segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Não-lugares: Introdução a uma Antropologia da Supermodernidade (Marc Augé)


Afirmar que a antropologia sempre foi do ‘aqui e agora’ é reconhecer, ao mesmo tempo, que ela supõe um testemunho de uma atualidade presente. Desse modo, a antropologia da contemporaneidade próxima não deve efetuar-se, exclusivamente, segundo categorias já repertoriadas, afinal novos objetos precisam ser construídos, senão o fato de abordar novos campos empíricos seria mais uma curiosidade do que uma necessidade. Essa discussão se justifica no próprio subtítulo da obra: ‘introdução a uma antropologia da supermodernidade’. Assim, o empreendimento de se pensar uma antropologia sob o ponto de vista da ‘supermodernidade’ acaba por esbarrar numa dupla dificuldade: como pensar o tempo e sua abundância factual no mundo contemporâneo? De que modo pensar o presente que decorre de nossa dificuldade de dar sentido ao passado próximo, por meio de uma história iminente, nos nossos calcanhares, quase intrínseca às nossas existências cotidianas? Há no mundo contemporâneo, além dos problemas que envolvem esse tipo de ‘temporalidade’, uma segunda transformação acelerada, mas que se refere ao espaço. Assim reflete-se sobre o ‘lugar comum’ ou a ‘geografia íntima’ dos antropólogos e etnólogos, quando se gabam por decifrar a organização do espaço: a fronteira postulada e demarcada entre natureza selvagem e natureza cultivada; a divisão das terras de cultura ou das águas piscosas; o traçado das aldeias; a disposição do hábitat, em suma, de uma geografia econômica, social, política e religiosa dos grupos. Vai ser a partir desta interpelação espacial que os ‘não-lugares’ passarão a ser designados por duas realidades distintas: os espaços constituídos em relação a certos fins [transporte, comércio, lazer] e a relação que os indivíduos mantêm com esses espaços.

Os ‘não-lugares’ serão vistos tanto pelas instalações necessárias à circulação acelerada das pessoas e bens [vias, trevos rodoviários, aeroportos] quanto os próprios meios de transporte ou grandes centros comerciais, ou ainda os campos onde estão os refugiados do planeta. Quando os postos de gasolina oferecem viagens para América e as revistas das companhias aéreas fazem propagandas dos hotéis, os consumidores de espaço acham-se presos nessas imagens, que constituem um sistema: um esboço de um ‘mundo de consumo’ que todo o indivíduo pode fazer seu, porque está nele insistentemente interrogado. A superfície por onde o cliente circula, consulta as etiquetas, pesa os legumes numa máquina que lhe indica o preço e o peso, e depois estende o cartão de crédito a uma jovem, num desses caixas, não deixa de ser uma ação silenciosa, mas exemplifica a invasão do espaço pelo texto. Os supermercados são exemplos de não-lugares, mas são menos prestigiosos. Trata-se, entretanto, de certos lugares que só existem pelas palavras que os evocam, não-lugares, nesse sentido, lugares imaginários, utópicos, clichês. A palavra cria, aqui, a imagem e produz o mito, o faz funcionar.

Os não-lugares da supermodernidade, na auto-estrada, no aeroporto, nas compras de supermercado, definem-se por palavras ou textos que nos propõem o seu modo de usar, de três maneiras: prescritiva [esquerda ou direita], proibitiva [proibido fumar] ou informativa [você está entrando no Beaujolais]. Prescrição, proibição e informação instalam as condições de circulação em espaços onde se supõe que os indivíduos só interajam, por exemplo, com textos disseminados pelo percurso de uma cidade, que explicitam os pontos notáveis, sinalizados, em painéis na sua paisagem. O motorista de passagem observa a cidade como um conjunto de nomes num itinerário, mas a paisagem se mantém à distância, cujos detalhes arquitetônicos ou naturais transformam-se na oportunidade de um texto. Assim, o espaço como prática dos lugares procede por um duplo deslocamento do viajante e, paralelamente, das paisagens, das quais ele nunca tem nada mais do que visões parciais, instantâneas, somadas confusamente em sua memória, recompostas num ‘relato’ que o viajante faz delas ou, na volta, impõem-se os comentários. A viagem constrói, portanto uma relação fictícia entre o olhar e a paisagem, como se o espectador fosse para si mesmo o seu próprio espetáculo. O espaço do viajante é, enfim, o arquétipo do ‘não-lugar’.

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