o fato de abordar novos campos empíricos seria mais uma curiosidade do que uma necessidade. Essa discussão se justifica no próprio subtítulo da obra: ‘introdução a uma antropologia da supermodernidade’. Assim, o empreendimento de se pensar uma antropologia sob o ponto de vista da ‘supermodernidade’ acaba por esbarrar numa dupla dificuldade: como pensar o tempo e sua abundância factual no mundo contemporâneo? De que modo pensar o presente que decorre de nossa dificuldade de dar sentido ao passado próximo, por meio de uma história iminente, nos nossos calcanhares, quase intrínseca às nossas existências cotidianas? Há no mundo contemporâneo, além dos problemas que envolvem esse tipo de ‘temporalidade’, uma segunda transformação acelerada, mas que se refere ao espaço. Assim reflete-se sobre o ‘lugar comum’ ou a ‘geografia íntima’ dos antropólogos e etnólogos, quando se gabam por decifrar a organização do espaço: a fronteira postulada e demarcada entre natureza selvagem e natureza cultivada; a divisão das terras de cultura ou das águas piscosas; o traçado das aldeias; a disposição do hábitat, em suma, de uma geografia econômica, social, política e religiosa dos grupos. Vai ser a partir desta interpelação espacial que os ‘não-lugares’ passarão a ser designados por duas realidades distintas: os espaços constituídos em relação a certos fins [transporte, comércio, lazer] e a relação que os indivíduos mantêm com esses espaços.

Os ‘não-lugares’ serão vistos tanto pelas instalações necessárias à circulação acelerada das pessoas e bens [vias, trevos rodoviários, aeroportos] quanto os próprios meios de transporte ou grandes centros comerciais, ou ainda os campos onde estão os refugiados do planeta. Quando os postos de gasolina oferecem viagens para América e as revistas das companhias aéreas fazem propagandas dos hotéis, os consumidores de espaço acham-se presos nessas imagens, que constituem um sistema: um esboço de um ‘mundo de consumo’ que todo o indivíduo pode fazer seu, porque está nele insistentemente interrogado. A superfície por onde o cliente circula, consulta as etiquetas, pesa os legumes numa máquina que lhe indica o preço e o peso, e depois estende o cartão de crédito a uma jovem, num desses caixas, não deixa de ser uma ação silenciosa, mas exemplifica a invasão do espaço pelo texto. Os supermercados são exemplos de não-lugares, mas são menos prestigiosos. Trata-se, entretanto, de certos lugares que só existem pelas palavras que os evocam, não-lugares, nesse sentido, lugares imaginários, utópicos, clichês. A palavra cria, aqui, a imagem e produz o mito, o faz funcionar.

Os não-lugares da supermodernidade, na auto-estrada, no aeroporto, nas compras de supermercado, definem-se por palavras ou textos que nos propõem o seu modo de usar, de três maneiras: prescritiva [esquerda ou direita], proibitiva [proibido fumar] ou informativa [você está entrando no Beaujolais]. Prescrição, proibição e informação instalam as condições de circulação em espaços onde se supõe que os indivíduos só interajam, por exemplo, com textos disseminados pelo percurso de uma cidade, que explicitam os pontos notáveis, sinalizados, em painéis na sua paisagem. O motorista de passagem observa a cidade como um conjunto de nomes num itinerário, mas a paisagem se mantém à distância, cujos detalhes arquitetônicos ou naturais transformam-se na oportunidade de um texto. Assim, o espaço como prática dos lugares procede por um duplo deslocamento do viajante e, paralelamente, das paisagens, das quais ele nunca tem nada mais do que visões parciais, instantâneas, somadas confusamente em sua memória, recompostas num ‘relato’ que o viajante faz delas ou, na volta, impõem-se os comentários. A viagem constrói, portanto uma relação fictícia entre o olhar e a paisagem, como se o espectador fosse para si mesmo o seu próprio espetáculo. O espaço do viajante é, enfim, o arquétipo do ‘não-lugar’.

domingo, 2 de agosto de 2009

Sacher-Masoch: o Frio e o Cruel (Gilles Deleuze)


A violência é aquilo que não fala e a sexualidade aquilo de que pouco se fala, mas os nomes de Sade e Masoch servem para designar duas perversões básicas. Eles apresentam a seus leitores quadros inigualáveis de sintomas e de signos, da mesma maneira quando um médico dá o seu nome a uma doença, trata-se de um ato linguístico e semiológico, na medida em que liga um nome próprio a um conjunto de signos.

Em Sade, em geral, as narrativas que os libertinos ouvem provêm de ‘histórias’, cujo poder das palavras culmina no comando da repetição dos corpos. Nada está mais diante do sádico do que a intenção de persuadir ou convencer, ou seja, qualquer intenção pedagógica: mostrar que o próprio raciocínio é uma violência e que está do lado dos violentos, com todo o seu rigor e sua calma. Percebe-se, sob todos os aspectos, que o ‘professor sádico’ se opõe ao ‘educador masoquista’, já que em Masoch, as coisas devem ser ditas, prometidas, anunciadas, cuidadosamente descritas antes de se realizarem. Tudo é uma questão de persuasão e educação. Estamos diante de uma vítima que procura o seu carrasco e que precisa formá-lo, persuadi-lo e a ele se aliar para uma empreitada pedagógica: os masoquistas e a submissão às heroínas, ‘mulher-carrasco’; os tormentos que eles sofrem; a morte porque passam são momentos de ascensão ao Ideal. Do corpo à obra de arte, da obra de arte às Ideias, ou seja, há uma ascensão que se faz a base de chicotadas. O herói masoquista parece educado, mas educado por uma mulher autoritária, em que se promovem as fantasias por costumes nacionais e folclóricos, brincadeiras de crianças, jogos de linguagem femininos, exigências morais, patriotas. O corpo da mulher-carrasco mantém-se coberto de peles, couros, enquanto o da vítima permanece indeterminado, rompido pelos golpes que recebe. De outro modo, o que está em jogo na obra de Sade é a ‘ideia do mal’, do ‘Objeto que não está lá’, onde o libertino se declara excitado por essa ideia de ‘algo que não está’, porque só pode ser objeto de demonstração. Por isso os heróis sádicos se desesperam e se enfurecem, vendo seus crimes reais tornarem-se tão diminutos.

Em “Sacher-Masoch” desfilam oposições, dissociações ou disjunções entre Sade e Masoch, que parecem ser intermináveis: a faculdade especulativo-demonstrativa do sadismo, a faculdade dialético-imaginativa do masoquismo; o negativo e a negação no sadismo, a denegação e o suspensivo no masoquismo; a reiteração sádica quantitativa, o suspense qualitativo masoquista; a negação da mãe e inflação do pai no sadismo, a ‘denegação’ da mãe e a aniquilação do pai no masoquismo; a oposição do papel e do sentido do fetiche nos dois casos, e o mesmo se dando em relação com a fantasia; o antiesteticismo sádico, o esteticismo masoquista; o sentido ‘institucional’ de um, e o sentido ‘contratual’ do outro; o supereu e a identificação no sadismo, o eu e a idealização no masoquismo; as duas formas opostas de dessexualização e de ressexualização.

Não se trata apenas de se fazer um inventário das proposições que deveriam exprimir a diferença radical entre a ‘apatia sádica’ e o ‘frio masoquista’, mas, sobretudo, percebe-se que certo sadismo no masoquismo não se confunde com o ‘herói sádico’, tampouco uma espécie de masoquismo presente no sadismo não se representa pela ‘mulher-carrasco’. Em outras palavras, é tolerável um masoquismo específico do sadismo e um sadismo específico do masoquismo, mas nunca um combinado com o outro. Trata-se de denunciar o híbrido ‘sadomasoquismo’ como um monstro semiológico, mal fabricado. Nesse transformismo ou unidade sadomasoquista sugere-se então um equívoco freudiano? Talvez nem seja necessário questionar isso, já que a distinção e a não identidade do sadismo com o masoquismo não deixam de ser o requinte deleuzeano dessa tese.