sábado, 31 de outubro de 2009

Gramatologia (Jacques Derrida)



E tudo acontece como se, deixando de designar uma forma particular, derivada, auxiliar da linguagem em geral, o ‘significante do significante’ – o conceito de escritura – começava a ultrapassar a extensão da linguagem. Em todos os sentidos, escritura compreenderia a linguagem. Não que a palavra escritura deixe de designar o significante do significante, mas descreve o movimento da linguagem: na sua origem, cuja estrutura se soletra como ‘significante do significante’, apaga-se a si mesma na sua própria produção. Até mesmo o significado aí funciona desde sempre como um significante, não há significado que escape, mais cedo ou mais tarde, ao jogo das remessas do significante que constitui a linguagem.

O privilégio da phoné não depende de uma escolha. O sistema do ‘ouvir-se-falar’ através da substância fônica – que se dá como significante não-exterior, não-empírico, não-mundano teve de dominar durante toda uma época a história do mundo, até mesmo produziu a ideia de (origem do) mundo, a partir da diferença entre o mundano e o não-mundano, o fora e o dentro, a idealidade e a não-idealidade, o transcendental e o empírico, etc. A ‘racionalidade’ que comanda a escritura assim ampliada e radicalizada, não é mais nascida de um logos e inaugura a destruição e a desconstrução (de-sedimentação) de todas as significações que brotam da signifi-cação de logos e, em especial, a significação de verdade. Dentro deste logos nunca foi rompido o liame origi-nário com a phoné. A essência da phoné estaria imediatamente próxima daquilo que, no ‘pensamento’ como logos, tem relação com o sentido. Entre o ser e a alma, as coisas e as afecções, haveria uma relação de tradução ou de significação natural; entre a alma e o logos, uma relação de simbolização convencional. E a primeira convenção, a que se referiria imediatamente à ordem da significação natural e universal, produzir-se-ia como linguagem falada. A linguagem escrita fixaria convenções, que ligariam entre si outras convenções.

A voz é o que está mais próximo do significado, tanto quando este é determinado rigorosamente como sentido (pensado ou vivido) como quando o é, com menos precisão, como coisa. Com respeito ao que uniria indis-soluvelmente a voz à alma ou ao pensamento do sentido do significado, e mesmo à coisa mesma, todos os significantes, e em primeiro lugar o significante escrito, seria derivado: seria sempre técnico e representativo. Esta derivação é a própria origem da noção de ‘significante’. O que é dito a respeito do som em geral vale a fortiori para a fonia, pela qual, em virtude do ouvir-se-falar o sujeito afeta-se a si mesmo e refere-se a si no elemento da idealidade. A época do logos rebaixa a escritura; pertenceria a esta época a diferença (ou mútua exterioridade, ou estranho desvio de ‘paralelismo’) entre significado e significante.

A diferença entre significante e significado pertence de maneira implícita à grande época abrangida pela história da metafísica e de maneira explícita à época do criacionismo e do infinitismo cristãos, quando se apoderam dos recursos da conceitualidade grega. A ‘ciência’ semiológica ou linguística não pode conservar a diferença entre significante e significado – a própria ideia de signo – sem a diferença entre o sensível e o inteligível e sem conservar a referência a um significado que possa ocorrer antes de sua ‘queda’ e de toda expulsão para a exterioridade do ‘este mundo’ sensível. A face inteligível do signo permanece voltada para o lado do verbo e da face de Deus. O signo e a divindade têm o mesmo local e a mesma data de nascimento – a época do signo é teológica, não terminará talvez nunca, sua clausura histórica está desenhada.

O conceito de signo marca a sua pertença metafísica, contudo sua temática é o trabalho de agonia de uma tradição que pretendia subtrair o sentido, a verdade, a presença, o ser, etc. –, ao movimento de significação. A exterioridade do significante é, com efeito, a exterioridade da escritura, demonstra-se, pois que não há signo linguístico antes da escritura. Mesmo quando a coisa, o ‘referente’, não está imediatamente em relação com o logos de um deus criador onde ela começou como sentido falado-pensado, o significado tem uma relação imediata com o logos em geral, mediata com o significante, com a exterioridade da escritura. Se isso não acontecer, uma mediação metafórica se insinuou na relação e simulou uma imediatez: a escritura da verdade na alma.

A língua tem, portanto, uma tradição oral independente da escritura – derivada porque representativa: significante do significante primeiro; representação da voz presente a si, da significação imediata, natural e direta do sentido. Este factum da escritura fonética é maciço e é verdade, comanda toda nossa cultura. Se a palavra (vox) já é uma unidade do sentido e do som, do conceito e da voz, trata-se de conservar o termo ‘signo’ para designar o total, mas substitui-se ‘conceito’ e ‘imagem acústica’ respectivamente por significado e significante, numa linguagem saussuriana. As relações entre a fala e a escritura consideram as unidades indivisíveis do ‘pensamento-som’: a escritura será fonética (o fora, representação exterior da linguagem) deste ‘pensamento-som’. A escritura (letra, inscrição sensível) sempre foi considerada pela tradição ocidental como corpo e matéria exteriores ao espírito, ao sopro, ao verbo e ao logos. Assim, uma ciência da linguagem deveria reencontrar relações ‘naturais’ (simples e originais) entre a fala e a escritura, entre um dentro e um fora: haveria então uma natureza das relações entre ‘signos lingüísticos’ e ‘signos gráficos’. Insuportável e fascinante esta intimidade que enreda a imagem à coisa, a grafia à fonia, de tal modo que a fala parece o speculum da escritura que usurpa o papel principal. A escritura é, enfim, a dissimulação da presença natural, primeira e imediata o sentido à alma no logos, sua violência sobrevém à alma como inconsciência. Desta forma, é preciso proteger a vida espontânea, pois no interior da escritura fonética comum não se permite a exatidão nem a exigência científica: a racionalidade seria, neste sentido, portadora de morte, desolação e de monstruosidade – é um afastamento da natureza, sob uma perversão do artifício que engendra monstros. Desta espécie de ‘psicologia da consciência’ e da ‘consciência intuitiva’ diz-se que a escritura fonética não existe – nunca nenhuma prática é puramente fiel ao seu princípio – talvez porque o simbolismo vazio da notação escrita seja o que nos exila para longe da evidência clara de sentido, da presença plena do significado na sua verdade, abrindo uma possibilidade de crise, uma crise do logos.

Resta que o ‘conceito de grafia’ implica, como possibilidade comum a todos os sistemas de significação, a instância de ‘rastro instituído’ – ‘imotivado’, não parte da ideia de que o significante dependa da livre escolha do que fala, simplesmente não tem nenhuma amarra natural com o significado na realidade. A ‘imotivação’ do signo requer uma síntese em que o totalmente outro se anuncia como tal. O rastro articula sua possibilidade sobre todo o campo do ente, onde se imprime a relação ao outro, que a metafísica determinou como ente-presente a partir do movimento escondido do rastro. O movimento do rastro é, entretanto, necessariamente ocultado, produz-se como ocultação de si – quando o outro se anuncia como tal, apresenta-se na dissimulação de si. O campo do ente, antes de ser determinado como campo de presença, estrutura-se conforme as diversas possibilidades – genéticas e estruturais – do rastro. A estrutura geral do rastro imotivado faz comunicar na mesma possibilidade a estrutura da relação com o outro, de tal modo que não existe rastro imotivado, afinal o rastro é indefinidamente seu próprio vir-a-ser-imotivado.

Não se pode pensar o rastro instituído sem pensar a retenção da diferença numa estrutura onde a diferença aparece como tal e permite assim certa liberdade de variação entre os termos plenos, deste modo, a diferença não é pensada sem o rastro. Por sua vez, o rastro (puro) é diferência, que não depende de nenhuma plenitude sensível (audível, visível, fônica, gráfica), mas é a condição desta plenitude; embora não exista, sua possibilidade é anterior a tudo que se denomina signo, conceito, motriz ou sensível. A diferência é a formação da forma, portanto, mas ela também é o ser impresso da impressão.

A Gramatologia não deve ser uma das ciências humanas nem uma ciência regional dentre elas, porque coloca em questão o nome do homem. Liberar a unidade do conceito do homem é renunciar à velha ideia dos povos ditos ‘sem escritura’, ‘sem história’. Em vez de recorrer aos conceitos que servem habitualmente para distinguir o homem dos outros viventes, apela-se à noção de ‘programa’, no sentido, por exemplo, da cibernética, que é inteligível a partir de uma história das possibilidades do rastro como unidade de um movimento que faz aparecer o grama como tal e possibilita o surgimento dos sistemas de escritura no sentido estrito. Da ‘inscrição genética’ e das ‘curtas cadeias’ programáticas que regulam o comportamento da ameba ou do anelídeo até a passagem para além da escritura alfabética às ordens do logos e de um certo homo sapiens – a possibilidade do grama estrutura o movimento de sua história segundo níveis e ritmos rigorosamente originais. A história da escritura se erige sobre o fundo da história do grama como aventura das relações entre a face e a mão.

O fonologismo é a exclusão ou o rebaixamento da escritura, no interior tanto da linguística quanto da metafísica, mas não deixa de ser também a autoridade atribuída a uma ciência que deseja considerar como o modelo de todas as ciências ditas humanas. O que é a descendência na ordem do discurso e do texto? Textos de Claude Lévi-Strauss foram escolhidos e a partir deles houve uma incitação a leitura de Rousseau não só por causa de um interesse teórico ou do papel que desempenham atualmente, mas pelo lugar que neles ocupam a teoria da escritura e o tema da fidelidade de Rousseau. Por que Lévi-Strauss e Rousseau? Lévi-Strauss não se sente apenas em harmonia com Jean-Jacques Rousseau, ele se apresenta como seu discípulo moderno. O estruturalismo de Lévi-Strauss é um fonologismo, mas ele escreveu sobre a escritura. Em “Tristes Trópicos”, a lição de escritura marca um episódio que poderia se denominar ‘guerra etnológica’: confrontação que abre a comunicação entre os povos e as culturas, mesmo que essa comunicação não se pratique sob o signo da opressão colonial, missionária. Trata-se da penetração de Lévi-Strauss no mundo dos Nhambiquara, onde a história da escritura e a história da estrada (ruptura, via rupta, via rompida), pelo afastamento da natureza, da floresta natural, selvagem: a via rupta escreve-se, discerne-se, inscreve-se violentamente como diferença. Há escritura, então, desde que o nome próprio seja rasurado num sistema, afinal, entre os Nhambiquaras o emprego dos nomes próprios é interdito: [1] porque os nomes próprios já não são nomes próprios; [2] porque sua produção é sua destruição, obliteração; [3] porque o nome próprio nunca foi possível a não ser pelo seu funcionamento numa classificação sob um sistema de diferenças – numa escritura que retém rastros de diferença, o interdito foi possível e eventualmente pode ser transgredido. Nunca se dá um nome, classifica-se o outro ou classifica-se a si mesmo. Entre os Nhambiquara, enfim, o emprego dos nomes próprios é interdito: nomear, dar nomes que serão proibidos pronunciar, essa é a violência originária da linguagem que consiste em suspender um vocativo absoluto. Para identificar as pessoas era preciso acompanhar o uso do pessoal na linha, ou seja, convencionar com os indígenas nomes de empréstimo pelos quais seriam designados. Acontece uma ‘guerra dos nomes próprios’ quando um estranho (etnólogo) chega e nasce em sua presença, como descreveu Lévi-Strauss no ‘jogo das menininhas’, que vai excitar o desatar das línguas e fazer as meninas entregar os nomes preciosos dos adultos. O que os Nhambiquara escondiam, as menininhas expõem na transgressão.

Transgredir a lei e a voz da piedade é substituir a afeção natural pela paixão pervertida. A lei natural, a doce voz da piedade, não é somente proferida por uma instância materna, ela é inscrita em nossos corações por Deus: que essa doce voz seja a da natureza e a da mãe, isto se reconhece também em ser ela lei. Não se trata mais de Lévi-Strauss, mas de Rousseau e a voz da lei materna, através da ordem da piedade que ocupa lugar de lei, supre a lei, a lei instituída. A piedade natural ilustra de maneira arquetípica a relação da mãe com o filho e comanda como uma doce voz. O “Essai sur l’origine des langues” de Jean-Jacques opõe a voz à escritura como a presença a ausência. Não seria espantoso referir-se a uma inquietude que parece animar toda a reflexão de Rousseau, que diria respeito à origem e a degenerescência da música. Se não há música antes da linguagem é porque a música nasce da voz e não do som. A música se desperta no canto e nasce na paixão, dito de outro modo, as necessidades ditaram os primeiros gestos, mas as paixões arrancaram as primeiras vozes. A música supõe a voz e se forma ao mesmo tempo em que a sociedade humana, sendo fala, ela requer que o outro me seja presente como outro na compaixão. O canto é o oriente da música, mas não se reduz a voz, define-se a melodia como imitação dos acentos da voz falante e apaixonante, enquanto na harmonia os acentos orais são privados de seus efeitos, tornando-se uma ciência do intervalo que se põe no calor dos acentos. Apaga o acento apaixonado para substituí-lo pelo intervalo harmônico. Distingue-se, então, a harmonia (tem o seu por si mesmo, independe de qualquer quantidade) da melodia (ideias de ritmo e de medida lhes dão um caráter determinado). Será o acento das línguas que determinará a melodia de cada nação – o acento que faz com que se fale ao cantar e que se fale com maior ou menor energia, pouco ou nenhum acento só pode ter uma melodia fria: a harmonia que destrói a energia da música? Não houve outra música senão a melodia – os acentos formavam o canto.

Nesta perspectiva, a estrutura do Essai não reflete a linguagem somente em seu devir, mas em sua disposição espacial, em sua geografia. As duas extremidades do eixo em torno do qual gira a terra (o pólo norte e o pólo sul) são as referências, além das estações do ano. A oposição norte/sul é racional e estrutural, traça um eixo de referência no interior de cada língua. Uma vez constituídas as línguas, a polaridade necessidade/paixão continua operando em cada sistema linguístico: ora as línguas se aproximam da paixão, ora se aproximam da necessidade. Assim, as línguas do norte são, sobretudo línguas da necessidade, a primeira palavra certamente foi ‘ajudai-me’, enquanto as línguas do sul são línguas da paixão, onde os primeiros discursos foram cantos de amor. Para Rousseau o Merídio é o berço das línguas, lugar de origem, de onde as línguas setentrionais se distanciaram; por isso essas últimas são menos puras, menos vivas, menos quentes.

O canto não parece natural ao homem, embora os selvagens da América cantem, porque falam – o verdadeiro selvagem não cantou nunca. O canto deve também imitar os gritos e os lamentos. Para Jean-Jacques o grande defeito dos europeus é filosofarem sempre sobre as origens das coisas segundo o que se passa em torno deles. Em seguida, afirma que a região não é indiferente à cultura dos homens: um homem não é plantado como uma árvore em uma região para nela permanecer para sempre. No norte os homens consomem muito num solo ingrato, no merídio eles consomem pouco num solo fértil: nasce daí uma nova diferença que torna uns laboriosos e os outros contemplativos...

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