sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Jamais Fomos Modernos: Ensaio de Antropologia Simétrica (Bruno Latour)


Para uns, o tempo não deixa de ser definido da seguinte maneira: o resultado provisório da ligação entre os seres. De onde vem a impressão (tão moderna) de viver um tempo novo que rompe com o passado? De uma ligação; uma repetição que não tem nada em si temporal. A impressão de passar irreversivelmente só é criada quando ligamos entre si a enorme quantidade de elementos (lê-se, ‘quase-objetos) que compõem nosso universo cotidiano: é a sua coesão sistemática. É a substituição de seus elementos por outros que se tornarão igualmente coerentes no período seguinte, que nos dá a impressão que o tempo passa: um fluxo contínuo indo do futuro ao passado. É preciso que as coisas andem na mesma velocidade e sejam substituídas por outras bem alinhadas, para que o tempo se torne um fluxo – a temporalidade moderna é o resultado dessa ‘disciplina’. “Moderno” é duas vezes assimétrico, porque assinala uma ruptura na passagem regular do tempo e assinala um combate no qual há vencedores e vencidos.

A história dos modernos será pontuada pela irrupção dos não-humanos: o ‘teorema de Pitágoras’; o Heliocentrismo; a ‘lei da gravidade’; a ‘máquina a vapor’; a ‘química de Lavoisier’; a ‘vacina de Pasteur’; a ‘bomba atômica’; o computador; do DNA; dos chips. A cada vez, será calculado o tempo a partir destes começos miraculosos, laicisando para isso a encarnação na história das ciências: ou não será feita a distinção entre o tempo ‘antes’ e o ‘depois’ do computador assim como o ano zero, ‘antes’ e ‘depois de Cristo’? A temporalidade moderna nada tem, entretanto, de ‘judaico-cristã’ e nada tem de durável também. A modernização promete uma saída das ‘trevas’, afinal, se o passado consiste numa confusão entre as coisas e os homens, o futuro será aquilo que não os confundirá mais. O presente é traçado por rupturas radicais, uma série de revoluções, através dessa linha os modernos promovem escansões, pelo menos duas, uma para cima (o progresso) e outra para baixo (a decadência), por onde se multiplicam as projeções dos quase-objetos. A noção de seta irreversível (progresso ou decadência) provém de uma classificação dos quase-objetos cujo crescimento os modernos não podem explicar, porque a irreversibilidade no curso do tempo é devida, em grande medida, à transcendência das ciências e das técnicas. É um processo de classificação para dissimular a origem inconfessável das entidades naturais e sociais. Tudo parece mais confuso se os quase-objetos misturam épocas, ontologias e gêneros diferentes. Assim, no lugar de um fluxo laminar, em geral, tem-se um fluxo turbulento: o tempo deixa de ser irreversível para tornar-se reversível. A própria temporalidade dos quase-objetos rompeu a temporalidade moderna. Primeiro foram os arranha-céus da arquitetura pós-moderna...

... o urso dos Pirineus, os Kolkozes, os aerossóis, a revolução verde, a vacina anti-varíola, a guerra nas estrelas, a religião muçulmana, a caça à perdiz, a Revolução Francesa, a fusão a frio, o bolchevismo, a relatividade, o nacionalismo esloveno, etc., ninguém sabe se saíram de moda ou se estão na ordem do dia, se são futuristas, intemporais, inexistentes ou permanentes. Crê-se que o pós-moderno é um sintoma, não a solução. Ele revela a essência da modernidade como a época da redução do ser ao novum. A pós-modernidade nada faz além de começar, e a identificação do ser com o novum. Os pós-modernos conservam o panorama moderno, mas dispersam os elementos que os modernizadores agrupavam ordenadamente. Os pós-modernos têm razão quanto à dispersão, mas estão errados ao conservar a exigência de novidade? Disse Clio de Péguy e também Michel Serres: “somos trocadores e misturadores de tempo”. Todas as tradições imutáveis mudaram anteontem, ninguém nasce tradicional: é uma escolha que se faz quando se inova muito. Não avançamos nem recuamos. Selecionamos elementos pertencentes a tempos diferentes. Ainda podemos selecionar e a seleção é que faz o tempo, e não o tempo que faz a seleção. O modernismo, o anti-modernismo e o pós-modernismo eram apenas uma seleção feita por alguns poucos em nome de muitos. Não emergimos de um passado de ‘trevas’ que confundia natureza e cultura para alcançar um futuro no qual os dois estarão claramente separados, graças a revolução do presente. Jamais estivemos em um fluxo vindo seja do futuro seja de eras longínquas. A modernidade nunca ocorreu. Não é uma maré que há muito sobe e que hoje reflui. Jamais houve uma maré. Sigam em frente, retornem às diversas coisas que sempre seguiram de outra forma.

O mundo moderno não pode se estender sem voltar a ser aquilo que jamais deixou de ser, isto é, como todos os outros: um mundo não moderno. Acontece que os modernos se enganaram ao querer não-humanos objetivos e sociedades livres. Estava errada sua certeza de que esta produção exigia a distinção absoluta dos dois termos. Os descendentes de Boyle definiram um parlamento dos mudos, entre os laboratórios, cientistas falavam em nome das coisas; enquanto, os descendentes de Hobbes definiram a República, longe dos laboratórios. Hobbes e seus seguidores criaram os principais recursos para falarmos de poder (representação, soberano, contrato, propriedade, cidadãos), mas Boyle e seus discípulos elaboraram um repertório importante para falarmos de natureza (experiência, fato, testemunho, colegas). O que não se sabia é que era uma dupla invenção! Com sua bomba de ar (vácuo), Boyle criou um discurso político de onde a política deve estar excluída, por seu turno, com seu Leviatã, Hobbes imaginou uma política científica da qual a ciência experimental deve estar excluída. Eles inventaram, portanto, nosso mundo moderno: onde a representação das coisas através do laboratório encontra-se para sempre dissociada da representação dos cidadãos através do contrato social. A separação moderna entre o mundo natural e o mundo social tem o mesmo caráter constitucional – do momento em que traçamos esse espaço simétrico, restabelecendo o entendimento comum que organiza a separação dos poderes naturais e políticos, deixamos de ser modernos. Trata-se de fundamentar uma epistemologia com um novo ator desconhecido e uma bomba de ar improvisada, artesanal e que vaza.

Em nenhum lugar observaremos um objeto e um sujeito, uma sociedade que seria primitiva e outra moderna. A sociedade como sabemos também é construída tanto quanto a natureza. Se formos construtivista para uma devemos sê-lo para ambas; se formos realistas para uma devemos sê-lo para outra. Para que a antropologia seja simétrica, sugere-se o ‘princípio de simetria generalizada’ (de Michel Callon): o antropólogo deve estar no ponto médio, de onde pode acompanhar, ao mesmo tempo, a atribuição de propriedades não humanas e de propriedades humanas. Não lhe é permitido usar a realidade para dar conta daquilo que molda a realidade externa, também não lhe é permitido alternar entre realismo natural e o realismo sociológico, usando ‘não apenas’ a natureza, ‘mas também’ a sociedade, a fim de conservar as duas assimetrias iniciais, ao mesmo tempo em que dissimula as fraquezas de uma sob as fraquezas da outra. Quando a antropologia volta dos trópicos para juntar-se à antropologia do mundo moderno, primeiro, acredita que só pode aplicar seus métodos quando os ocidentais confundem os signos e as coisas da mesma forma que o ‘pensamento selvagem’ o faz. A seguir, ao voltar para casa, os etnólogos não ficariam limitados às periferias, de forma que, assimétricos como sempre, são audaciosos com relação aos outros e tímidos quanto a si mesmos. Suponhamos que tendo voltado dos trópicos, a antropologia decida ocupar uma posição triplamente simétrica: [a] explica com os mesmos termos as verdades e os erros; [b] estuda ao mesmo tempo a produção dos humanos e dos não-humanos; [c] ocupa uma posição intermediária entre os terrenos tradicionais e os novos, pois suspende qualquer afirmação a respeito daquilo que distinguiria os ocidentais dos Outros. Desta forma, frente a frente com produções de naturezas-culturas, chamadas de ‘coletivos’, diferentes tanto da sociedade dos sociólogos (homens-entre-si) quanto da natureza dos epistemólogos (coisas-em-si). Enquanto coletivos, somos irmão. Jamais deixamos de construir nossos coletivos com materiais misturados aos pobres humanos e aos humildes não-humanos.

Para nos convencer que somos híbridos (quase-objetos, não-humanos), instalados no interior das instituições científicas (meio engenheiros, meio filósofos), a noção de rede ou de tradução parece ser nosso meio de transporte e optamos por descrever as tramas onde quer que elas nos levem: a rede é esse fio de Ariadne em histórias confusas. Enquanto os críticos pensam que estamos falando de técnicas e de ciências, eles questionam “mas então isso é política?” A epistemologia, as ciências sociais e as ciências do texto têm reputação, desde que elas permaneçam distintas, só lhes oferecer uma bela rede sociotécnica: a primeira extrairá os conceitos (para ligá-los ao social ou à retórica); a segunda amputará a dimensão sócio-política (purificando-a de qualquer objeto); a terceira conservará o discurso (purgando-lhe de qualquer aderência indevida à realidade e aos jogos de poder).

Nessa esteira, os críticos desenvolveram três grandes repertórios distintos para falar de nosso mundo: a naturalização, a socialização e a desconstrução (Changeux, Bourdieu, Derrida). Quando o primeiro trata de fatos naturalizados, não há mais sociedade, nem sujeito, nem forma de discurso; quando o segundo fala de ‘poder sociologizado’, não há mais ciência, nem técnica, nem texto, nem conteúdo; quando o terceiro se refere aos efeitos de verdade, seria ingenuidade acreditar na existência real dos neurônios ou nos jogos de poder. Realmente, nossa vida intelectual continua reconhecível contanto que os epistemólogos, os sociólogos e os desconstrutivistas sejam mantidos a uma distância conveniente?! Ou as redes que desdobramos não existem, e os críticos fazem bem em marginalizar os estudos sobre as ciências ou separá-los em três conjuntos distintos – fatos, poder, discurso –, ou então as redes são tal como as descrevemos, e atravessam a fronteira entre os grandes feudos da crítica – sendo ao mesmo tempo reais, e coletivas, e discursivas. Não será nossa culpa, se as redes são ao mesmo tempo reais como a natureza, narradas como o discurso, coletivas como a sociedade?

Uma rede, técnica, por exemplo, é local em todos os pontos, mas global em seu trajeto e deslocamento, no entanto nunca é universal o suficiente ao ponto de transportar algo a todos os lugares ao mesmo tempo. Existe um fio de Ariadne que nos permitiria passar continuamente do local ao global, do humano ao não-humano... O capitalismo é um labirinto de redes um pouco longas que envolvem um mundo a partir de pontos que se transformam em centros de cálculo e de lucro. Toda e qualquer globalização beneficia o totalitarismo, não devemos acrescentar a dominação total à dominação real. Não devemos acrescentar a força à potência nem ao capitalismo a desterritorialização absoluta. Da mesma forma não devemos permitir à verdade científica a racionalidade – também – absoluta. Tanto para os crimes quanto para o domínio (tanto para os capitalismos quanto para as ciências) devemos compreender as coisas banais, as pequenas causas e seus grandes efeitos.

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