sexta-feira, 6 de novembro de 2009

A Linguagem e a Morte: um Seminário sobre o Lugar da Negatividade (Giorgio Agamben)


O homem figura como o mortal e o falante, mas como interrogar o homem livre, mantendo-o livre ao mesmo tempo da morte e da linguagem? A faculdade da morte e da linguagem pode permanecer impensada? A partir daí percebe-se que há um lugar da negatividade e o nexo entre a morte e a linguagem abrem a sua morada fundada na negatividade. Ressalta-se que a voz e a gramática são estruturas da negatividade, assim como a ética e a lógica são inseparáveis e repousam no único fundamento do negativo. O fundamento é compreendido no sentido de ser aquilo que vai ao fundo: o ser é o in-fundado, como fundamento negativo. O advento do niilismo desvenda-se quando a metafísica cai na ética, num declínio reconhecido como o advento do fundamento negativo: ‘morada habitual do homem’.

É notório o modo pelo qual, em um ponto crucial de Sein und Zeit (Ser e Tempo), Heidegger situa a relação do Dasein com a sua morte. O Dasein é um ser-para-o-fim, para a morte e sempre em relação com ela: experiência da morte como certa antecipação de sua possibilidade. Como possibilidade a ‘antecipação da morte’ é testemunhada na sua experiência da consciência e da culpa. O caráter negativo do apelo (Ruff) da consciência não diz nada e fala em silêncio. Assim, desvelar a culpa neste ‘lugar silencioso’ revela uma negatividade própria ao Dasein. Afinal, no culpado está implícito caráter do Não (Nicht). A idéia formal existencial do ‘culpado’ determina-se por ser-fundamento, para um ser que se determinou por meio de um Não, ou seja, ser de uma negatividade. A negatividade (Nichtigkeit) não significa de modo algum não estar presente ou não consistir, mas significa um Não que constitui este ser do Dasein, o seu ser-lançado. O Dasein é determinado como um poder ser, que pertence a si mesmo, embora não como se tivesse dado a si mesmo a própria posse. Sendo fundamento, ou seja, existindo como lançado, o Dasein fica constantemente atrás de suas próprias possibilidades. O cuidado – o ser do Dasein – significa como projeto lançado: o (negativo) ser-fundamentado de uma negatividade. Será a partir desta experiência de uma negatividade que se revela constitutiva do Dasein, na experiência da morte, como sua possibilidade mais próxima, que Heidegger passa a se interrogar sobre o problema da origem ontológica (ontologische Ursprung) da negatividade. Logo, Dasein significa ser-o-Da. Aceitar a tradução atualmente difusa de Dasein como Ser-aí, permite-nos então entender esta expressão como ‘ser-o-aí’. Se ser o próprio Da (o próprio aí) é o que caracteriza o Dasein (o Ser-aí), isto significa que, então,  justamente no ponto em que a possibilidade de ser o Da [de estar em casa no próprio lugar] é assumida, através da experiência da morte, da maneira mais autêntica, o Da se revela como o lugar a partir do qual ameaça uma negatividade radical. Portanto, a negatividade provém, ao Dasein, de seu próprio Da. Mas, perguntemo-nos agora, existe, acaso, uma analogia entre a experiência da morte que, em Sein und Zeit, revela ao Ser-aí a possibilidade autêntica de ser o seu aí, o seu aqui, e a experiência do ‘apreender o Isto’ que, no início da Fenomenologia, garante que o discurso hegeliano comece do nada?

O ‘mistério eleusiano’, que apareceu em uma poesia, intitulada Elêusis, que o jovem Hegel dedicou, em agosto de 1796, ao amigo Hölderling, definindo que todo mistério tem por objeto um indizível (des unaussprechlichen Gefühles Tiefe). A profundidade deste ‘indizível sentimental’ em vão poderia ser buscada em palavras e entre ‘ressequidos signos’. É interessante observar que um mistério eleusiano aparece uma segunda vez na obra de Hegel, precisamente no início daquela Fenomenologia do Espírito que constitui a primeira expressão acabada do seu pensamento, no seu primeiro capítulo intituado: A certeza sensível, ou o Isto e o querer-dizer (Die sinnliche Gewissheit oder das Diese und das Meinen). O mistério eleusiano aparece na Fenomenologia, mas Hegel tem em mira uma liquidação da certeza sensível. Esta liquidação é conduzida mediante uma análise do Isto (das Diese) e do indicar. Vai ser a ela mesma, a certeza sensível, que se deve perguntar: o que é o Isto? Se o tomamos na dupla forma do seu ser, como o Agora e o Aqui. O Agora é um ter-sido (gewesenes), e esta é a sua verdade; ele não possui verdade de ser. Contudo, é verdadeiro isto, que ele foi. Mas aquilo que foi, não é, de fato, um ser; ele não é, e era com o ser que estávamos lidando. Logo, mostrar algo, querer captar o Isto na indicação significa apenas ter a experiência de que a certeza sensível é, na verdade, um processo dialético de negação e mediação; que, portanto, a ‘consciência natural’, a qual se desejaria colocar no início como o absoluto, já é, verdadeiramente, sempre uma ‘história’. Acontece que a coisa sensível que pertence à consciência e se quer-dizer (Meinung, opinião, ponto-de-vista, ‘querer dizer’) é inacessível à linguagem. Aquilo que é indizível, para a linguagem, não é nada mais que o querer-dizer, a Meinung que permanece não-dita necessariamente em todo dizer, refere-se a esse não-dito, que é um negativo e um universal.

O iniciado aprende aqui a não dizer aquilo que ‘quer-dizer’, pois a linguagem conserva o indizível dizendo-o, colhendo-o na sua negatividade. Se a linguagem capturou em si o poder do silêncio é porque ela conserva o indizível nas suas profundezas, o que poderia ser dito ineffabile fatur, isto é, o discurso mostra o inefável como é: um nada, nichtigkeit. O sistema hegeliano parte de um ponto duplo: a um só tempo, ponto de partida e ponto de chegada. Apreende-se o Isto se temos o significado deste isto, que é um não-isto que ele encerra, logo, uma negatividade essencial. De um lado, o mistério eleusiano tem como conteúdo a experiência de um nichtigkeit (um nada), de outro lado, o problema da indicação e do Isto resulta evidentemente do surgimento em um ponto decisivo da história da metafísica. O Isto significa indicação ou a essência segundo o sujeito, assim Hegel afirma que o limite da linguagem cai sempre no interior da linguagem, que está desde sempre contido nela como negativo. Inicialmente o indizível é a coisa mais concreta, imediata, genérica e universal, mas é necessariamente o gênero supremo, além do qual não é possível definição. Trata-se da cisão aristotélica que se constitui a partir do núcleo originário de uma fratura, no plano da linguagem, entre mostrar e dizer, indicação e significação, que atravessa a história da metafísica e sem a qual o próprio problema ontológico permanece informulável.

Alguns gramáticos antigos haviam atribuído a origem da gramática a Platão e a Aristóteles, com suas categorias gramaticais e categorias lógicas, reflexão gramatical e reflexão lógica, que se implicam mutuamente e são inseparáveis. Se, para Aristóteles, o nome faz parte do discurso que correspondia às categorias da substância e da qualidade, o pronome significa substantiam sine qualitate, pura essência em si, antes de qualquer determinação qualitativa. A dimensão de significado do pronome vem a coincidir com aquela esfera do puro ser que a lógica e a teologia medieval identificavam como dimensão de significado dos assim denominados transcendentia: ens, unum, aliquid, bonum, verum. Estes termos eram ditos ‘transcendentes’ porque não têm acima de si nenhum gênero no qual possam ser contidos e a partir do qual possam ser definidos. O estatuto de pronome transcendentia é, pois, atribuído ao objeto na sua universalidade, portanto, o pronome indica uma essência indeterminada, um puro ser, determinados pelos atos de efetuação que são a demonstratio e a relatio. O puro ser, a substantia indeterminada que ele significa e que é em si insignificável e indefinível, mas que se torna significável e definível por meio de um ato de indicação. Se os pronomes são signos vazios que se tornam plenos quando um locutor os assume numa instância de discurso, então os pronomes têm por objetivo que operar a conversão da linguagem em discurso e permitir a passagem da língua à fala.

O pensamento medieval tomou consciência da problemática desta passagem entre significar e mostrar que tem lugar no pronome, mas não a conseguiu explicar. O entrelaçamento no pensamento medieval entre reflexão teológica e reflexão gramatical é muito cerrado, de tal modo que o Deus dos teólogos é o mesmo Deus dos gramáticos. Primeiramente ressalta-se que o nome decai de seu significado e não significa mais nada, transformando-se em pronome, mas se o pronome, por sua vez, é predicado de Deus, ‘cai da indicação’. Segue-se que o nome é formado por um pronome e pelo verbo ser, que é pensado como o nome ‘absoluto’ de Deus. Portanto, o que aqui é pensado como suprema experiência mística do ser e como nome perfeito de Deus é a experiência de significado do próprio grámma, da letra como negação da voz: ‘que se escreve, mas não se lê’. Por sua vez, o nascimento da moderna ciência da linguagem situou-se no próprio desenvolvimento da filosofia moderna que, de Descartes a Kant e até Husserl, não deixou de ser, em boa parte, uma reflexão sobre o estatuto do pronome Eu. De todo modo, tanto para Hegel quanto para Heidegger, a negatividade entra no homem porque o homem tem por ser este ter-lugar, quer colher o evento da linguagem, apreendido, em certa medida, a partir, respectivamente, do Dasein, ‘ser-o-aí’, e no das Diese nehmen, apreender o Isto. Percebe-se mais claramente entre os poetas do que entre os linguistas, que o eu [ou o me/mim] é a palavra associada à voz: aquele que enuncia, o locutor é, antes da mais nada, uma voz, e o problema da díxis é o problema da voz e da sua relação com a linguagem. Este é, pois, o problema.

A Voz situa-se, em relação ao estilo vocal, numa dimensão diversa e mais original, a voz constitui a dimensão ontológica fundamental, ou seja, a dimensão do significado da voz, mas a voz como pura intenção de significar (puro querer-dizer), quando uma coisa se dá à compreensão sem que se produza um evento determinado de significado. Vox, como querer-dizer ou intenção de significar sem significado, decai numa experiência amorosa como vontade de saber; experiência que mostra que a vox na sua pureza originária, como querer-dizer é uma palavra morta. Demarca-se certo flatus vocis, a voz como intenção de significar e como ‘pura indicação’(setentia vacum), significado da voz em si, antes de toda significação. Que o ser (substantiae universale) seja um flatus vocis não significa que ele seja um nada, afinal a dimensão do significado do ser coincide com aquela experiência da voz como pura indicação e puro querer-dizer. Dado que essa Voz (escrita em letra maiúscula para distinguir-se da voz como mero som) tem o estatuto de um não-mais (voz) e de um não-ainda (significado), ela constitui uma dimensão negativa. A linguagem tem um lugar no tempo e na voz, mostrando a instância do discurso, a Voz abre simultaneamente o ser e o tempo. Tanto em Hegel como em Heidegger reencontram-se um pensamento da Voz como articulação negativa originária.

Hegel seguiu o ‘despedaçar-se’ do espírito e sua ‘ocultação’ na natureza. O nome existe como linguagem que não se fixa, igualmente cessa, de imediato, aquilo que é. O despertar do espírito é o reino dos nomes. A linguagem é a voz da consciência, pois todo som tem um significado, nela tem um nome, idealidade de uma coisa existente: o seu imediato não-existir. Para Hegel a articulação se apresenta como processo de diferenciação, interrupção e conservação da voz animal: a voz é ouvido ativo – ele escreve –, puro si, que se põe como universal, todo animal tem na morte violenta uma voz, exprime a si mesmo como si mesmo suprimido. O sistema hegeliano é considerado em seu caráter ‘antripogenético’, no sentido que mantém o contato com a morte.

A dimensão negativa está presente também na linguística moderna, no conceito de fonema, deste ente puramente negativo e insignificante, o qual, contudo, é precisamente aquilo que abre e torna possível a significação e o discurso. Como ‘som da língua’, Jakobson está singularmente próximo da ideia heideggeriana de uma ‘Voz sem som’ e de um ‘som do silêncio’ (Sigé, pensamento silencioso). A fonologia, que se define como a ciência dos sons da língua, apresenta-se como um par análogo da ontologia, que, com base nas considerações precedentes, podemos definir como ‘ciência da voz suprimida, isto é, da Voz’. Existe no pensamento de Heidegger algo como um ‘pensamento da Voz’, mas cuja relação essencial entre linguagem e morte tem, para a metafísica, o seu lugar na Voz. Ter experiência da morte como morte significa efetivamente fazer experiência da supressão da voz e do surgimento, em seu lugar, de outra Voz, que constitui o originário fundamento negativo da palavra humana. A Voz, portanto, não diz nada, não quer-dizer nenhuma proposção significante: ela indica e quer-dizer o puro ter lugar da linguagem, é, pois, uma dimensão puramente lógica. A Voz é a dimensão ética originária, na qual o homem pronuncia seu sim à linguagem e consente que ela tenha lugar.

Morada habitual e hábito, ou seja, o êthos do homem, que se encontra para a filosofia, já sempre cindido e ameaçado por um negativo. Um dos mais antigos testemunhos no qual a filosofia se põe a pensar o êthos caracteriza, deste modo, a morada habitual do homem. O êthos, a morada habitual é, para o homem, o lugar da cisão – aquilo que ele jamais pode apreender sem receber daquilo uma laceração e uma fissura –, o lugar onde jamais pode estar verdadeiramente desde o início, mas aonde pode somente no fim regressar. É possível que o ser não esteja à altura do simples mistério do ter do homem, da sua habitação assim como do seu hábito? Estar na linguagem sem ser aí chamado por nenhuma Voz, simplesmente morrer sem ser chamado pela morte é, talvez, a experiência mais abissal; mas esta é precisamente, para o homem, também a experiência mais habitual, o seu êthos, a sua morada que, na história da metafísica, já se apresenta sempre demonicamente cindida em vivente e linguagem, natureza e cultura, ética e lógica e é, por isso, atingível, apenas na articulação negativa de uma Voz. Pensa-se, neste seminário, a Voz a partir de seu cancelamento, ou melhor, pensa-se a Voz como jamais sida, no seu lugar, morada sem vontade e sem Voz, esta morada é o aqui resta a pensar. Trata-se, em última instância, de um tal ‘fazer interdito’, que fornece à sociedade e à sua infundada legislação a ficção de um início: o que é excluído da comunidade é, na realidade, aquilo sobre o qual se funda a inteira vida da comunidade e é assumido por ela como um passado imemorável e, todavia, memorável.

O homem é o animal que possui a linguagem, enquanto o in-fundado tem fundamento na própria violência, no próprio fazer: facere sacrum (sacrifício, ‘fazer interdito’, afetado pela sacralidade, sacro, acessível apenas a certas pessoas e de acordo com regras determinadas). Noção ambígua esta de sacro, que significa tanto a lei quanto designa quem a viola. Que o sacrifício seja um assassínio, isso nós bem conhecemos, que não seja casual e que por isso mesmo seja violento: violência esta que em si não explica nada, todavia, aliás, por sua vez, essa mesma violência necessita de explicação. A inaturalidade da violência humana é uma produção histórica do homem e é implícita na própria concepção da relação entre natureza e cultura, entre vivente e logos na qual o homem funda a própria humanidade. Não é próprio ao homem ser um indizível, que permanece não dito em toda praxis e em toda palavra humana: ele é antes a própria praxis social e a própria palavra humana, tornadas transparentes a si mesmas. Mas a ‘transmissão indizível’ continua a dominar a tradição da filosofia: em Hegel, como aquele nada, que é preciso abandonar à violência da história e da linguagem para dele extrair a aparência do início e do imediato; em Heidegger, como o sem nome que, permanecendo não dito em toda palavra e em toda transmissão, destina o homem à tradição e à linguagem. É certo que em ambos os casos, o pensamento se propõe a absolução do homem da violência do fundamento. Assim como o fundamento da violência é a violência do fundamento.

O Ser e o Nada: Ensaio de Ontologia Fenomenológica (Jean-Paul Sartre)


O pensamento moderno realizou progresso considerável ao reduzir o existente à ‘série de aparições’ que o manifesta. Visava-se com isso suprimir certo número de dualismos, um deles, talvez o mais importante e primeiro tenha sido esse dualismo que no existente opõe o interior e o exterior. As aparições que manifestam o existente equivalem-se entre si, remete-se a todas as outras aparições. As aparições não são exteriores nem interiores: as aparências, em geral, apenas se remetem às aparências. Trata-se, sobretudo de compreender que a aparência revela a essência, afinal o ser de um existente é o que ele aparenta, ou seja, destaca-se o fenômeno como ‘relativo-absoluto’. Então, a aparência revela a essência, eis a lei que preside as sucessões de suas aparições, é a razão da ‘série’, isto é, a essência como razão da série é apenas o liame das aparições. O ser fenomênico se manifesta, portanto, ao manifestar tanto a sua essência quanto a sua aparência em uma série bem interligada. Neste sentido, a teoria dos fenômenos substitui a realidade da coisa pela objetividade do fenômeno, que se mostra transcendente, mas o sujeito transcende a aparição rumo à série total a que faz parte. Se a essência está apartada da aparência individual que a manifesta, assim compreende-se o ‘ser da aparição’ ou a ‘essência da aparição’ como um ‘aparecer’ que não se opõe a nenhum ser.

Enquanto a aparição possui o seu ser próprio – o ‘ser da aparição’ –, o ‘fenômeno do ser’ é o que se manifesta, o ser manifesta a todos de algum modo, dele se fala e temos compreensão, por isso deve haver um fenômeno de ser. A essência é o sentido do objeto, a razão de aparições que o revelam, mas o objeto não possui ser. O existente é o fenômeno, que se designa a si como conjunto organizado de qualidades. De modo que o ser é simplesmente a condição de todo desvelar, de outro modo, a aparição necessita de um ser com base no qual possa desvelar. Se há algo que possa medir a aparição, isso será o fato de que ela aparece, limitando a realidade ao fenômeno, então, diz-se que o fenômeno é tal como aparece.

A lei do sujeito cognoscível é ser-consciente. A consciência não é um modo particular de conhecimento, mas se define pela dimensão de ser transfenomenal do sujeito. Em outras palavras, toda consciência é consciência de algo, ou melhor, não há consciência que não seja posicionamento de um objeto transcendente, em suma, a consciência não tem ‘conteúdo’. Desta forma, toda consciência é posicional, pois transcende para alcançar um objeto. Se toda minha intenção está voltada para o exterior, então toda consciência cognoscente só pode ser conhecimento de seu objeto. Uma condição fundamental para que a consciência seja conhecimento de seu objeto é que ela seja ‘consciência de si’, ou seja, como sendo este próprio conhecimento. Primeiramente, uma consciência dirige-se para algo que não é ela, ou seja, trata-se de uma ‘consciência refletida’, assim, ela se transcenderia e se esgotaria visando seu objeto, como consciência posicional do mundo, mas este objeto não deixaria de ser uma consciência. Em seguida, compreende-se, pois porque ‘saber é ter consciência de saber’ ou ‘saber é saber que se sabe’.

Toda consciência de si não deve ser considerada como uma nova consciência, mas o único modo de existência possível para uma consciência de alguma coisa. Enfim, a consciência surge no ser, cria e sustenta sua essência (em uma ordenação sintética de suas possibilidades). A consciência é plenitude de existência e determinação de si por si, de tal sorte que a consciência existe por si. A consciência é, portanto, pura aparência, só existe na medida em que aparece: um vazio total (já que o mundo inteiro se encontra fora dela). A consciência pode ser considerada o absoluto (ou seja, ‘o sujeito da mais concreta das experiências), por causa dessa identidade que nela existe entre aparência e existência.

A subjetividade não deixa de ser uma espécie de imanência de si a si. Para tanto, capturamos um ser que tanto nos escapa ao conhecimento quanto o fundamenta, mas é o pensamento que é capturado enquanto estrutura do ser. De um lado, o conhecido não poderá ser atribuído pelo conhecimento, de outro, torna-se preciso que lhe seja reconhecido um ser: este ser é o percepi. A relatividade e a passividade caracterizam o modo de ser do percepi. Ressalta-se que a passividade é um fenômeno duplamente relativo: relativo à atividade daquele que atua e à existência daquele que padece. Em outros termos, a passividade não se refere a um ser existente passivo, mas à relação de um ser a outro ser. Neste aspecto, a passividade e a percepção são puras atividades, espontaneidade que nada pode capturá-las. Por ser espontaneidade pura, nada pode capturar a passividade, com efeito, a consciência não pode agir sobre nada. Assim, exige-se que a consciência conserve seu nada de ser (total absoluto) ao mesmo tempo depara-se com a relação entre a consciência e os existentes independentes dela, em uma palavra, hylé: fluxo puro do vivido e matéria das sínteses passivas. O ser percebido está diante da consciência, mas existe apartado dela, de sua própria existência. A relatividade e a passividade referem-se às maneiras de ser, não se aplicam ao ser.

Toda consciência é consciência de alguma coisa em dois sentidos, por um lado, como constitutiva do ser do objeto, por outro, com relação a um ser transcendente. A consciência é uma subjetividade real e a impressão, uma plenitude subjetiva. O ser do fenômeno depende da consciência, contanto que o objeto se distinga da consciência, não por sua presença, mas por sua ausência, seu nada. Se o ser pertence à consciência, então o objeto é um não-ser. Portanto, o ser do objeto é um puro não-ser, o que se define como falta, aquilo que se esconde. As coisas se dão por aparições, cada uma remete a outras, cada uma é plenitude de ser uma presença. O objetivo não sai do subjetivo, nem o transcendente da imanência, tampouco o ser do não-ser. A transcendência é uma estrutura constitutiva da consciência, que nasce com o objetivo de um ser que ela não é. A subjetividade é, pois, a consciência de ter consciência.

A consciência deve ser produzida como revelação – revelada – de um ser que ela não é e que se dá como existente quando ela o revela. A consciência é um ser cuja essência implica a existência, ou seja, a aparência exige ser. Aplica-se à consciência a formulação que Heidegger reservou ao Dasein: um ser para o qual, em seu próprio ser, está em questão o seu ser. Complementa-se essa proposição do seguinte modo: a consciência é um ser para o qual, em seu próprio ser, está em questão o seu ser enquanto este implica outro ser que não si mesmo. O ser é si-mesmo. Em primeiro lugar, porque todo o juízo sobre o ser já implica o ser. Em segundo lugar, pois o fenômeno de ser revela-se à consciência. Em terceiro lugar, por isso exige-se uma elucidação a partir da revelação-revelado. Por fim, desvelam-se duas regiões do ser, o ser do cogito pré-reflexivo e o ser do fenômeno. Trata-se de uma concepção realista das relações entre o fenômeno e a consciência.

O homem é ativo e os meios que emprega são passivos. O ser não é ativo, o ser é si, não é relação a si. O ser é em si, é este si mesmo, não remete a si. O ser pode estar além do si, porque está pleno de si. O ser é o que é. O princípio contingente do ser-Em-si é ser o que se é –, o que se traduz como opacidade do ser-Em-si. O Em-si pode ser designado como uma síntese ‘de si consigo mesmo’. Se o ser está isolado em seu ser, é porque é o que é por si mesmo: desconhece a alteridade, não se coloca como outro. O ser-Em-si é. Ordenado de uma seguinte forma tem-se: O ser é. O ser é em si. O ser é o que é. De modo amplo, partiu-se das aparições para se estabelecer dois tipos de seres: o Em-si e o Para-si, ainda sob informações superficiais e por demais incompletas.

O ‘concreto’ é uma totalidade capaz de existência por si mesma, ou melhor, uma coisa espaço-temporal com todas as suas determinações. Refere-se a uma totalidade da qual consciência e fenômeno são apenas momentos. A relação entre as regiões do ser nasce de uma fonte primitiva, parte da estrutura dos seres. Interroga-se, pois a totalidade do homem no mundo, ‘ser-no-mundo’, a cada uma das condutas humanas como sendo condutas do homem no mundo, revelando o homem, o mundo e as relações que os une. Uma conduta privilegiada é a que se traduz sobre o homem que sou (apreendido num momento e no mundo), frente ao ser em atitude interrogativa. Toda interrogação presume um ser que interroga e outro interrogado. Decerto, interrogamos o ser interrogado sobre alguma coisa, mas interrogamos o ser principalmente sobre suas ‘maneiras de ser’ ou sobre seu ser. Para qualquer investigador existe a possibilidade de uma resposta negativa, obviamente não se sabe se a resposta vai ser negativa ou positiva. Parte-se, enfim, em busca do ser, do seu núcleo, através da série de nossas indagações. A possibilidade permanente do não-ser, fora de nós e em nós, condiciona nossas perguntas sobre o ser. O não-ser é o novo componente do real. A negação é uma qualidade do juízo, deste modo, o ‘nada’ tem sua origem nos juízos negativos.

O ser-Em-si interrogado sobre a negação remeteria ao juízo, enquanto o juízo (plena positividade psíquica) remeteria ao ser. A negação é o resultado por operações psíquicas concretas e está sustentada por elas. A negação é incapaz de existir por si, ela reside no seu percepi. A negação acha-se na origem do nada, mas o nada é uma estrutura real, que origina e fundamenta a negação. Ressalta-se a negação sobre seu fundo primitivo de uma relação entre o homem e o mundo. Igualmente, destaca-se uma revelação do ser que se possa emitir juízo. Se eu espero uma revelação ao ser é porque estou preparado para o eventual não-ser. A relação ‘não está’, ela é pensadamas é o juízo da negação que está sustentado pelo não-ser. As indagações são feitas por um homem a outros homens, nota-se que muitas condutas trazem sua compreensão imediata do não-ser sobre o fundo do ser. A destruição, por exemplo, afinal o homem é o único ser pelo qual pode realizar uma destruição. Para a destruição é necessário uma relação entre o homem e o ser (uma transcendência). Assim, a nadificação é um recorte limitativo de um ser no ser, observa-se com a seguinte proposição: o ser considerado é isso e, fora disso, nada. A negação é recusa de existência, por meio dela um ser é colocado e depois relegado ao nada. O ser é descoberto como frágil, sempre além de toda destruição possível. O exame da ‘conduta da destruição’ nos leva, portanto, aos mesmos resultados da ‘conduta interrogativa’.

A conduta da interrogação se converte em simples apresentação, oscilando entre o ser e o nada. Na pergunta interrogamos um ser sobre o seu ser ou modo de ser, assim fica sempre em aberto a revelação do nada como possível. Desvela-se a interrogação e a sua negatividade, que é introduzida no mundo. Reconhece-se um processo humano em que o homem torna-se um ser que faz surgir o nada no mundo. Observa-se um paralelismo entre as condutas humanas frente ao ser e as condutas que o homem tem frente ao nada. Hegel estudou na Lógica as relações entre o ser e o não-ser, em que o concreto é o existente, com sua essência. Assim, para Hegel, o ser se reduz a uma significação do existente, que está envolvido pela essência (seu fundamento e origem), bem como o ser é condição de todas as estruturas e momentos (fundamento em que se manifestam os caracteres do fenômeno). Nesta perspectiva o ‘ser puro’ é determinado pelo entendimento, que só encontra no ser aquilo que o ser é. Há forças recíprocas de expulsão que ser e não-ser exercem um sobre o outro, onde o real é a tensão resultante dessas forças antagônicas. Entrementes, Hegel observa que o ser e o nada são dois contrários – simples modos de pensar; então, Hegel faz passar o ser ao nada, por introduzir a negação na definição de ser: o nada supõe o ser para negá-lo.

Indagar a legitimidade da interrogação sobre o ser foi um dos problemas que se propôs Heidegger. Há numerosas atitudes da ‘realidade humana’ que implicam uma compreensão do nada. É próprio do Dasein encontrar-se frente ao nada. O Dasein está fora de si, no mundo, e é um ser das lonjuras, pois ele não é em si e nem lhe está próximo. A filosofia de Heidegger é compreendida, nessa perspectiva, sob o uso de termos positivos, que mascaram negações implícitas para se descrever o Dasein. Aqui tanto a negação se fundamenta no nada como o nada fundamenta a negação, que compreende o ‘não’ em sua estrutura. Assim, o nada é a origem do juízo negativo, porque é negação e fundamenta a negação como ato e como ser. Então, não poderia ser de outro modo, a realidade humana se apresenta como emergência do ser no não-ser – o mundo está suspenso no nada (transcendência do mundo): o Dasein capta, pois a contingência do mundo. Questiona-se tanto em Hegel como em Heidegger uma atividade negadora que se apresenta sem a preocupação de se fundamentar num ser negativo.

Afirma-se que as relações entre o homem e o mundo são indicadas pela negatividade. Que a aparição do homem a um meio [o meio do ser] faz-se descobrir um mundo. Em seguida, que o momento essencial dessa aparição é a negação, portanto o homem é o ser pelo qual o nada vem ao mundo. Busca-se definir o homem condicionado à aparição do nada, mas ser que nos aparece como liberdade. Trata-se de uma liberdade em conexão com o nada, na medida em que o condiciona em sua aparição. A condição para a realidade humana é negar o mundo e ao mesmo tempo é carregar em si o nada como quem separa seu presente e seu passado. A liberdade pode ser definida a partir do momento em que o ser humano passa a jogar o seu passado fora e, com efeito, quando passa a segregar seu próprio nada? Procura-se não só repelir com todas as forças a situação ameaçadora, mas projetar diante de si condutas futuras destinadas a afastar as ameaças do mundo: essas condutas são as nossas possibilidades? Angustiamo-nos porque nossas condutas são apenas possíveis, definidas por um conjunto de motivos que virtualmente repeleriam uma dada situação, mas de um modo ou de outro identificamos esses motivos como ineficazes. Se pudéssemos interrogar temporariamente essa obra, a partir de poucas frases, arriscaríamos: a consciência específica da liberdade é a angústia? Ou nós é que buscamos estabelecer a angústia como consciência de liberdade?

domingo, 1 de novembro de 2009

A Genealogia da Moral (Friedrich Nietzsche)


Há um aspecto no homem que lhe fatiga; essa fadiga é o niilismo: o homem fatiga-se do homem. O homem, animal mais valoroso e enfermiço, não repele a dor, antes a procura, contanto que lhe digam o porquê. Assim o ideal ascético apresenta sua finalidade e explica a dor ao fazer uma interpretação que traz uma dor nova e mais profunda, mais íntima, ao mesmo tempo diz que era o castigo de uma falta. No entanto, o homem já não era mais uma folha levada ao vento, fosse o que fosse: ‘estava salva a vontade’. A natureza desta direção asceta que se segue através do ódio a tudo quanto era humano (aos sentidos, ao desejo, animal, material, ao esforço), tudo isso significa uma ‘vontade de aniquilação’. O homem ‘livre’, senhor de vasta e indomável vontade, acha em sua posse uma ‘tábua de valores’. Para julgar, fundado em si mesmo, respeita ou despreza: venera os seus semelhantes (fortes, soberanos) e está disposto a dar um pontapé nos miseráveis: o homem soberano chama-se ‘consciência’. Onde quer que exista a justiça se vê um poder forte em frente de poderes fracos, que procura por um termo aos insensatos furores do ressentimento, não só arrancando-lhe com mãos vingadoras, mas declarando guerra aos inimigos da paz, da ordem e inventando compromissos que impõem a força de lei a certas equivalências dos prejuízos – a todo um sistema de obrigações morais. Por mais estranho que hoje isto possa parecer: ‘nada custou mais caro do que esta migalha de razão e de liberdade, que hoje nos envaidece’. Toda essa maquinação infernal chamada reflexão: a razão, a gravidade, o domínio das paixões... e todos os privilégios pomposos do homem, como custaram caro! Quanto sangue, quanta desonra se encontra no fundo de todas essas ‘coisas boas’! Cada passo que o homem deu sobre a terra custou-lhe muitos suplícios intelectuais e corporais – tudo pode ter passado adiante e atravessado todo o movimento, mas em troca teve-se inúmeros mártires.

Todas as raças nobres deixaram vestígios de barbárie à sua passagem. Esta audácia das raças nobres, audácia louca, absurda, espontânea; a sua indiferença e o seu desprezo do bem-estar, da vida; a alegria terrível e profunda em toda a destruição, os prazeres da vitória e da crueldade, tudo isso, na imaginação das vítimas se resumia na ideia de ‘bárbaro’, ‘maligno’, ‘vândalo’. Por isso, no fundo destas raças aristocráticas é impossível não reconhecer a fera – o bruto de louros cabelos em busca de presa – este fundo de bestialidade mostra-se de quando em quando: a aristocracia romana, árabe, germânica, japonesa ou os heróis homéricos, vikings escandinavos, todos são iguais a esse respeito. Por outro lado, qual é o sentido da palavra ‘bom’, segundo a etimologia, nas diversas línguas? Através das palavras e raízes que significam ‘bom’, transparece o matiz principal pelo qual os ‘nobres’ se tinham por homens de uma classe superior. Em toda a parte, a ideia de ‘distinção’ e de ‘nobreza’ é, no sentido de ordem social, a idéia-mãe donde nasce e se desenvolve a concepção de ‘nobreza’ como privilegiada quanto à alma. Este desenvolvimento foi paralelo à transformação das noções ‘vulgar’, ‘plebeu, ‘baixo’ na noção de ‘mau’. Um exemplo dessa metamorfose é a palavra alemã schlecht [mau] que é idêntica à palavra schlicht [simples], em cuja origem designava o homem simples, o homem plebeu. O latim malus pode designar o homem plebeu de cor morena e de cabelos pretos, o autóctone pré-ariano do solo itálico que se distinguia muito, pela sua cor, da raça dominadora e conquistadora dos loiros arianos. Ao menos o gaélico subministra-se indício semelhante: a palavra ‘fin’, por exemplo, ‘Fin gal’, é um termo distintivo da nobreza e que, em última análise, significa ‘o bom’, ‘o nobre’, ‘o puro’, que significava antigamente ‘o de cabelos loiros’ em oposição ao autônomo de cabelos negros. Crê-se poder interpretar o latim bonus por ‘o guerreiro’: levando-se bonus à sua forma antiga de duonus [comparado a bellum duellumduenlum, donde parece conservar duonus]. Com efeito, bonus seria o homem da disputa [duo], o guerreiro: eis o que constitui a bondade de um homem da Roma antiga. E a nossa palavra alemã gut [‘bom’] não significaria der Goettlich [‘o divino’], o homem de origem divina?

Os dois valores opostos ‘bom e mau’, ‘bem e mal’, mantiveram durante milhares de anos um combate largo e terrível e ainda que, há muito tempo que o segundo valor logrou vantagem, não faltam ainda hoje terrenos onde a luta continua com variado êxito. O símbolo desta luta: ‘Roma contra Judéia, Judéia contra Roma’. Roma via no judeu uma natureza oposta à sua: um antípoda monstruoso. Os romanos eram fortes e nobres, enquanto os judeus eram um povo levita e rancoroso por excelência. Qual dos povos venceu? Roma ou Judéia? Note-se que na mesma Roma e em metade do mundo ou em toda parte onde o homem está civilizado ou tende a sê-lo, a humanidade inclina-se diante de três judeus e uma judia: Jesus de Nazaré, Pedro, Paulo e Maria, mãe de Jesus. Este é um fato notável. Roma foi vencida. Jesus de Nazaré, encarnado de amor e ‘Salvador’, trouxe aos pobres, aos enfermos e aos pecadores a bem-aventurança e a vitória, não deixava de ser precisamente a sedução mais irresistível que havia de conduzir aos homens e adaptá-los aos valores judaicos. Que coisa mais sedutora não é este símbolo da ‘santa cruz’, esta crueldade louca de um Deus que se crucifixa ele mesmo ‘pela salvação’ da humanidade?

Tudo o que na Terra se fez contra os ‘nobres’ (poderosos, senhores, governantes) não se pode comparar com o que fizeram os ‘judeus’. Os judeus se vingaram dos seus dominadores por uma radical mudança dos valores morais, uma vingança essencialmente espiritual. Só um povo de sacerdotes podia obrar assim, com uma lógica formidável, atiraram por terra a aristocrática equação dos valores: bom, nobre, poderosos, amado por Deus. Com encarniçado ódio, os judeus afirmaram: ‘só os desgraçados são bons; os que sofrem e os enfermos, os necessitados, os pequenos são bons. Com os judeus começou a emancipação dos escravos da moral. Esclarece-se que o ‘mau’ do aristocrata e o ‘maligno’ do rancoroso apresentam um singular contraste: o primeiro é uma criação posterior, um acessório, complementar; o segundo é a ideia original, o começo – o ato por excelência na concepção de uma ‘moral dos escravos’. O juízo da aristocracia segue-se na guerra, nas aventuras, na caça, na dança, nos jogos e em exercícios físicos que implicam uma ação robusta, livre e alegre; enquanto os sacerdotes são inimigos mais malignos, porque são mais impotentes, o que faz crer um ódio monstruoso, sinistro, intelectual e venenoso. De um lado, toda amoral aristocrática nasce de uma triunfante afirmação de si mesma, a ‘moral dos escravos’ opõe um ‘não’ a tudo o que não é seu – ‘não’ que por si só é o seu ato criador. Essa mudança total está sob o ponto de vista do ódio: a moral dos escravos necessitou sempre de estimulantes externos para entrar em ação; a sua ação é uma reação. A rebelião dos escravos na moral começou quando o ódio começou a produzir valores.

O homem designa-se a si mesmo como ser que estima valores, que aprecia e avalia por excelência: a compra e a venda, os seus corolários psicológicos são anteriores às origens de toda a organização social e o sentimento que nasceu da troca (do contrato, da dívida, do direito, da obrigação, da compensação) transportou-se logo para os complexos sociais mais primitivos ou mais grosseiros no mesmo tempo que o hábito de comparar uma força com a outra, de as medir e calcular. Fixar preços, estimar valores, imaginar equivalência, cambiar, tudo isto preocupa o pensamento primitivo que, em certo sentido, é o pensamento mesmo. Por meio das relações entre credor e devedor, pela primeira vez, a pessoa opôs-se à pessoa e mede-se com ela. Através dessa relação contratual entre credor e devedor, tão antiga quanto a de ‘sujeição moral’, todos foram levados às formas primitivas da compra e venda, do câmbio. Nos modernos, as relações da comunidade com seus membros são as de um credor com seus devedores. O culpado não é senão um violador do compromisso; falta à sua palavra para com a comunidade que lhes assegurava tantas regalias. O culpado é um devedor que não só não paga as suas dividas como também ataca o credor. O credor, por seu turno, humanizou-se conforme foi se enriquecendo; como no fim, sua riqueza mede-se pelo número de prejuízos que pode suportar – até se concebe uma sociedade com tal consciência do seu poderio, que se permita o luxo de deixar impunes os que a ofendem. Consiste, entretanto, um ‘princípio de equivalência’ que se descreve: em lugar de um benefício que compensasse diretamente o dano causado, concede-se ao credor certa satisfação e gozo à maneira de compensação e pensamento, a satisfação de exercer impunemente o seu poderio com respeito a um ser reduzido à impotência, o deleite de fazer o mal pelo gosto de o fazer, a alegria de tiranizar. Como pode a dor compensar as dívidas? O ‘fazer’ sofrer causava um prazer imenso à parte ofendida: fazer sofrer! Isto era uma verdadeira ‘festa’! Tanto mais grata quanto mais era o contraste entre a posição social do credor e do devedor. Ver sofrer, alegra; fazer sofrer, alegra mais ainda: há nisto uma antiga verdade ‘humana’ – sem crueldade não há gozo, o castigo é uma festa. O castigo tem a propriedade de despertar no culpado o ‘sentimento da falta’, ou seja, o verdadeiro instrumento desta reação psíquica que denomina ‘remorso’, ‘má consciência’. Então veio ao mundo, a maior e mais perigosa de todas as doenças: a ‘má consciência’ e o ‘homem doente de si mesmo’.

O sacerdote ascético dever ser o salvador predestinado, o pastor e defensor do rebanho doente, sua prestigiosa missão histórica. Eis o papel, a arte e a maestria do sacerdote ascético: a ‘dominação sobre os doentes’. É preciso que o sacerdote seja também doente, para se entender com eles, mas é preciso que seja forte, a fim de possuir a confiança dos doentes e ser para eles um amparo, um escudo, um deus, um tirano. Não resta dúvida que o homem seja o animal mais doente, mais incerto e mais inconsciente: é o animal doente por excelência, mas donde lhe veio isto? Grande experimentador de si próprio, o insaciável, que luta para reinar sobre os animais e a Natureza, sobre os deuses, o indomável e de futuro esterno; como o homem não haveria de estar exposto a doenças mais largas e terríveis? Quem não percebe por todos os lados uma atmosfera de um manicômio e de um hospital em todas as partes do mundo civilizado, europeizado. Os doentes são o maior perigo da humanidade e não os maus, as ‘feras de rapina’. O asceta apareceu, contudo em todos os tempos e em todas as classes sociais. A vida ascética é uma guerra intestina, um flagrante de contradição, converte-se em alegria e em triunfo toda dor íntima: o ideal ascético combateu sempre debaixo desta bandeira – no símbolo da agonia achou a sua luz mais pura, a sua salvação, a sua vitória definitiva. Em uma só palavra; o sacerdote ascético é um homem que muda a direção do ressentimento. Os meios que se empregam contra a dor são os que reduzem a vida à sua expressão menor possível: nada de vontade, nada de desejo, nada de paixão, nada de sangue; não comer sal, não amar, não odiar; não se perturbar, não se vingar; não se enriquecer, não trabalhar, mendigar; nada de mulheres, ou o menos possível; quanto ao intelecto – bestializar-se. Resultado em linguagem moral: aniquilamento do eu, santificação; e em termos fisiológicos: hipnotizado, hibernação, mínimo de assimilação compatível com a vida. Então para arrancar da consciência a dor, é necessária uma paixão e um pretexto para a excitar: esta não deixa de ser uma maneira própria do doente e quanto mais esteja oculta a verdadeira causa de seu mal. “Eu sofro, alguém tem culpa”. Assim discorrem todas as ovelhas. E então o pastor lhes responde: “É verdade, minha ovelha; alguém tem culpa; mas és tu mesma; os teus pecados são a causa do teu mal”. Isto é atrevido e soa até muito falso, mas obtém-se com isso um fim: ‘mudar a direção do ressentimento’. Tudo isto é ascetismo em alto grau... é niilismo. Nota-se no observador um olhar triste, duro, resoluto (‘olha para o longe’). Não vê mais do que neve, não há vida; as gralhas dizem: “E para quê?” Em vão! “Nada!” Nada cresce; talvez a metafísica russa de Tolstoi?

sábado, 31 de outubro de 2009

Gramatologia (Jacques Derrida)



E tudo acontece como se, deixando de designar uma forma particular, derivada, auxiliar da linguagem em geral, o ‘significante do significante’ – o conceito de escritura – começava a ultrapassar a extensão da linguagem. Em todos os sentidos, escritura compreenderia a linguagem. Não que a palavra escritura deixe de designar o significante do significante, mas descreve o movimento da linguagem: na sua origem, cuja estrutura se soletra como ‘significante do significante’, apaga-se a si mesma na sua própria produção. Até mesmo o significado aí funciona desde sempre como um significante, não há significado que escape, mais cedo ou mais tarde, ao jogo das remessas do significante que constitui a linguagem.

O privilégio da phoné não depende de uma escolha. O sistema do ‘ouvir-se-falar’ através da substância fônica – que se dá como significante não-exterior, não-empírico, não-mundano teve de dominar durante toda uma época a história do mundo, até mesmo produziu a ideia de (origem do) mundo, a partir da diferença entre o mundano e o não-mundano, o fora e o dentro, a idealidade e a não-idealidade, o transcendental e o empírico, etc. A ‘racionalidade’ que comanda a escritura assim ampliada e radicalizada, não é mais nascida de um logos e inaugura a destruição e a desconstrução (de-sedimentação) de todas as significações que brotam da signifi-cação de logos e, em especial, a significação de verdade. Dentro deste logos nunca foi rompido o liame origi-nário com a phoné. A essência da phoné estaria imediatamente próxima daquilo que, no ‘pensamento’ como logos, tem relação com o sentido. Entre o ser e a alma, as coisas e as afecções, haveria uma relação de tradução ou de significação natural; entre a alma e o logos, uma relação de simbolização convencional. E a primeira convenção, a que se referiria imediatamente à ordem da significação natural e universal, produzir-se-ia como linguagem falada. A linguagem escrita fixaria convenções, que ligariam entre si outras convenções.

A voz é o que está mais próximo do significado, tanto quando este é determinado rigorosamente como sentido (pensado ou vivido) como quando o é, com menos precisão, como coisa. Com respeito ao que uniria indis-soluvelmente a voz à alma ou ao pensamento do sentido do significado, e mesmo à coisa mesma, todos os significantes, e em primeiro lugar o significante escrito, seria derivado: seria sempre técnico e representativo. Esta derivação é a própria origem da noção de ‘significante’. O que é dito a respeito do som em geral vale a fortiori para a fonia, pela qual, em virtude do ouvir-se-falar o sujeito afeta-se a si mesmo e refere-se a si no elemento da idealidade. A época do logos rebaixa a escritura; pertenceria a esta época a diferença (ou mútua exterioridade, ou estranho desvio de ‘paralelismo’) entre significado e significante.

A diferença entre significante e significado pertence de maneira implícita à grande época abrangida pela história da metafísica e de maneira explícita à época do criacionismo e do infinitismo cristãos, quando se apoderam dos recursos da conceitualidade grega. A ‘ciência’ semiológica ou linguística não pode conservar a diferença entre significante e significado – a própria ideia de signo – sem a diferença entre o sensível e o inteligível e sem conservar a referência a um significado que possa ocorrer antes de sua ‘queda’ e de toda expulsão para a exterioridade do ‘este mundo’ sensível. A face inteligível do signo permanece voltada para o lado do verbo e da face de Deus. O signo e a divindade têm o mesmo local e a mesma data de nascimento – a época do signo é teológica, não terminará talvez nunca, sua clausura histórica está desenhada.

O conceito de signo marca a sua pertença metafísica, contudo sua temática é o trabalho de agonia de uma tradição que pretendia subtrair o sentido, a verdade, a presença, o ser, etc. –, ao movimento de significação. A exterioridade do significante é, com efeito, a exterioridade da escritura, demonstra-se, pois que não há signo linguístico antes da escritura. Mesmo quando a coisa, o ‘referente’, não está imediatamente em relação com o logos de um deus criador onde ela começou como sentido falado-pensado, o significado tem uma relação imediata com o logos em geral, mediata com o significante, com a exterioridade da escritura. Se isso não acontecer, uma mediação metafórica se insinuou na relação e simulou uma imediatez: a escritura da verdade na alma.

A língua tem, portanto, uma tradição oral independente da escritura – derivada porque representativa: significante do significante primeiro; representação da voz presente a si, da significação imediata, natural e direta do sentido. Este factum da escritura fonética é maciço e é verdade, comanda toda nossa cultura. Se a palavra (vox) já é uma unidade do sentido e do som, do conceito e da voz, trata-se de conservar o termo ‘signo’ para designar o total, mas substitui-se ‘conceito’ e ‘imagem acústica’ respectivamente por significado e significante, numa linguagem saussuriana. As relações entre a fala e a escritura consideram as unidades indivisíveis do ‘pensamento-som’: a escritura será fonética (o fora, representação exterior da linguagem) deste ‘pensamento-som’. A escritura (letra, inscrição sensível) sempre foi considerada pela tradição ocidental como corpo e matéria exteriores ao espírito, ao sopro, ao verbo e ao logos. Assim, uma ciência da linguagem deveria reencontrar relações ‘naturais’ (simples e originais) entre a fala e a escritura, entre um dentro e um fora: haveria então uma natureza das relações entre ‘signos lingüísticos’ e ‘signos gráficos’. Insuportável e fascinante esta intimidade que enreda a imagem à coisa, a grafia à fonia, de tal modo que a fala parece o speculum da escritura que usurpa o papel principal. A escritura é, enfim, a dissimulação da presença natural, primeira e imediata o sentido à alma no logos, sua violência sobrevém à alma como inconsciência. Desta forma, é preciso proteger a vida espontânea, pois no interior da escritura fonética comum não se permite a exatidão nem a exigência científica: a racionalidade seria, neste sentido, portadora de morte, desolação e de monstruosidade – é um afastamento da natureza, sob uma perversão do artifício que engendra monstros. Desta espécie de ‘psicologia da consciência’ e da ‘consciência intuitiva’ diz-se que a escritura fonética não existe – nunca nenhuma prática é puramente fiel ao seu princípio – talvez porque o simbolismo vazio da notação escrita seja o que nos exila para longe da evidência clara de sentido, da presença plena do significado na sua verdade, abrindo uma possibilidade de crise, uma crise do logos.

Resta que o ‘conceito de grafia’ implica, como possibilidade comum a todos os sistemas de significação, a instância de ‘rastro instituído’ – ‘imotivado’, não parte da ideia de que o significante dependa da livre escolha do que fala, simplesmente não tem nenhuma amarra natural com o significado na realidade. A ‘imotivação’ do signo requer uma síntese em que o totalmente outro se anuncia como tal. O rastro articula sua possibilidade sobre todo o campo do ente, onde se imprime a relação ao outro, que a metafísica determinou como ente-presente a partir do movimento escondido do rastro. O movimento do rastro é, entretanto, necessariamente ocultado, produz-se como ocultação de si – quando o outro se anuncia como tal, apresenta-se na dissimulação de si. O campo do ente, antes de ser determinado como campo de presença, estrutura-se conforme as diversas possibilidades – genéticas e estruturais – do rastro. A estrutura geral do rastro imotivado faz comunicar na mesma possibilidade a estrutura da relação com o outro, de tal modo que não existe rastro imotivado, afinal o rastro é indefinidamente seu próprio vir-a-ser-imotivado.

Não se pode pensar o rastro instituído sem pensar a retenção da diferença numa estrutura onde a diferença aparece como tal e permite assim certa liberdade de variação entre os termos plenos, deste modo, a diferença não é pensada sem o rastro. Por sua vez, o rastro (puro) é diferência, que não depende de nenhuma plenitude sensível (audível, visível, fônica, gráfica), mas é a condição desta plenitude; embora não exista, sua possibilidade é anterior a tudo que se denomina signo, conceito, motriz ou sensível. A diferência é a formação da forma, portanto, mas ela também é o ser impresso da impressão.

A Gramatologia não deve ser uma das ciências humanas nem uma ciência regional dentre elas, porque coloca em questão o nome do homem. Liberar a unidade do conceito do homem é renunciar à velha ideia dos povos ditos ‘sem escritura’, ‘sem história’. Em vez de recorrer aos conceitos que servem habitualmente para distinguir o homem dos outros viventes, apela-se à noção de ‘programa’, no sentido, por exemplo, da cibernética, que é inteligível a partir de uma história das possibilidades do rastro como unidade de um movimento que faz aparecer o grama como tal e possibilita o surgimento dos sistemas de escritura no sentido estrito. Da ‘inscrição genética’ e das ‘curtas cadeias’ programáticas que regulam o comportamento da ameba ou do anelídeo até a passagem para além da escritura alfabética às ordens do logos e de um certo homo sapiens – a possibilidade do grama estrutura o movimento de sua história segundo níveis e ritmos rigorosamente originais. A história da escritura se erige sobre o fundo da história do grama como aventura das relações entre a face e a mão.

O fonologismo é a exclusão ou o rebaixamento da escritura, no interior tanto da linguística quanto da metafísica, mas não deixa de ser também a autoridade atribuída a uma ciência que deseja considerar como o modelo de todas as ciências ditas humanas. O que é a descendência na ordem do discurso e do texto? Textos de Claude Lévi-Strauss foram escolhidos e a partir deles houve uma incitação a leitura de Rousseau não só por causa de um interesse teórico ou do papel que desempenham atualmente, mas pelo lugar que neles ocupam a teoria da escritura e o tema da fidelidade de Rousseau. Por que Lévi-Strauss e Rousseau? Lévi-Strauss não se sente apenas em harmonia com Jean-Jacques Rousseau, ele se apresenta como seu discípulo moderno. O estruturalismo de Lévi-Strauss é um fonologismo, mas ele escreveu sobre a escritura. Em “Tristes Trópicos”, a lição de escritura marca um episódio que poderia se denominar ‘guerra etnológica’: confrontação que abre a comunicação entre os povos e as culturas, mesmo que essa comunicação não se pratique sob o signo da opressão colonial, missionária. Trata-se da penetração de Lévi-Strauss no mundo dos Nhambiquara, onde a história da escritura e a história da estrada (ruptura, via rupta, via rompida), pelo afastamento da natureza, da floresta natural, selvagem: a via rupta escreve-se, discerne-se, inscreve-se violentamente como diferença. Há escritura, então, desde que o nome próprio seja rasurado num sistema, afinal, entre os Nhambiquaras o emprego dos nomes próprios é interdito: [1] porque os nomes próprios já não são nomes próprios; [2] porque sua produção é sua destruição, obliteração; [3] porque o nome próprio nunca foi possível a não ser pelo seu funcionamento numa classificação sob um sistema de diferenças – numa escritura que retém rastros de diferença, o interdito foi possível e eventualmente pode ser transgredido. Nunca se dá um nome, classifica-se o outro ou classifica-se a si mesmo. Entre os Nhambiquara, enfim, o emprego dos nomes próprios é interdito: nomear, dar nomes que serão proibidos pronunciar, essa é a violência originária da linguagem que consiste em suspender um vocativo absoluto. Para identificar as pessoas era preciso acompanhar o uso do pessoal na linha, ou seja, convencionar com os indígenas nomes de empréstimo pelos quais seriam designados. Acontece uma ‘guerra dos nomes próprios’ quando um estranho (etnólogo) chega e nasce em sua presença, como descreveu Lévi-Strauss no ‘jogo das menininhas’, que vai excitar o desatar das línguas e fazer as meninas entregar os nomes preciosos dos adultos. O que os Nhambiquara escondiam, as menininhas expõem na transgressão.

Transgredir a lei e a voz da piedade é substituir a afeção natural pela paixão pervertida. A lei natural, a doce voz da piedade, não é somente proferida por uma instância materna, ela é inscrita em nossos corações por Deus: que essa doce voz seja a da natureza e a da mãe, isto se reconhece também em ser ela lei. Não se trata mais de Lévi-Strauss, mas de Rousseau e a voz da lei materna, através da ordem da piedade que ocupa lugar de lei, supre a lei, a lei instituída. A piedade natural ilustra de maneira arquetípica a relação da mãe com o filho e comanda como uma doce voz. O “Essai sur l’origine des langues” de Jean-Jacques opõe a voz à escritura como a presença a ausência. Não seria espantoso referir-se a uma inquietude que parece animar toda a reflexão de Rousseau, que diria respeito à origem e a degenerescência da música. Se não há música antes da linguagem é porque a música nasce da voz e não do som. A música se desperta no canto e nasce na paixão, dito de outro modo, as necessidades ditaram os primeiros gestos, mas as paixões arrancaram as primeiras vozes. A música supõe a voz e se forma ao mesmo tempo em que a sociedade humana, sendo fala, ela requer que o outro me seja presente como outro na compaixão. O canto é o oriente da música, mas não se reduz a voz, define-se a melodia como imitação dos acentos da voz falante e apaixonante, enquanto na harmonia os acentos orais são privados de seus efeitos, tornando-se uma ciência do intervalo que se põe no calor dos acentos. Apaga o acento apaixonado para substituí-lo pelo intervalo harmônico. Distingue-se, então, a harmonia (tem o seu por si mesmo, independe de qualquer quantidade) da melodia (ideias de ritmo e de medida lhes dão um caráter determinado). Será o acento das línguas que determinará a melodia de cada nação – o acento que faz com que se fale ao cantar e que se fale com maior ou menor energia, pouco ou nenhum acento só pode ter uma melodia fria: a harmonia que destrói a energia da música? Não houve outra música senão a melodia – os acentos formavam o canto.

Nesta perspectiva, a estrutura do Essai não reflete a linguagem somente em seu devir, mas em sua disposição espacial, em sua geografia. As duas extremidades do eixo em torno do qual gira a terra (o pólo norte e o pólo sul) são as referências, além das estações do ano. A oposição norte/sul é racional e estrutural, traça um eixo de referência no interior de cada língua. Uma vez constituídas as línguas, a polaridade necessidade/paixão continua operando em cada sistema linguístico: ora as línguas se aproximam da paixão, ora se aproximam da necessidade. Assim, as línguas do norte são, sobretudo línguas da necessidade, a primeira palavra certamente foi ‘ajudai-me’, enquanto as línguas do sul são línguas da paixão, onde os primeiros discursos foram cantos de amor. Para Rousseau o Merídio é o berço das línguas, lugar de origem, de onde as línguas setentrionais se distanciaram; por isso essas últimas são menos puras, menos vivas, menos quentes.

O canto não parece natural ao homem, embora os selvagens da América cantem, porque falam – o verdadeiro selvagem não cantou nunca. O canto deve também imitar os gritos e os lamentos. Para Jean-Jacques o grande defeito dos europeus é filosofarem sempre sobre as origens das coisas segundo o que se passa em torno deles. Em seguida, afirma que a região não é indiferente à cultura dos homens: um homem não é plantado como uma árvore em uma região para nela permanecer para sempre. No norte os homens consomem muito num solo ingrato, no merídio eles consomem pouco num solo fértil: nasce daí uma nova diferença que torna uns laboriosos e os outros contemplativos...

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Jamais Fomos Modernos: Ensaio de Antropologia Simétrica (Bruno Latour)


Para uns, o tempo não deixa de ser definido da seguinte maneira: o resultado provisório da ligação entre os seres. De onde vem a impressão (tão moderna) de viver um tempo novo que rompe com o passado? De uma ligação; uma repetição que não tem nada em si temporal. A impressão de passar irreversivelmente só é criada quando ligamos entre si a enorme quantidade de elementos (lê-se, ‘quase-objetos) que compõem nosso universo cotidiano: é a sua coesão sistemática. É a substituição de seus elementos por outros que se tornarão igualmente coerentes no período seguinte, que nos dá a impressão que o tempo passa: um fluxo contínuo indo do futuro ao passado. É preciso que as coisas andem na mesma velocidade e sejam substituídas por outras bem alinhadas, para que o tempo se torne um fluxo – a temporalidade moderna é o resultado dessa ‘disciplina’. “Moderno” é duas vezes assimétrico, porque assinala uma ruptura na passagem regular do tempo e assinala um combate no qual há vencedores e vencidos.

A história dos modernos será pontuada pela irrupção dos não-humanos: o ‘teorema de Pitágoras’; o Heliocentrismo; a ‘lei da gravidade’; a ‘máquina a vapor’; a ‘química de Lavoisier’; a ‘vacina de Pasteur’; a ‘bomba atômica’; o computador; do DNA; dos chips. A cada vez, será calculado o tempo a partir destes começos miraculosos, laicisando para isso a encarnação na história das ciências: ou não será feita a distinção entre o tempo ‘antes’ e o ‘depois’ do computador assim como o ano zero, ‘antes’ e ‘depois de Cristo’? A temporalidade moderna nada tem, entretanto, de ‘judaico-cristã’ e nada tem de durável também. A modernização promete uma saída das ‘trevas’, afinal, se o passado consiste numa confusão entre as coisas e os homens, o futuro será aquilo que não os confundirá mais. O presente é traçado por rupturas radicais, uma série de revoluções, através dessa linha os modernos promovem escansões, pelo menos duas, uma para cima (o progresso) e outra para baixo (a decadência), por onde se multiplicam as projeções dos quase-objetos. A noção de seta irreversível (progresso ou decadência) provém de uma classificação dos quase-objetos cujo crescimento os modernos não podem explicar, porque a irreversibilidade no curso do tempo é devida, em grande medida, à transcendência das ciências e das técnicas. É um processo de classificação para dissimular a origem inconfessável das entidades naturais e sociais. Tudo parece mais confuso se os quase-objetos misturam épocas, ontologias e gêneros diferentes. Assim, no lugar de um fluxo laminar, em geral, tem-se um fluxo turbulento: o tempo deixa de ser irreversível para tornar-se reversível. A própria temporalidade dos quase-objetos rompeu a temporalidade moderna. Primeiro foram os arranha-céus da arquitetura pós-moderna...

... o urso dos Pirineus, os Kolkozes, os aerossóis, a revolução verde, a vacina anti-varíola, a guerra nas estrelas, a religião muçulmana, a caça à perdiz, a Revolução Francesa, a fusão a frio, o bolchevismo, a relatividade, o nacionalismo esloveno, etc., ninguém sabe se saíram de moda ou se estão na ordem do dia, se são futuristas, intemporais, inexistentes ou permanentes. Crê-se que o pós-moderno é um sintoma, não a solução. Ele revela a essência da modernidade como a época da redução do ser ao novum. A pós-modernidade nada faz além de começar, e a identificação do ser com o novum. Os pós-modernos conservam o panorama moderno, mas dispersam os elementos que os modernizadores agrupavam ordenadamente. Os pós-modernos têm razão quanto à dispersão, mas estão errados ao conservar a exigência de novidade? Disse Clio de Péguy e também Michel Serres: “somos trocadores e misturadores de tempo”. Todas as tradições imutáveis mudaram anteontem, ninguém nasce tradicional: é uma escolha que se faz quando se inova muito. Não avançamos nem recuamos. Selecionamos elementos pertencentes a tempos diferentes. Ainda podemos selecionar e a seleção é que faz o tempo, e não o tempo que faz a seleção. O modernismo, o anti-modernismo e o pós-modernismo eram apenas uma seleção feita por alguns poucos em nome de muitos. Não emergimos de um passado de ‘trevas’ que confundia natureza e cultura para alcançar um futuro no qual os dois estarão claramente separados, graças a revolução do presente. Jamais estivemos em um fluxo vindo seja do futuro seja de eras longínquas. A modernidade nunca ocorreu. Não é uma maré que há muito sobe e que hoje reflui. Jamais houve uma maré. Sigam em frente, retornem às diversas coisas que sempre seguiram de outra forma.

O mundo moderno não pode se estender sem voltar a ser aquilo que jamais deixou de ser, isto é, como todos os outros: um mundo não moderno. Acontece que os modernos se enganaram ao querer não-humanos objetivos e sociedades livres. Estava errada sua certeza de que esta produção exigia a distinção absoluta dos dois termos. Os descendentes de Boyle definiram um parlamento dos mudos, entre os laboratórios, cientistas falavam em nome das coisas; enquanto, os descendentes de Hobbes definiram a República, longe dos laboratórios. Hobbes e seus seguidores criaram os principais recursos para falarmos de poder (representação, soberano, contrato, propriedade, cidadãos), mas Boyle e seus discípulos elaboraram um repertório importante para falarmos de natureza (experiência, fato, testemunho, colegas). O que não se sabia é que era uma dupla invenção! Com sua bomba de ar (vácuo), Boyle criou um discurso político de onde a política deve estar excluída, por seu turno, com seu Leviatã, Hobbes imaginou uma política científica da qual a ciência experimental deve estar excluída. Eles inventaram, portanto, nosso mundo moderno: onde a representação das coisas através do laboratório encontra-se para sempre dissociada da representação dos cidadãos através do contrato social. A separação moderna entre o mundo natural e o mundo social tem o mesmo caráter constitucional – do momento em que traçamos esse espaço simétrico, restabelecendo o entendimento comum que organiza a separação dos poderes naturais e políticos, deixamos de ser modernos. Trata-se de fundamentar uma epistemologia com um novo ator desconhecido e uma bomba de ar improvisada, artesanal e que vaza.

Em nenhum lugar observaremos um objeto e um sujeito, uma sociedade que seria primitiva e outra moderna. A sociedade como sabemos também é construída tanto quanto a natureza. Se formos construtivista para uma devemos sê-lo para ambas; se formos realistas para uma devemos sê-lo para outra. Para que a antropologia seja simétrica, sugere-se o ‘princípio de simetria generalizada’ (de Michel Callon): o antropólogo deve estar no ponto médio, de onde pode acompanhar, ao mesmo tempo, a atribuição de propriedades não humanas e de propriedades humanas. Não lhe é permitido usar a realidade para dar conta daquilo que molda a realidade externa, também não lhe é permitido alternar entre realismo natural e o realismo sociológico, usando ‘não apenas’ a natureza, ‘mas também’ a sociedade, a fim de conservar as duas assimetrias iniciais, ao mesmo tempo em que dissimula as fraquezas de uma sob as fraquezas da outra. Quando a antropologia volta dos trópicos para juntar-se à antropologia do mundo moderno, primeiro, acredita que só pode aplicar seus métodos quando os ocidentais confundem os signos e as coisas da mesma forma que o ‘pensamento selvagem’ o faz. A seguir, ao voltar para casa, os etnólogos não ficariam limitados às periferias, de forma que, assimétricos como sempre, são audaciosos com relação aos outros e tímidos quanto a si mesmos. Suponhamos que tendo voltado dos trópicos, a antropologia decida ocupar uma posição triplamente simétrica: [a] explica com os mesmos termos as verdades e os erros; [b] estuda ao mesmo tempo a produção dos humanos e dos não-humanos; [c] ocupa uma posição intermediária entre os terrenos tradicionais e os novos, pois suspende qualquer afirmação a respeito daquilo que distinguiria os ocidentais dos Outros. Desta forma, frente a frente com produções de naturezas-culturas, chamadas de ‘coletivos’, diferentes tanto da sociedade dos sociólogos (homens-entre-si) quanto da natureza dos epistemólogos (coisas-em-si). Enquanto coletivos, somos irmão. Jamais deixamos de construir nossos coletivos com materiais misturados aos pobres humanos e aos humildes não-humanos.

Para nos convencer que somos híbridos (quase-objetos, não-humanos), instalados no interior das instituições científicas (meio engenheiros, meio filósofos), a noção de rede ou de tradução parece ser nosso meio de transporte e optamos por descrever as tramas onde quer que elas nos levem: a rede é esse fio de Ariadne em histórias confusas. Enquanto os críticos pensam que estamos falando de técnicas e de ciências, eles questionam “mas então isso é política?” A epistemologia, as ciências sociais e as ciências do texto têm reputação, desde que elas permaneçam distintas, só lhes oferecer uma bela rede sociotécnica: a primeira extrairá os conceitos (para ligá-los ao social ou à retórica); a segunda amputará a dimensão sócio-política (purificando-a de qualquer objeto); a terceira conservará o discurso (purgando-lhe de qualquer aderência indevida à realidade e aos jogos de poder).

Nessa esteira, os críticos desenvolveram três grandes repertórios distintos para falar de nosso mundo: a naturalização, a socialização e a desconstrução (Changeux, Bourdieu, Derrida). Quando o primeiro trata de fatos naturalizados, não há mais sociedade, nem sujeito, nem forma de discurso; quando o segundo fala de ‘poder sociologizado’, não há mais ciência, nem técnica, nem texto, nem conteúdo; quando o terceiro se refere aos efeitos de verdade, seria ingenuidade acreditar na existência real dos neurônios ou nos jogos de poder. Realmente, nossa vida intelectual continua reconhecível contanto que os epistemólogos, os sociólogos e os desconstrutivistas sejam mantidos a uma distância conveniente?! Ou as redes que desdobramos não existem, e os críticos fazem bem em marginalizar os estudos sobre as ciências ou separá-los em três conjuntos distintos – fatos, poder, discurso –, ou então as redes são tal como as descrevemos, e atravessam a fronteira entre os grandes feudos da crítica – sendo ao mesmo tempo reais, e coletivas, e discursivas. Não será nossa culpa, se as redes são ao mesmo tempo reais como a natureza, narradas como o discurso, coletivas como a sociedade?

Uma rede, técnica, por exemplo, é local em todos os pontos, mas global em seu trajeto e deslocamento, no entanto nunca é universal o suficiente ao ponto de transportar algo a todos os lugares ao mesmo tempo. Existe um fio de Ariadne que nos permitiria passar continuamente do local ao global, do humano ao não-humano... O capitalismo é um labirinto de redes um pouco longas que envolvem um mundo a partir de pontos que se transformam em centros de cálculo e de lucro. Toda e qualquer globalização beneficia o totalitarismo, não devemos acrescentar a dominação total à dominação real. Não devemos acrescentar a força à potência nem ao capitalismo a desterritorialização absoluta. Da mesma forma não devemos permitir à verdade científica a racionalidade – também – absoluta. Tanto para os crimes quanto para o domínio (tanto para os capitalismos quanto para as ciências) devemos compreender as coisas banais, as pequenas causas e seus grandes efeitos.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Nascimento da Biopolítica (Michel Foucault)


Trata-se de um período em que o que está em questão é um mercado cada vez mais extenso, no limite, trata-se da própria totalidade do que pode ser posto no mercado, no mundo: a uma mundialização a que somos convidados, com o enriquecimento coletivo da Europa, através da própria concorrência que se estabelece entre os Estados, deve-se tomar um caminho do próprio progresso econômico ilimitado? Pelo menos, foi a primeira vez que a Europa apareceu como devendo ter o mundo como mercado infinito.

Questiona-se o funcionamento da razão de Estado nos séculos XVII-XVIII ou o objetivo interior sobre o qual vai se exercer o governo segundo essa razão (Estado polícia) que é, sobretudo ilimitado. Há, entretanto, um número de mecanismos de compensação, de posições a partir das quais se vai procurar estabelecer uma linha de demarcação para esse objetivo ilimitado prescrito ao Estado de polícia pela razão de Estado: o direito é o princípio de limitação da razão de Estado naquela época. Quando se desenvolveu essa racionalidade governamental, entre os séculos XVI-XVII, o direito vai servir, ao contrário, como ponto de apoio para toda a pessoa que quiser limitar essa extensão indefinida de uma razão de Estado que toma corpo num Estado de polícia. Tratam-se, pois de leis fundamentais do reino, as quais os juristas objetam à razão de Estado, dizendo que nenhuma prática governamental e nenhuma razão de Estado podem justificar o seu questionamento: o direito constituído por essas leis fundamentais aparece assim fora da razão de Estado e como princípio dessa limitação. As instituições judiciárias e o direito, que haviam sido intrínsecos ao desenvolvimento do poder real, tornam-se exteriores e exorbitantes em relação ao exercício de um governo segundo a razão de Estado. O direito objetar-se-á, portanto, a razão de Estado quando ela houver ultrapassado esses limites do direito (que vem de Deus ou que foram estabelecidos em uma espécie de origem, numa história remota), assim poder-se-á definir um governo como ilegítimo, por suas usurpações, no limite, liberar seus súditos do seu dever de obediência.

Caracteriza, pois a razão governamental moderna uma transformação que consiste na instauração de um princípio de limitação da arte de governar que já não lhe seja mais extrínseco como era o direito no século XVII, isto é, que seja intrínseco a ela. Regulação interna da racionalidade governamental, uma limitação de fato: o governo que desconhecer essa limitação será simplesmente um governo inábil, inadequado, que não faz o que convém. Toda a razão governamental gira em torno de como não governar demais, assim a ‘economia política’, expressão que se vê entre 1750 e 1810-1820 pode tanto significar certa análise da produção e da circulação de riqueza quanto todo método de governo capaz de assegurar a prosperidade de uma nação. Ela se propõe como objetivo o crescimento do Estado e simultaneamente o crescimento ajustado da população, de um lado, e o dos meios de subsistência, de outro. O aparecimento da economia política e o problema do governo mínimo eram duas coisas interligadas. Não se podia pensar a economia política (a liberdade de mercado) sem levantar ao mesmo tempo o problema do direito público – a limitação do poder público: sobre a separação entre governo e administração, sobre a constituição de um direito administrativo, sobre a necessidade ou não de tribunais administrativos específicos. O problema fundamental do direito público era, portanto, como impor limites para o exercício de um poder público. A lei é concebida, neste sentido, ou como a expressão de uma vontade coletiva que manifesta a parte de direito que os indivíduos aceitaram ceder e a parte que eles querem reservar, ou a lei será concebida como efeito de uma transação que colocará a esfera de intervenção do poder público em oposição a esfera de independência dos indivíduos. Duas concepções da lei, duas noções de liberdades, como dois caminhos para constituir em direito a regulação do poder público: ambiguidade que caracteriza o liberalismo europeu nos séculos XIX-XX.

A palavra ‘liberal’ é usada não porque essa pratica governamental se contenta em respeitar esta ou aquela liberdade, mas porque ela é consumidora de liberdade, na medida em que só pode funcionar se existir certo número de liberdades: se se consomem liberdades, obriga-se, pois a consumi-las. Produzir liberdades é necessário, mas estabelecem limitações, coerções, obrigações, etc. A liberdade se fabrica a cada instante, o liberalismo propõe a fabricá-las: a liberdade de comportamento no regime liberal (arte liberal de governar) serve-se como reguladora, para tanto é necessário produzi-la e organizá-la. Tanto os liberais alemães da Escola de Friburgo, a partir de 1927-30, quanto os americanos atuais, instalaram mecanismos de intervenção econômica para evitar esse ‘a menos’ de liberdade que se acarreta pela passagem ao socialismo, ao fascismo, ao nacional-socialismo, com seu inimigo comum: Keynes.

O curioso paralelismo entre a Escola de Frankfurt e seus vizinhos, a Escola de Friburgo, ou os ordoliberais, embora ambas as escolas tenham partido da problemática dominante na Alemanha do início do século XX, grosso modo, chamada de weberianismo, ou seja, se Marx procurou analisar a lógica contraditória do capitalismo, Max Weber procurou definir o problema da racionalidade irracional da sociedade capitalista. Enquanto o problema da Escola de Frankfurt era determinar qual poderia ser a nova racionalidade social que poderia ser definida para anular a irracionalidade econômica, o problema da Escola de Friburgo era redefinir a racionalidade econômica que permita anular a irracionalidade social do capitalismo. Os ordoliberais adotam a liberdade de mercado como princípio organizador e regulador do Estado, desde o início de sua existência até a última forma de suas intervenções. Inverte-se a fórmula: um Estado sob a vigilância do mercado em vez de um mercado sob a vigilância do Estado. A questão será saber se uma economia de mercado pode servir de princípio, de forma e de modelo para um Estado. Se para os liberais do século XVIII o mercado era definido e descrito a partir da troca livre entre dois parceiros, que estabelecem assim a equivalência entre dois valores, para os ordoliberais, o essencial do mercado está na concorrência. Não há por que intervir diretamente no processo econômico, afinal esse processo traz em si uma estrutura reguladora que nunca se desregulará: a concorrência. Trata-se da Gesellschaftspolitik que deve anular os mecanismos anticoncorrenciais que em alguma sociedade possa suscitar. Há ações reguladoras necessárias, mas que não intervém nos mecanismos da economia de mercado; intervém-se nas condições do mercado, ou seja, nas três tendências (à redução de custos, à redução do lucro da empresa, provisória) que as ações reguladoras devem levar em conta.

Destaca-se principalmente o anarcoliberalismo da Escola de Chicago, por volta de 1939, a propósito do problema jurídico, quando se afirmou que o liberalismo não deriva apenas de uma ordem natural espontânea, como declaravam diversos autores dos ‘Códigos da Natureza’, no século XVIII; a vida econômica se desenrola num quadro jurídico que estabelece: o regime de propriedade, dos contratos, das patentes, da falência, do estatuto das associações profissionais, coisas que não são criações da natureza, mas criações contingentes do legislador. Deve-se falar de uma ordem econômico-jurídica, o jurídico enforma o econômico, que no fundo, refere-se a invenção de um novo capitalismo, onde as leis do mercado sejam o princípio de regulação econômica geral: aplica-se à economia o que na tradição alemã chama-se ‘Rechtsstaat’ e que os ingleses chamam de ‘Rules of Law’, ‘Estado de Direito’, pois, ou reinado da lei – em oposição ao Despotismo e ao Estado de polícia. Lei e ordem, afinal bem além do liberalismo, quer dizer o seguinte, o Estado, o poder público nunca intervirá na ordem econômica a não ser na forma da lei, assim o poder público se limita a essas intervenções legais, de modo a aparecer uma ordem econômica, efeito e princípio da sua própria regulação. Na concepção neoliberal americana destacam-se a teoria do ‘capital humano’ e a análise da ‘criminalidade e delinquencia’, principalmente porque a economia torna-se a ciência do comportamento humano, com base estratégica da atividade dos indivíduos. A Vitalpolitik dos ordoliberais, como política da vida em que se generaliza e multiplica-se as formas empresas no interior do corpo social constitui o escopo do neoliberalismo, que foi amplamente difundidas nos EUA, a partir de uma conduta racional (como objeto econômico) e a partir de técnicas comportamentais que moldam os indivíduos em uma ‘sociedade empresarial’.

Só após compreendermos o que é esse regime governamental chamado liberalismo é que poderemos apreender o que vem a ser biopolítica. A intenção de Michel Foucault, neste curso proferido no Collège de France, entre 1978-79, era a de falar sobre biopolítica, mas acabou se alongando sobre o neoliberalismo, em especial na sua forma alemã, mas não para reconstruir um suporte histórico ou teórico sobre a democracia-cristã alemã. Tratava-se apenas de atribuir um conteúdo concreto às análises das relações de poder. O poder designa um campo de relações que deve ser analisado por inteiro, o que se justifica por ‘governamentalidade’, ou seja, o que significa uma maneira de se conduzir a conduta dos homens. Deste modo, deter-se aos problemas do neoliberalismo não deixa de ser uma razão da ‘moralidade cristã’.

O Neoliberalismo: História e Implicações (David Harvey)


Como se instaurou a neoliberalização? Quem o fez? Em países como o Chile e a Argentina nos anos 1970 é uma resposta segura, simples e brutal, mas sob um golpe militar apoiado pelas classes altas tradicionais, assim como pelo governo norte-americano, seguida pela cruel repressão de todas as solidariedades criadas no âmbito de movimentos trabalhistas e sociais urbanos que ameaçavam o seu poder. A revolução neoliberal atribuída costumeiramente a Thatcher e Reagan a partir de 1979 tinha, entretanto, de ser instaurada por meios democráticos na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Uma mudança de tamanha magnitude como essa exigia que se construísse antes o consentimento político da população para que se ganhassem as eleições. Fortes influências ideológicas circularam nas corporações, nos meios de comunicação e nas numerosas instituições que constituem a sociedade civil [universidades, escolas, Igrejas, associações profissionais]. A ‘longa marcha’ das ideias neoliberais nessas instituições, que Hayek concebera já em 1947, sob a cooptação de certos setores dos meios de comunicação e a conversão de muitos intelectuais à maneira neoliberal de pensar, tudo isso criou um clima de opinião favorável ao neoliberalismo. Certamente o projeto declarado de restauração do poder econômico a uma pequena elite não teria muito apoio popular, mas um esforço de defesa da causa das liberdades individuais poderia constituir um apelo a base popular, disfarçando o trabalho de restauração do poder de classe. Qualquer resistência apelava-se para o uso da força, quer militar (como no Chile), quer financeira (como nas operações do FMI em Moçambique ou nas Filipinas): a coerção pode produzir uma aceitação fatalista e abjeta da ideia de que não há nem havia alternativa, como insistia Margaret Thatcher.

O Estado neoliberal favorece os direitos individuais à propriedade privada e o regime de direito, as instituições de mercados de livre funcionamento e do livre comércio: arranjos institucionais que garantam as liberdades individuais. Privatização e desregulação combinadas com competição tende a eliminar, segundo os neoliberais, os entraves burocráticos, aumentam a eficiência e a produtividade, melhoram a qualidade e reduzem os custos (mediante a redução da carga de impostos). O Estado, neste caso, tem de usar seu monopólio dos meios de violência para preservar, a todo custo, essas liberdades, em outras palavras, o Estado tem de usar seu poder para impor ou inventar sistemas de mercado: o Estado neoliberal deve buscar reorganizações internas e novos arranjos institucionais que melhorem sua posição competitiva diante de outros Estados no mercado global. Óbvio que a competição resulta em monopólio e oligopólios que expulsam outras empresas mais fracas. A livre mobilidade do capital entre setores, regiões e países é julgada crucial, mas há de se remover as barreiras (taxas, tarifas, impedimentos específicos a um dado lugar) ao livre movimento, exceto em áreas essenciais ao ‘interesse nacional’. A soberania do Estado com relação aos movimentos de mercadorias e de capital é, assim, entregue ao mercado global. Acordos internacionais entre países para garantir o regime de direito e as liberdades de comércio são, portanto, incorporados às normas da Organização Mundial do Comércio, e vitais para o avanço do projeto neoliberal no cenário global.

Cria-se um paradoxo em que se supõe que o Estado não seja intervencionista: o Estado neoliberal é forçado, entretanto a intervir, repressivamente, negando as próprias liberdades de que se supõe ser ele quem as garante. Intervenções especiais do Estado favorecem interesses comerciais específicos (por exemplo, negociação de armas), assim como créditos são oferecidos arbitrariamente oferecidos por um Estado a outro para obter acesso e influência políticos em regiões geopoliticamente sensíveis (como o Oriente Médio). A necessidade de se criar para os empreendimentos capitalistas um ‘clima favorável para os negócios e investimentos’ motiva o Estado, mas se não der certo? O Estado em questão recorre à persuasão, à propaganda, se necessário, à força bruta e ao poder de polícia para suprimir quaisquer obstáculos e oposição ao neoliberalismo. Para isso, os neoliberais impõem fortes limites à governança democrática, com apoio em instituições não-democráticas, que não prestam contas a ninguém (como o Banco Central norte-americano e o FMI), para tomar as decisões essenciais. Se os Estados neoliberais facilitam a difusão da influência das instituições financeiras por meio da desregulação, no plano internacional, os Estados neoliberais centrais deram ao FMI a ao Banco Mundial, em 1982, plena autoridade para negociar o alívio da dívida, o que significou proteger da ameaça de falência as principais instituições financeiras internacionais.

O complexo Wall Street-FMI-Tesouro dos Estados Unidos, designado por David Harvey a dominar a política econômica, principalmente a partir dos anos Clinton, conseguiu persuadir e forçar muitos países em desenvolvimento a seguir o caminho neoliberal, sob a sombra de uma política que ajudou a produzir o boom dos Estados Unidos na década de 1990. Mas o real sucesso dos EUA foi o fato de poder extrair altas taxas de retorno de suas operações financeiras e corporativas no resto do mundo, assim esse fluxo de tributos extraídos sustentou boa parte da afluência alcançada nos anos de 1990. De um lado, a difusão global da nova ortodoxia econômica neoliberal monetarista passou a exercer uma influência cada vez maior, já me 1982, a economia keynesiana fora expurgada dos corredores do FMI e do Banco Mundial, de outro lado, nos anos 1990, alcança-se o ápice, os norte-americanos pareciam ter a resposta e dava a impressão que suas políticas mereciam emulação, todavia geravam crises.

As crises eram endêmicas e contagiosas. A crise da dívida dos anos 1980 não se restringiu ao México, mas teve manifestações globais. Na década de 1990 houve dois conjuntos de crises inter-relacionadas que assinalaram uma característica da neoliberalização desigual, a ‘crise da tequila’ que atingiu o México em 1995 se espalhou com efeitos devastadores no Brasil e na Argentina, com reverberações no Chile, Filipinas, Tailândia e Polônia. Outra onda de crises financeiras começou na Tailândia em 1997, com a desvalorização da moeda local, na esteira do mercado imobiliário especulativo: contaminou a Indonésia, Malásia e Filipinas, depois Hong Kong, Taiwan, Cingapura e a Coreia do Sul. A Estônia e a Rússia foram também atingidas e pouco depois o Brasil desabou. Somente os EUA pareçam imunes. Em suma, todo o ‘regime leste-asiático’ de acumulação estava sendo posto à prova em 1997-98. David Harvey analisou todas essas crises, dentro do quadro que ele designa por desenvolvimentos geográficos desiguais sob a acumulação por espoliação (criação desenfreada de ‘capital fictício’).

Analisou-se, sobretudo o neoliberalismo ‘com características chinesas’, emulação ou não, em dezembro de 1978, na esteira da morte de Mao em 1976 e de vários anos de estagnação econômica, a liderança chinesa sob Deng Xiaoping anunciou um programa de reformas econômicas, chamado de ‘quatro modernizações’: na agricultura, na indústria, na educação e na ciência e defesa. Houve na China uma construção específica de economia de mercado, que incorporou elementos neoliberais entrelaçados com o controle central autoritário, afinal no Chile, Coreia do Sul, Taiwan e Cingapura a compatibilidade entre autoritarismo e mercado capitalista já havia sido estabelecida. Tratava-se, com efeito, de estimular a competição entre empresas estatais a fim de promover a inovação e o crescimento, sobretudo promovendo a abertura da China, ainda que sob a estrita supervisão do Estado, ao comércio e ao investimento externos, acabando com o isolamento chinês do mercado global. De todo modo, a espetacular emergência da China, como potência econômica global a partir de 1980, foi uma consequencia não pretendida da virada neoliberal no mundo capitalista avançado. Os Estados Unidos recorrem a amplos financiamentos via dívida de seu militarismo e seu consumismo, enquanto a China tem financiado via dívidas, empréstimos bancários de déficit de difícil recebimento, amplos investimentos em infra-estruturas e capital fixo. As duas máquinas econômicas que vêm alimentando, portanto o mundo desde a recessão global instaurada a partir de 2001 são os Estados Unidos e a China, a ironia é que esses dois países comportam-se como Estados keynesianos num mundo supostamente governado por regras neoliberais.

Por todo o globo (da China, Brasil, Argentina a Taiwan, da Coréia à África do Sul e ao Irã, da Índia ao Egito) há grupos e movimentos sociais que reivindicam reformas que exprimam valores democráticos, entretanto sob perspectivas mais nobres de liberdade que aquelas que o neoliberalismo prega: há um sistema mais valioso de governança a ser construído que aquele que o neoconservadorismo permite. Tudo isso se refrata às leis ‘antiterror’, ao abandono das Convenções de Genebra em Guantanamo e à qualificação de toda força de oposição como terrorista, que no final não deixam de ser ‘sinais de alerta’, esse cálculo catastrófico torna-se suicida por sobrepujar a capacidade da atual liderança norte-americana. Graças à doutrina do ‘ataque preventivo’ contra nações estrangeiras em meio a uma guerra global ao terror, a opinião pública norte-americana julga que o país luta para levar a liberdade e a democracia a todos os lugares, em particular ao Iraque, entretanto os EUA estão vivendo seus mais sombrios temores com relação a algum inimigo desconhecido e oculto que os ameaça. A hegemonia norte-americana está desabando, portanto desde que o país perdera seu domínio da produção global nas décadas de 1970 e de 1990, sua liderança tecnológica está sendo ameaçada e seu poderio militar tem sido sua única arma mais nítida de domínio global. Até porque o poder militar dos EUA está restrito ao que se pode fazer com um poder destrutivo de alta tecnologia a dez mil metros de altura: o Iraque tem demonstrado os limites dos Estados Unidos no solo.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

5 Lições sobre Império (Antonio Negri)


Após os ataques de 11 de setembro, pouca coisa mudou sobre o poder soberano, desde que o entendamos sob a égide de uma soberania limitada e nunca absoluta. Acontece que após os atentados contra Washington e Nova York, o governo estadunidense integrou-se finalmente ao sistema global de relações que definem a atual forma de soberania, deixando de lado seu modo bizantino de soberania. Como compreender o Império após 11 de setembro? De que modo não confundir o Império com os Estados Unidos? Historicamente, o Império não deixa de ser tomado sob uma reflexão liberal numa relação complexa de aspectos internos e externos ao Estado. Em outros termos, trata-se de uma reflexão histórica concernente ao nascimento do liberalismo, cujo termo biopolítica implicaria uma análise da racionalidade política e funcional do governo, em cujo exercício corre-se o risco de se governar em demasia, ou seja, governamentalidade redutível a uma análise jurídica, como mecanismo de produção e interpretação de normas. Para tanto, torna-se necessário, de início, definir três teses sobre o Império: a] não há globalização sem regulamentação, mesmo que sejam regulamentações privadas, que tendem de alguma forma substituir as regulamentações estatais; b] a soberania do Estado-nação está em crise, ela se transfere do Estado-nação e vai para algum lugar, ou seja, a soberania imperial se encontra em um ‘não-lugar’, afinal trata-se da incapacidade do Estado-nação de manter o controle sobre a totalidade do território e sobre as forças antagônicas que se movimentam dentro desse território; c] a luta e a escansão social, que constituem qualquer realidade política, assumem esses fenômenos (globalização sem regulamentação e soberania antinacionalista) na relação de capital. Com base nessas teses, a seguir enumeram-se as cinco lições sobre o Império:

Lição 1 – se o Estado-nação pôde ser concebido incapaz de controlar os mecanismos de reprodução da sociedade, do ponto de vista do capital, isso ocorreu porque as lutas (operárias, antiimperialistas, anticoloniais) impediram-no de ser um ponto de equilíbrio e garantia da soberania do desenvolvimento capitalista. A historiografia colonial escondia os elementos que não interessavam ao colonialismo europeu e excluía a reação na construção imperial, sob o fato de que o Estado colonial foi construído em resposta às lutas. A soberania é o controle da reprodução do capital e o comando sobre as forças que o constitui, percebe-se que na modernidade, a soberania reside no Estado-nação, mas no pós-moderno, ela reside noutro lugar. Uma primeira ruptura interveio no nível do Estado-nação dos países capitalistas desenvolvidos, que obrigou a soberania a situar-se em outro lugar: ruptura que ocorreu após 1968, ou melhor, que se define nos anos de 1971, com o fim da paridade dólar/ouro, e de 1973, com a crise do petróleo e a paz nuclear, com o tratado ABM, de 1972. Período em que se percebeu a impossibilidade de garantia do desenvolvimento capitalista por meio de instrumentos da regulação soberana interna – controle da relação de capital dentro do espaço-nação. Se os grandes Estados-nação europeus se desenvolveram pela expansão imperialista, nos de 1960-70, houve um desequilíbrio colonial-imperialista que se estabeleceu numa extraordinária amplitude, isso determinou a impossibilidade de o Estado-nação estender suas relações de força com fins expansionistas. Além disso, com desequilíbrios internos, os Estados-nação centrais empurravam os problemas de controle e da reprodução capitalista para outros lugares: denomina-se ‘Império’, pois exatamente este ‘não-lugar’ sobre o qual passou a se concentrar a soberania, que garantiu o desenvolvimento capitalista no cenário global. Deste modo, divide-se o período da ‘grande indústria’ em duas fases: a que vai de 1870 até a Primeira Guerra Mundial, da Comuna de Paris à Revolução Russa; e a que vai do fim da Primeira Guerra Mundial a 1968. Distinguem-se esses dois períodos do ponto de vista dos processos laborais, das normas de consumo e de reprodução social, a partir de modelos de regulação econômica e política, sob a perspectiva da transformação da composição política de classe.

Lição 2 – precisa-se desenvolver uma ontologia do trabalho imaterial, do ser imaterial, mas por ‘trabalho imaterial’ compreende-se o conjunto das atividades intelectuais, comunicativas e afetivas expressas por sujeitos e movimentos sociais, que conduzem à produção. Já que a força produtiva nasce dos sujeitos e se organiza na cooperação, destaca-se o ‘General Intellect’ como força de trabalho intelectualizada ou desmaterializada que se expande como epidemia, por uma cooperação produtiva que não é imposta pelo capital, mas pelo trabalho mental tão cooperativo como o trabalho linguístico. Definir o corpo do ‘General Intellect’ é afirmar a potência dos sujeitos que o habitam, assim, o sujeito da organização de uma nova vida.

Lição 3 – o conceito de multidão nasce na obra de Espinosa, na metade do século XVII, com esse termo, entende-se uma multiplicidade de singularidades que se situam em alguma ordem, de todo modo, assume-se um sentido próprio porque falta uma ideia de causalidade externa. Define-se, então, a multidão como nome de uma imanência (conjunto de singularidades), como conceito de classe (sempre produtiva e em movimento) e de uma potência que quer expandir-se e conquistar um corpo (a carne da multidão quer transformar-se no corpo do General Intellect). A carne é o primeiro material da multidão, na qual o corpo e o intelecto são indiferenciados. Assim, quando a multidão se apresenta como conjunto de singularidades produtivas e proliferantes, um lugar de choque se mostra como problema, qual seja ele: enquanto a multidão é limite do Estado, o Estado é apenas um obstáculo para a multidão. Mas quando não mais existe um lugar de choque, pois o choque está em todo lugar – o Império não possui lugar, assim a multidão também não tem lugar. Considera-se, pois que a multidão produz e reproduz o mundo, ela é potência e sua consistência é constituinte. Por isso há um parentesco inseparável entre multidão e poder constituinte. O poder constituinte é a dinâmica organizacional da multidão, o seu fazer-se.

Lição 4 – a forma do biopoder imperial é uma guerra que contém controle e disciplina, desde que compreendamos a guerra como o modo essencial no qual se formam as políticas. A guerra não é poder destrutivo unicamente, mas um poder de ordenamento, constituinte, e inscrito no espaço como atividade seletiva, hierarquizante: a guerra desenha espaços e confins. A ordem nasce propondo disciplina e controle mediante uma promoção contínua de guerra, como forma de biopoder, o tema da definição do inimigo será central numa guerra. Inimigo como perigo público, ou seja, sintoma de uma desordem a ser ordenada, uma ameaça que a própria multidão erige, por isso ela deve ser disciplinada e controlada. A guerra só poderá ser bloqueada por meio da força constitutiva da multidão, em um mundo que não tem mais o fora, a guerra passa a ser interna e sempre menos guerra e cada vez mais polícia. Na condição de multidão, que pode ser definida como limite do poder, ora cada sujeito pode ser um perigo público, ora cada sujeito pode ser inimigo do Império. A resistência dos corpos potencializa-se como biopolítica: apostam-se na possibilidade de resistência e em tecnologias de resistência que se tornem absolutas. Trata-se, enfim, do antipoder, que se relaciona com três coisas: a resistência contra o velho poder, de insurreição e de potência constituinte de um novo poder, ou seja, resistência, insurreição e poder constituinte como trindade do antipoder.

Lição 5 – a relação entre movimentos sociais e modificações institucionais se dá com a transformação da própria natureza dos movimentos, portanto, torna-se fundamental a passagem da hegemonia do trabalho material ao trabalho imaterial. As lutas se desenvolvem sempre ao redor da intenção de libertar o trabalho. Partir de baixo para definir o tema central que consolida a cooperação, portanto somente a afirmação do ‘comum’ nos permite orientar de dentro os fluxos da produção e separar os capitalistas, alienantes, dos que recompõem a liberdade e o saber. Trata-se de conseguir conceber a multidão como o ‘comum’ e a diferença como singularidade: na singularidade enriquecemos os conteúdos das diferenças e no ‘comum’ conseguimos juntá-las, como num novo horizonte de atividade, ou seja, o ‘comum’ como uma perspectiva sob a qual sempre nos movemos. Fazer crescer, enfim, o desejo subversivo do ‘comum’ que perpassa a multidão, colocando-o contra a guerra, transformando-o em potência constituinte.

Método que age no biopolítico, onde a produção se manifesta como expressão produtiva do ‘comum’. Neste sentido, a exploração se evidencia como destruição do ‘comum’ e expropriação da cooperação, o que nos leva a compreender o que significa dizer exploração biopolítica e divisão do trabalho no biopoder: o pós-fordismo e o pós-modernismo produziram a exploração do comum - esta é a nova forma da lei da mais-valia. Paralelamente, esforça-se de múltiplas maneiras, portanto, para distinguir biopolítica [a vida inteiramente investida de atos e condições artificiais de reprodução, quando a própria natureza socializou-se e tornou-se máquina produtiva] e biopoder [quando o Estado expressa comando sobre a vida por meio de suas tecnologias e dispositivos de poder].