quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Os Anormais (Michel Foucault)


Este curso, proferido no Collège de France entre 1974 e 1975, trata do monstro moral, personagem da viragem do século XIX-XX. O monstro sempre foi uma noção jurídica e não médica, mas o monstro interroga o sistema médico e o sistema judiciário. O monstro medieval é um misto de duas espécies, misto de dois sexos, misto de duas formas... Se a forma bestial foi o monstro medieval, os siameses foram os monstros renascentistas e os hermafroditas foram os monstros do século XVII, todos, de um modo ou de outro, agiam contra a ordem e a regra da natureza, articulados a uma ‘teoria jurídica-biológica do monstro’. Embora tenha sido depois do caso do hermafrodita Roeun que o discurso médico necessitou de um discurso científico sobre a sexualidade, afinal a condenação era pelo comportamento e não pelo fato de um indivíduo ser hermafrodita. Surge a relevância da clínica da sexualidade, o detalhe clínico e a descrição detalhada. Mas destaca-se uma monstruosidade das condutas e não monstruosidade da natureza. Percebe-se uma autonomia da monstruosidade moral e de comportamento, demarca-se a passagem do domínio somático e natural para o domínio da criminalidade. Assim, erige-se no século XVIII o estatuto criminal da monstruosidade, para que apareça o monstro moral, o criminoso monstruoso entre os séculos XVIII e XIX, talvez eclodindo com maior ênfase, com a figura de Marquês de Sade.

De todo modo, o criminoso é o déspota, duplo movimento em que o soberano se encontra acima das leis e o criminoso abaixo delas. O criminoso é aquele que rompe o pacto e faz prevalecer a razão do seu interesse: Estado de Violência. O primeiro monstro é o rei que infringe o pacto social. Não há pudor em dizer que Luis XVI e Maria Antonieta formam junto um casal monstruoso ávidos por sangue. Entrecruzamento do monstro real. O canibalismo soberano ávido pelo sangue do povo e o incesto, a devassidão, o homossexualismo. Por isso que a antropofagia e o incesto tornam-se proibidas e o monstro moral aparece como uma prática jurídica no século XVII. Duas transgressões a duas interdições, uma alimentar (antropofagia) e outra sexual (incesto). Crime de reis e crimes dos famintos: o soberano despótico e o povo revoltado são dois campos da anomalia que culmina no século XIX.

A passagem do monstro ao anormal foi ilustrada com os três monstros fundadores da psiquiatria. Em primeiro lugar, a mulher de Sélestat, que matou a filha, cortou-a em pedaços, cozinhou sua coxa com repolho e comeu-a. Em segundo lugar, o caso de Papavoine, que assassinou no bosque de Vincennes duas crianças, que tomou por descendentes dos filhos da duquesa de Berry. E enfim, Henriette Cornier, que cortou o pescoço de uma filhinha dos vizinhos. Atos monstruosos produzidos por uma dinâmica móbil dos instintos. Domínio de objetos novos integrados ao discurso psiquiátrico – instintos, impulsos, pulsões, tendências, propensões e automatismos. Há o aparecimento da psiquiatria como domínio da higiene pública e proteção social no século XIX em sua dupla codificação como doença e como perigo, nosografia que se classifica em monomania homicida e suicida. Percurso que terá, no início do século XIX, a monomania, mas na segunda metade do mesmo século terá a degeneração. São crimes sem razão que a psiquiatria acha-se no poder de reconhecer. Entretanto, passa-se do ato sem razão ao ato instintivo. A partir da noção de instinto vai se organizar o problema do anormal no nível das condutas elementares e cotidianas. Vê-se passar do “grande monstro” ao “pequeno perverso” realizada pela noção de instinto. Henriette Cornier, monstro pálido, que no fundo delineou o elemento do instinto que permite uma engrenagem dupla, o mecanismo penal e o mecanismo judiciário.

No caso de Cornier, atribui-se a um instinto homicida que não tem nenhum interesse, nenhuma razão e atravessa a conduta. Mas em outro caso, de Charles Jouy, no século XIX, que molestou uma menina, masturbou-a, ou foi um quase-estupro, buscavam-se estigmas permanentes que marcam estruturalmente o indivíduo a ponto de submetê-lo a uma série de medicações. Se com Henriette a medicina mental monomaníaca traz à luz processos patológicos sob um crime que pretendia erigir um sintoma, uma ‘loucura instintiva’ que suporta o ato delituoso; com Jouy, integra-se o delito em estigmas permanentes e estáveis, ou o núcleo do ‘estado’ que é a falta de desenvolvimento, detectando-se um desequilíbrio funcional como princípio da conduta.

Nova engrenagem funcional em que se analisam os comportamentos patológicos. Os imbecis e os degenerados são decifrados pela infância do comportamento e da inteligência. O caráter infantil da moral da sexualidade. Se a imbecilidade estava ligada a aberração de comportamento, isto ocorria porque os instintos que interrompem o desenvolvimento demonstram a sua infância. Com Charles Jouy, houve uma aproximação e fusão entre a criança que ele se relacionou com a sua própria infância. Identidade na infância do criminoso e da vítima. Infância como fase cronológica do desenvolvimento e forma geral do comportamento. A infância tornou-se, nos discursos psiquiátricos do fim do século XIX, analisadora dos comportamentos.

Discurso que se esfuma e se dissipa, pois o discurso psiquiátrico-penal foi definido de antemão, em sua nascente, como um discurso ubuesco e do medo, discurso da moralização, discurso infantil.

O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia (Gilles Deleuze & Félix Guattari)


Para Freud os esquizofrênicos parecem filósofos. O esquizofrênico é o produtor universal, não se pode distinguir o produzir e o seu produto. O esquizofrênico dispõe de modos particulares de referência diferentes do código social. O esquizofrênico vive a natureza como processo de produção. Há três sentidos para a produção: produção de produções (de ações e de reações); produções de registros (de distribuições e de pontos de referência); produções de consumos (de volúpias, angústias e dores). O homem e a natureza não são dois termos distintos. O objeto supõe a continuidade de um fluxo e o produzir está sempre inserido no produto. Parte da libido, como energia de produção, transformou-se em energia de registro (Numen), uma parte desta se transforma em energia de consumo (Voluptas). A esquizofrenia é o processo de produção do desejo e das máquinas desejantes.

Em primeiro lugar, uma máquina se define como um sistema de cortes, ou seja, está em relação com um fluxo material contínuo que ela corta. Em segundo lugar, todas as máquinas comportam uma espécie de código que está armazenado nela, este código é inseparável do seu registro e da sua transmissão nas diferentes regiões do corpo. Em terceiro lugar, define-se o corte-resto ou resíduo, que produz um sujeito ao lado da máquina, adjacente a ela: esse sujeito não tem uma identidade específica ou pessoal. O primeiro modo remete para a síntese conectiva e mobiliza a libido como energia de extração. O segundo, para a síntese disjuntiva, mobiliza o Numen como energia de destacamento. O terceiro, para a síntese conjuntiva, e mobiliza a Voluptas como energia residual. Extrair, destacar e restar, é produzir, é efetuar as operações reais do desejo. Parte-se do princípio que o desejo é sempre constitutivo de um campo social.

Destacam-se três tipos de máquinas sociais. Uma máquina técnica implica um elemento não humano, atuante, transmissor ou motor, mesmo manual em sua forma mais simples, que prolonga a força do homem. A máquina territorial é a primeira forma de socius, a máquina de inscrição primitiva - mega-máquina que cobre o campo social. A sociedade primitiva não é um meio de troca (que objetiva fazer circular), mas é um locus em que o essencial é marcar e ser marcado, pois só há circulação onde a inscrição e a codificação permite ou exige. Já uma máquina despótica promove uma destruição das codificações primitivas por reduzi-las a elementos secundários. O déspota recusa as alianças e as filiações dos primitivos, colocando-se como um sujeito de um saber desterritorializado que o liga diretamente a Deus e o conecta ao povo. Para que a máquina capitalista nasça vai ser preciso uma conjunção de fluxos descodificados: o trabalhador desterritorializado transformado em trabalhador livre e nu (vendendo sua força de trabalho) e o dinheiro descodificado transformado em capital (capaz de comprar a força de trabalho).

Só há máquinas, grupos e populações no inconsciente. A verdadeira diferença está entre as máquinas molares, sejam elas sociais, técnicas ou orgânicas, e as máquinas desejantes que são de ordem molecular. As máquinas desejantes moleculares são investimentos das grandes máquinas molares. Deriva daí dois pólos distintos do investimento libidinal social: o pólo paranóico, reacionário fascista e o pólo esquizóide revolucionário. Os dois pólos definem-se, o primeiro, por linhas de integração e territorialização que param os fluxos, os estrangulam, estendem e recortam segundo os limites interiores do sistema; o outro, por linhas de fuga que os fluxos descodificados e desterritorializados seguem, inventando os seus próprios cortes. O investimento paranóico submete a produção desejante fazendo passar o limite para dentro do socius, deslocando-o entre dois conjuntos molares: o social como partida e o familiar como chegada. Definem-se, portanto, entre os paranóicos como grupos sujeitados e os esquizos como grupos-sujeitos.

O revolucionário é o primeiro a ter o direito de dizer: O Édipo? Sei lá o que é isso! Trata-se de deixar passar um fluxo esquizofrênico capaz de subverter o campo da psicanálise. Acontece até de um único homem funcione como fluxo-esquize, como grupo-sujeito, em ruptura com o grupo sujeitado de se excluiu ou é excluído: Artaud, o esquizo. A esquizofrenia não é a identidade do capitalismo, mas a sua diferença, o seu desvio, a sua morte.

domingo, 7 de dezembro de 2008

A Economia Política Brasileira (Guido Mantega)


Este livro é uma versão modificada de uma tese de doutorado apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e Paul Singer, Luiz Carlos Bresser Pereira e Fernando Henrique Cardoso fizeram parte da banca examinadora. Este texto resgata o período das décadas de 1950-1960 em que a consolidação do novo Brasil urbano-industrial acentuava o confronto entre os velhos interesses agroexportadores, em decadência, e os novos segmentos sociais vinculados à acumulação industrial. A controvérsia sobre o desenvolvimento econômico travava-se entre uma corrente que defendia o liberalismo econômico, ocupada com a ‘vocação agrária’ do Brasil e uma corrente desenvolvimentista, que pregava a intervenção do Estado na economia para programar a industrialização no país.

O intervencionismo (urbano-industrial) e o liberalismo (agroexportador) são correntes antagônicas e revelam-se como as principais forças sócio-econômicas do Brasil nas primeiras décadas do século XX. Na década de 40, com Vargas, tomava corpo a ideologia desenvolvimentista e intervencionista. Esta ideologia desenvolvimentista ganhava adeptos da nascente burguesia industrial, da classe média urbana e sua classe mais poderosa (as forças armadas). Foi destacada a importância da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina) e do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), uma versão ligeiramente mais nacionalista do desenvolvimentismo na sua versão cepalina, a ser praticada por um governo muito liberal com o capital estrangeiro como o de Kubitschek. A ideologia ‘nacional-desenvolvimentista’ foi forjada nos anos 50 e gestada na CEPAL, por economistas como Gunnar Myrdal e Ragnar Nurkse, aprimorando-se pelos intelectuais do ISEB.

Trata-se de uma análise da primeira fase da Economia Política Brasileira, limitada nos anos 50 e que se estende aos anos 60, quando vigoravam as teses estagnacionistas. De 1964 até praticamente o final dos anos 60 aparecem apenas idéias esparsas em artigos de jornais e revistas especializadas, ficando para a década de 70 a sua consolidação teórica. Neste período, então, em questão do pensamento econômico brasileiro revelou três correntes de pensamentos que podem ser expressas, em linhas gerais da seguinte forma: 1) Modelo de Substituição de Importação, oriundo das obras de Celso Furtado, que enfatiza a importância da atividade cafeeira, da introdução da mão-de-obra livre (migrações) e destaca o subdesenvolvimento e a abundância de mão-de-obra, visto que o modelo de substituição de importações emprega pouca mão-de-obra; 2) Modelo Democrático-Burguês sistematizado por Nelson Werneck Sodré que constituiu, nesta abordagem, uma interpretação errônea do estágio da dinâmica social brasileira, com base em uma avaliação do desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais de produção do Brasil das décadas de 50 e 60, tidas como fundamentalmente pré-capitalistas; 3) Modelo de Subdesenvolvimento Capitalista originário dos trabalhos de Caio Prado Júnior principalmente, que interpretava a sociedade brasileira como produto da expansão capitalista mundial desde sua gênese, afinal a economia colonial brasileira nasce enquanto grande exploração comercial, gerada pelo capitalismo europeu e voltada para o mercado metropolitano.

O avanço tecnológico é a mola mestra para o desenvolvimento do capitalismo clássico. O desenvolvimentismo foi a ideologia que mais influenciou a economia política brasileira, herdeiro direto da corrente keynesiana que se opunha ao liberalismo neoclássico, afinal era preciso incrementar a participação do Estado na economia por meio do planejamento global, de modo a facilitar o advento da industrialização nacional. A análise econômica e as receitas de desenvolvimento elaboradas pela CEPAL constituíam a espinha dorsal do desenvolvimentismo, inspirando a formulação de ‘planos de desenvolvimento’. A expansão industrial exigia esforços imediatos no sentido de se incrementar o fornecimento de energia e de se melhor o sistema de transportes. As primeiras investigações sobre o ‘desenvolvimento’ e a dinâmica da economia brasileira saíram do Estado, mas não foi por acaso.