sábado, 31 de outubro de 2009

Gramatologia (Jacques Derrida)



E tudo acontece como se, deixando de designar uma forma particular, derivada, auxiliar da linguagem em geral, o ‘significante do significante’ – o conceito de escritura – começava a ultrapassar a extensão da linguagem. Em todos os sentidos, escritura compreenderia a linguagem. Não que a palavra escritura deixe de designar o significante do significante, mas descreve o movimento da linguagem: na sua origem, cuja estrutura se soletra como ‘significante do significante’, apaga-se a si mesma na sua própria produção. Até mesmo o significado aí funciona desde sempre como um significante, não há significado que escape, mais cedo ou mais tarde, ao jogo das remessas do significante que constitui a linguagem.

O privilégio da phoné não depende de uma escolha. O sistema do ‘ouvir-se-falar’ através da substância fônica – que se dá como significante não-exterior, não-empírico, não-mundano teve de dominar durante toda uma época a história do mundo, até mesmo produziu a ideia de (origem do) mundo, a partir da diferença entre o mundano e o não-mundano, o fora e o dentro, a idealidade e a não-idealidade, o transcendental e o empírico, etc. A ‘racionalidade’ que comanda a escritura assim ampliada e radicalizada, não é mais nascida de um logos e inaugura a destruição e a desconstrução (de-sedimentação) de todas as significações que brotam da signifi-cação de logos e, em especial, a significação de verdade. Dentro deste logos nunca foi rompido o liame origi-nário com a phoné. A essência da phoné estaria imediatamente próxima daquilo que, no ‘pensamento’ como logos, tem relação com o sentido. Entre o ser e a alma, as coisas e as afecções, haveria uma relação de tradução ou de significação natural; entre a alma e o logos, uma relação de simbolização convencional. E a primeira convenção, a que se referiria imediatamente à ordem da significação natural e universal, produzir-se-ia como linguagem falada. A linguagem escrita fixaria convenções, que ligariam entre si outras convenções.

A voz é o que está mais próximo do significado, tanto quando este é determinado rigorosamente como sentido (pensado ou vivido) como quando o é, com menos precisão, como coisa. Com respeito ao que uniria indis-soluvelmente a voz à alma ou ao pensamento do sentido do significado, e mesmo à coisa mesma, todos os significantes, e em primeiro lugar o significante escrito, seria derivado: seria sempre técnico e representativo. Esta derivação é a própria origem da noção de ‘significante’. O que é dito a respeito do som em geral vale a fortiori para a fonia, pela qual, em virtude do ouvir-se-falar o sujeito afeta-se a si mesmo e refere-se a si no elemento da idealidade. A época do logos rebaixa a escritura; pertenceria a esta época a diferença (ou mútua exterioridade, ou estranho desvio de ‘paralelismo’) entre significado e significante.

A diferença entre significante e significado pertence de maneira implícita à grande época abrangida pela história da metafísica e de maneira explícita à época do criacionismo e do infinitismo cristãos, quando se apoderam dos recursos da conceitualidade grega. A ‘ciência’ semiológica ou linguística não pode conservar a diferença entre significante e significado – a própria ideia de signo – sem a diferença entre o sensível e o inteligível e sem conservar a referência a um significado que possa ocorrer antes de sua ‘queda’ e de toda expulsão para a exterioridade do ‘este mundo’ sensível. A face inteligível do signo permanece voltada para o lado do verbo e da face de Deus. O signo e a divindade têm o mesmo local e a mesma data de nascimento – a época do signo é teológica, não terminará talvez nunca, sua clausura histórica está desenhada.

O conceito de signo marca a sua pertença metafísica, contudo sua temática é o trabalho de agonia de uma tradição que pretendia subtrair o sentido, a verdade, a presença, o ser, etc. –, ao movimento de significação. A exterioridade do significante é, com efeito, a exterioridade da escritura, demonstra-se, pois que não há signo linguístico antes da escritura. Mesmo quando a coisa, o ‘referente’, não está imediatamente em relação com o logos de um deus criador onde ela começou como sentido falado-pensado, o significado tem uma relação imediata com o logos em geral, mediata com o significante, com a exterioridade da escritura. Se isso não acontecer, uma mediação metafórica se insinuou na relação e simulou uma imediatez: a escritura da verdade na alma.

A língua tem, portanto, uma tradição oral independente da escritura – derivada porque representativa: significante do significante primeiro; representação da voz presente a si, da significação imediata, natural e direta do sentido. Este factum da escritura fonética é maciço e é verdade, comanda toda nossa cultura. Se a palavra (vox) já é uma unidade do sentido e do som, do conceito e da voz, trata-se de conservar o termo ‘signo’ para designar o total, mas substitui-se ‘conceito’ e ‘imagem acústica’ respectivamente por significado e significante, numa linguagem saussuriana. As relações entre a fala e a escritura consideram as unidades indivisíveis do ‘pensamento-som’: a escritura será fonética (o fora, representação exterior da linguagem) deste ‘pensamento-som’. A escritura (letra, inscrição sensível) sempre foi considerada pela tradição ocidental como corpo e matéria exteriores ao espírito, ao sopro, ao verbo e ao logos. Assim, uma ciência da linguagem deveria reencontrar relações ‘naturais’ (simples e originais) entre a fala e a escritura, entre um dentro e um fora: haveria então uma natureza das relações entre ‘signos lingüísticos’ e ‘signos gráficos’. Insuportável e fascinante esta intimidade que enreda a imagem à coisa, a grafia à fonia, de tal modo que a fala parece o speculum da escritura que usurpa o papel principal. A escritura é, enfim, a dissimulação da presença natural, primeira e imediata o sentido à alma no logos, sua violência sobrevém à alma como inconsciência. Desta forma, é preciso proteger a vida espontânea, pois no interior da escritura fonética comum não se permite a exatidão nem a exigência científica: a racionalidade seria, neste sentido, portadora de morte, desolação e de monstruosidade – é um afastamento da natureza, sob uma perversão do artifício que engendra monstros. Desta espécie de ‘psicologia da consciência’ e da ‘consciência intuitiva’ diz-se que a escritura fonética não existe – nunca nenhuma prática é puramente fiel ao seu princípio – talvez porque o simbolismo vazio da notação escrita seja o que nos exila para longe da evidência clara de sentido, da presença plena do significado na sua verdade, abrindo uma possibilidade de crise, uma crise do logos.

Resta que o ‘conceito de grafia’ implica, como possibilidade comum a todos os sistemas de significação, a instância de ‘rastro instituído’ – ‘imotivado’, não parte da ideia de que o significante dependa da livre escolha do que fala, simplesmente não tem nenhuma amarra natural com o significado na realidade. A ‘imotivação’ do signo requer uma síntese em que o totalmente outro se anuncia como tal. O rastro articula sua possibilidade sobre todo o campo do ente, onde se imprime a relação ao outro, que a metafísica determinou como ente-presente a partir do movimento escondido do rastro. O movimento do rastro é, entretanto, necessariamente ocultado, produz-se como ocultação de si – quando o outro se anuncia como tal, apresenta-se na dissimulação de si. O campo do ente, antes de ser determinado como campo de presença, estrutura-se conforme as diversas possibilidades – genéticas e estruturais – do rastro. A estrutura geral do rastro imotivado faz comunicar na mesma possibilidade a estrutura da relação com o outro, de tal modo que não existe rastro imotivado, afinal o rastro é indefinidamente seu próprio vir-a-ser-imotivado.

Não se pode pensar o rastro instituído sem pensar a retenção da diferença numa estrutura onde a diferença aparece como tal e permite assim certa liberdade de variação entre os termos plenos, deste modo, a diferença não é pensada sem o rastro. Por sua vez, o rastro (puro) é diferência, que não depende de nenhuma plenitude sensível (audível, visível, fônica, gráfica), mas é a condição desta plenitude; embora não exista, sua possibilidade é anterior a tudo que se denomina signo, conceito, motriz ou sensível. A diferência é a formação da forma, portanto, mas ela também é o ser impresso da impressão.

A Gramatologia não deve ser uma das ciências humanas nem uma ciência regional dentre elas, porque coloca em questão o nome do homem. Liberar a unidade do conceito do homem é renunciar à velha ideia dos povos ditos ‘sem escritura’, ‘sem história’. Em vez de recorrer aos conceitos que servem habitualmente para distinguir o homem dos outros viventes, apela-se à noção de ‘programa’, no sentido, por exemplo, da cibernética, que é inteligível a partir de uma história das possibilidades do rastro como unidade de um movimento que faz aparecer o grama como tal e possibilita o surgimento dos sistemas de escritura no sentido estrito. Da ‘inscrição genética’ e das ‘curtas cadeias’ programáticas que regulam o comportamento da ameba ou do anelídeo até a passagem para além da escritura alfabética às ordens do logos e de um certo homo sapiens – a possibilidade do grama estrutura o movimento de sua história segundo níveis e ritmos rigorosamente originais. A história da escritura se erige sobre o fundo da história do grama como aventura das relações entre a face e a mão.

O fonologismo é a exclusão ou o rebaixamento da escritura, no interior tanto da linguística quanto da metafísica, mas não deixa de ser também a autoridade atribuída a uma ciência que deseja considerar como o modelo de todas as ciências ditas humanas. O que é a descendência na ordem do discurso e do texto? Textos de Claude Lévi-Strauss foram escolhidos e a partir deles houve uma incitação a leitura de Rousseau não só por causa de um interesse teórico ou do papel que desempenham atualmente, mas pelo lugar que neles ocupam a teoria da escritura e o tema da fidelidade de Rousseau. Por que Lévi-Strauss e Rousseau? Lévi-Strauss não se sente apenas em harmonia com Jean-Jacques Rousseau, ele se apresenta como seu discípulo moderno. O estruturalismo de Lévi-Strauss é um fonologismo, mas ele escreveu sobre a escritura. Em “Tristes Trópicos”, a lição de escritura marca um episódio que poderia se denominar ‘guerra etnológica’: confrontação que abre a comunicação entre os povos e as culturas, mesmo que essa comunicação não se pratique sob o signo da opressão colonial, missionária. Trata-se da penetração de Lévi-Strauss no mundo dos Nhambiquara, onde a história da escritura e a história da estrada (ruptura, via rupta, via rompida), pelo afastamento da natureza, da floresta natural, selvagem: a via rupta escreve-se, discerne-se, inscreve-se violentamente como diferença. Há escritura, então, desde que o nome próprio seja rasurado num sistema, afinal, entre os Nhambiquaras o emprego dos nomes próprios é interdito: [1] porque os nomes próprios já não são nomes próprios; [2] porque sua produção é sua destruição, obliteração; [3] porque o nome próprio nunca foi possível a não ser pelo seu funcionamento numa classificação sob um sistema de diferenças – numa escritura que retém rastros de diferença, o interdito foi possível e eventualmente pode ser transgredido. Nunca se dá um nome, classifica-se o outro ou classifica-se a si mesmo. Entre os Nhambiquara, enfim, o emprego dos nomes próprios é interdito: nomear, dar nomes que serão proibidos pronunciar, essa é a violência originária da linguagem que consiste em suspender um vocativo absoluto. Para identificar as pessoas era preciso acompanhar o uso do pessoal na linha, ou seja, convencionar com os indígenas nomes de empréstimo pelos quais seriam designados. Acontece uma ‘guerra dos nomes próprios’ quando um estranho (etnólogo) chega e nasce em sua presença, como descreveu Lévi-Strauss no ‘jogo das menininhas’, que vai excitar o desatar das línguas e fazer as meninas entregar os nomes preciosos dos adultos. O que os Nhambiquara escondiam, as menininhas expõem na transgressão.

Transgredir a lei e a voz da piedade é substituir a afeção natural pela paixão pervertida. A lei natural, a doce voz da piedade, não é somente proferida por uma instância materna, ela é inscrita em nossos corações por Deus: que essa doce voz seja a da natureza e a da mãe, isto se reconhece também em ser ela lei. Não se trata mais de Lévi-Strauss, mas de Rousseau e a voz da lei materna, através da ordem da piedade que ocupa lugar de lei, supre a lei, a lei instituída. A piedade natural ilustra de maneira arquetípica a relação da mãe com o filho e comanda como uma doce voz. O “Essai sur l’origine des langues” de Jean-Jacques opõe a voz à escritura como a presença a ausência. Não seria espantoso referir-se a uma inquietude que parece animar toda a reflexão de Rousseau, que diria respeito à origem e a degenerescência da música. Se não há música antes da linguagem é porque a música nasce da voz e não do som. A música se desperta no canto e nasce na paixão, dito de outro modo, as necessidades ditaram os primeiros gestos, mas as paixões arrancaram as primeiras vozes. A música supõe a voz e se forma ao mesmo tempo em que a sociedade humana, sendo fala, ela requer que o outro me seja presente como outro na compaixão. O canto é o oriente da música, mas não se reduz a voz, define-se a melodia como imitação dos acentos da voz falante e apaixonante, enquanto na harmonia os acentos orais são privados de seus efeitos, tornando-se uma ciência do intervalo que se põe no calor dos acentos. Apaga o acento apaixonado para substituí-lo pelo intervalo harmônico. Distingue-se, então, a harmonia (tem o seu por si mesmo, independe de qualquer quantidade) da melodia (ideias de ritmo e de medida lhes dão um caráter determinado). Será o acento das línguas que determinará a melodia de cada nação – o acento que faz com que se fale ao cantar e que se fale com maior ou menor energia, pouco ou nenhum acento só pode ter uma melodia fria: a harmonia que destrói a energia da música? Não houve outra música senão a melodia – os acentos formavam o canto.

Nesta perspectiva, a estrutura do Essai não reflete a linguagem somente em seu devir, mas em sua disposição espacial, em sua geografia. As duas extremidades do eixo em torno do qual gira a terra (o pólo norte e o pólo sul) são as referências, além das estações do ano. A oposição norte/sul é racional e estrutural, traça um eixo de referência no interior de cada língua. Uma vez constituídas as línguas, a polaridade necessidade/paixão continua operando em cada sistema linguístico: ora as línguas se aproximam da paixão, ora se aproximam da necessidade. Assim, as línguas do norte são, sobretudo línguas da necessidade, a primeira palavra certamente foi ‘ajudai-me’, enquanto as línguas do sul são línguas da paixão, onde os primeiros discursos foram cantos de amor. Para Rousseau o Merídio é o berço das línguas, lugar de origem, de onde as línguas setentrionais se distanciaram; por isso essas últimas são menos puras, menos vivas, menos quentes.

O canto não parece natural ao homem, embora os selvagens da América cantem, porque falam – o verdadeiro selvagem não cantou nunca. O canto deve também imitar os gritos e os lamentos. Para Jean-Jacques o grande defeito dos europeus é filosofarem sempre sobre as origens das coisas segundo o que se passa em torno deles. Em seguida, afirma que a região não é indiferente à cultura dos homens: um homem não é plantado como uma árvore em uma região para nela permanecer para sempre. No norte os homens consomem muito num solo ingrato, no merídio eles consomem pouco num solo fértil: nasce daí uma nova diferença que torna uns laboriosos e os outros contemplativos...

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Jamais Fomos Modernos: Ensaio de Antropologia Simétrica (Bruno Latour)


Para uns, o tempo não deixa de ser definido da seguinte maneira: o resultado provisório da ligação entre os seres. De onde vem a impressão (tão moderna) de viver um tempo novo que rompe com o passado? De uma ligação; uma repetição que não tem nada em si temporal. A impressão de passar irreversivelmente só é criada quando ligamos entre si a enorme quantidade de elementos (lê-se, ‘quase-objetos) que compõem nosso universo cotidiano: é a sua coesão sistemática. É a substituição de seus elementos por outros que se tornarão igualmente coerentes no período seguinte, que nos dá a impressão que o tempo passa: um fluxo contínuo indo do futuro ao passado. É preciso que as coisas andem na mesma velocidade e sejam substituídas por outras bem alinhadas, para que o tempo se torne um fluxo – a temporalidade moderna é o resultado dessa ‘disciplina’. “Moderno” é duas vezes assimétrico, porque assinala uma ruptura na passagem regular do tempo e assinala um combate no qual há vencedores e vencidos.

A história dos modernos será pontuada pela irrupção dos não-humanos: o ‘teorema de Pitágoras’; o Heliocentrismo; a ‘lei da gravidade’; a ‘máquina a vapor’; a ‘química de Lavoisier’; a ‘vacina de Pasteur’; a ‘bomba atômica’; o computador; do DNA; dos chips. A cada vez, será calculado o tempo a partir destes começos miraculosos, laicisando para isso a encarnação na história das ciências: ou não será feita a distinção entre o tempo ‘antes’ e o ‘depois’ do computador assim como o ano zero, ‘antes’ e ‘depois de Cristo’? A temporalidade moderna nada tem, entretanto, de ‘judaico-cristã’ e nada tem de durável também. A modernização promete uma saída das ‘trevas’, afinal, se o passado consiste numa confusão entre as coisas e os homens, o futuro será aquilo que não os confundirá mais. O presente é traçado por rupturas radicais, uma série de revoluções, através dessa linha os modernos promovem escansões, pelo menos duas, uma para cima (o progresso) e outra para baixo (a decadência), por onde se multiplicam as projeções dos quase-objetos. A noção de seta irreversível (progresso ou decadência) provém de uma classificação dos quase-objetos cujo crescimento os modernos não podem explicar, porque a irreversibilidade no curso do tempo é devida, em grande medida, à transcendência das ciências e das técnicas. É um processo de classificação para dissimular a origem inconfessável das entidades naturais e sociais. Tudo parece mais confuso se os quase-objetos misturam épocas, ontologias e gêneros diferentes. Assim, no lugar de um fluxo laminar, em geral, tem-se um fluxo turbulento: o tempo deixa de ser irreversível para tornar-se reversível. A própria temporalidade dos quase-objetos rompeu a temporalidade moderna. Primeiro foram os arranha-céus da arquitetura pós-moderna...

... o urso dos Pirineus, os Kolkozes, os aerossóis, a revolução verde, a vacina anti-varíola, a guerra nas estrelas, a religião muçulmana, a caça à perdiz, a Revolução Francesa, a fusão a frio, o bolchevismo, a relatividade, o nacionalismo esloveno, etc., ninguém sabe se saíram de moda ou se estão na ordem do dia, se são futuristas, intemporais, inexistentes ou permanentes. Crê-se que o pós-moderno é um sintoma, não a solução. Ele revela a essência da modernidade como a época da redução do ser ao novum. A pós-modernidade nada faz além de começar, e a identificação do ser com o novum. Os pós-modernos conservam o panorama moderno, mas dispersam os elementos que os modernizadores agrupavam ordenadamente. Os pós-modernos têm razão quanto à dispersão, mas estão errados ao conservar a exigência de novidade? Disse Clio de Péguy e também Michel Serres: “somos trocadores e misturadores de tempo”. Todas as tradições imutáveis mudaram anteontem, ninguém nasce tradicional: é uma escolha que se faz quando se inova muito. Não avançamos nem recuamos. Selecionamos elementos pertencentes a tempos diferentes. Ainda podemos selecionar e a seleção é que faz o tempo, e não o tempo que faz a seleção. O modernismo, o anti-modernismo e o pós-modernismo eram apenas uma seleção feita por alguns poucos em nome de muitos. Não emergimos de um passado de ‘trevas’ que confundia natureza e cultura para alcançar um futuro no qual os dois estarão claramente separados, graças a revolução do presente. Jamais estivemos em um fluxo vindo seja do futuro seja de eras longínquas. A modernidade nunca ocorreu. Não é uma maré que há muito sobe e que hoje reflui. Jamais houve uma maré. Sigam em frente, retornem às diversas coisas que sempre seguiram de outra forma.

O mundo moderno não pode se estender sem voltar a ser aquilo que jamais deixou de ser, isto é, como todos os outros: um mundo não moderno. Acontece que os modernos se enganaram ao querer não-humanos objetivos e sociedades livres. Estava errada sua certeza de que esta produção exigia a distinção absoluta dos dois termos. Os descendentes de Boyle definiram um parlamento dos mudos, entre os laboratórios, cientistas falavam em nome das coisas; enquanto, os descendentes de Hobbes definiram a República, longe dos laboratórios. Hobbes e seus seguidores criaram os principais recursos para falarmos de poder (representação, soberano, contrato, propriedade, cidadãos), mas Boyle e seus discípulos elaboraram um repertório importante para falarmos de natureza (experiência, fato, testemunho, colegas). O que não se sabia é que era uma dupla invenção! Com sua bomba de ar (vácuo), Boyle criou um discurso político de onde a política deve estar excluída, por seu turno, com seu Leviatã, Hobbes imaginou uma política científica da qual a ciência experimental deve estar excluída. Eles inventaram, portanto, nosso mundo moderno: onde a representação das coisas através do laboratório encontra-se para sempre dissociada da representação dos cidadãos através do contrato social. A separação moderna entre o mundo natural e o mundo social tem o mesmo caráter constitucional – do momento em que traçamos esse espaço simétrico, restabelecendo o entendimento comum que organiza a separação dos poderes naturais e políticos, deixamos de ser modernos. Trata-se de fundamentar uma epistemologia com um novo ator desconhecido e uma bomba de ar improvisada, artesanal e que vaza.

Em nenhum lugar observaremos um objeto e um sujeito, uma sociedade que seria primitiva e outra moderna. A sociedade como sabemos também é construída tanto quanto a natureza. Se formos construtivista para uma devemos sê-lo para ambas; se formos realistas para uma devemos sê-lo para outra. Para que a antropologia seja simétrica, sugere-se o ‘princípio de simetria generalizada’ (de Michel Callon): o antropólogo deve estar no ponto médio, de onde pode acompanhar, ao mesmo tempo, a atribuição de propriedades não humanas e de propriedades humanas. Não lhe é permitido usar a realidade para dar conta daquilo que molda a realidade externa, também não lhe é permitido alternar entre realismo natural e o realismo sociológico, usando ‘não apenas’ a natureza, ‘mas também’ a sociedade, a fim de conservar as duas assimetrias iniciais, ao mesmo tempo em que dissimula as fraquezas de uma sob as fraquezas da outra. Quando a antropologia volta dos trópicos para juntar-se à antropologia do mundo moderno, primeiro, acredita que só pode aplicar seus métodos quando os ocidentais confundem os signos e as coisas da mesma forma que o ‘pensamento selvagem’ o faz. A seguir, ao voltar para casa, os etnólogos não ficariam limitados às periferias, de forma que, assimétricos como sempre, são audaciosos com relação aos outros e tímidos quanto a si mesmos. Suponhamos que tendo voltado dos trópicos, a antropologia decida ocupar uma posição triplamente simétrica: [a] explica com os mesmos termos as verdades e os erros; [b] estuda ao mesmo tempo a produção dos humanos e dos não-humanos; [c] ocupa uma posição intermediária entre os terrenos tradicionais e os novos, pois suspende qualquer afirmação a respeito daquilo que distinguiria os ocidentais dos Outros. Desta forma, frente a frente com produções de naturezas-culturas, chamadas de ‘coletivos’, diferentes tanto da sociedade dos sociólogos (homens-entre-si) quanto da natureza dos epistemólogos (coisas-em-si). Enquanto coletivos, somos irmão. Jamais deixamos de construir nossos coletivos com materiais misturados aos pobres humanos e aos humildes não-humanos.

Para nos convencer que somos híbridos (quase-objetos, não-humanos), instalados no interior das instituições científicas (meio engenheiros, meio filósofos), a noção de rede ou de tradução parece ser nosso meio de transporte e optamos por descrever as tramas onde quer que elas nos levem: a rede é esse fio de Ariadne em histórias confusas. Enquanto os críticos pensam que estamos falando de técnicas e de ciências, eles questionam “mas então isso é política?” A epistemologia, as ciências sociais e as ciências do texto têm reputação, desde que elas permaneçam distintas, só lhes oferecer uma bela rede sociotécnica: a primeira extrairá os conceitos (para ligá-los ao social ou à retórica); a segunda amputará a dimensão sócio-política (purificando-a de qualquer objeto); a terceira conservará o discurso (purgando-lhe de qualquer aderência indevida à realidade e aos jogos de poder).

Nessa esteira, os críticos desenvolveram três grandes repertórios distintos para falar de nosso mundo: a naturalização, a socialização e a desconstrução (Changeux, Bourdieu, Derrida). Quando o primeiro trata de fatos naturalizados, não há mais sociedade, nem sujeito, nem forma de discurso; quando o segundo fala de ‘poder sociologizado’, não há mais ciência, nem técnica, nem texto, nem conteúdo; quando o terceiro se refere aos efeitos de verdade, seria ingenuidade acreditar na existência real dos neurônios ou nos jogos de poder. Realmente, nossa vida intelectual continua reconhecível contanto que os epistemólogos, os sociólogos e os desconstrutivistas sejam mantidos a uma distância conveniente?! Ou as redes que desdobramos não existem, e os críticos fazem bem em marginalizar os estudos sobre as ciências ou separá-los em três conjuntos distintos – fatos, poder, discurso –, ou então as redes são tal como as descrevemos, e atravessam a fronteira entre os grandes feudos da crítica – sendo ao mesmo tempo reais, e coletivas, e discursivas. Não será nossa culpa, se as redes são ao mesmo tempo reais como a natureza, narradas como o discurso, coletivas como a sociedade?

Uma rede, técnica, por exemplo, é local em todos os pontos, mas global em seu trajeto e deslocamento, no entanto nunca é universal o suficiente ao ponto de transportar algo a todos os lugares ao mesmo tempo. Existe um fio de Ariadne que nos permitiria passar continuamente do local ao global, do humano ao não-humano... O capitalismo é um labirinto de redes um pouco longas que envolvem um mundo a partir de pontos que se transformam em centros de cálculo e de lucro. Toda e qualquer globalização beneficia o totalitarismo, não devemos acrescentar a dominação total à dominação real. Não devemos acrescentar a força à potência nem ao capitalismo a desterritorialização absoluta. Da mesma forma não devemos permitir à verdade científica a racionalidade – também – absoluta. Tanto para os crimes quanto para o domínio (tanto para os capitalismos quanto para as ciências) devemos compreender as coisas banais, as pequenas causas e seus grandes efeitos.