domingo, 1 de novembro de 2009

A Genealogia da Moral (Friedrich Nietzsche)


Há um aspecto no homem que lhe fatiga; essa fadiga é o niilismo: o homem fatiga-se do homem. O homem, animal mais valoroso e enfermiço, não repele a dor, antes a procura, contanto que lhe digam o porquê. Assim o ideal ascético apresenta sua finalidade e explica a dor ao fazer uma interpretação que traz uma dor nova e mais profunda, mais íntima, ao mesmo tempo diz que era o castigo de uma falta. No entanto, o homem já não era mais uma folha levada ao vento, fosse o que fosse: ‘estava salva a vontade’. A natureza desta direção asceta que se segue através do ódio a tudo quanto era humano (aos sentidos, ao desejo, animal, material, ao esforço), tudo isso significa uma ‘vontade de aniquilação’. O homem ‘livre’, senhor de vasta e indomável vontade, acha em sua posse uma ‘tábua de valores’. Para julgar, fundado em si mesmo, respeita ou despreza: venera os seus semelhantes (fortes, soberanos) e está disposto a dar um pontapé nos miseráveis: o homem soberano chama-se ‘consciência’. Onde quer que exista a justiça se vê um poder forte em frente de poderes fracos, que procura por um termo aos insensatos furores do ressentimento, não só arrancando-lhe com mãos vingadoras, mas declarando guerra aos inimigos da paz, da ordem e inventando compromissos que impõem a força de lei a certas equivalências dos prejuízos – a todo um sistema de obrigações morais. Por mais estranho que hoje isto possa parecer: ‘nada custou mais caro do que esta migalha de razão e de liberdade, que hoje nos envaidece’. Toda essa maquinação infernal chamada reflexão: a razão, a gravidade, o domínio das paixões... e todos os privilégios pomposos do homem, como custaram caro! Quanto sangue, quanta desonra se encontra no fundo de todas essas ‘coisas boas’! Cada passo que o homem deu sobre a terra custou-lhe muitos suplícios intelectuais e corporais – tudo pode ter passado adiante e atravessado todo o movimento, mas em troca teve-se inúmeros mártires.

Todas as raças nobres deixaram vestígios de barbárie à sua passagem. Esta audácia das raças nobres, audácia louca, absurda, espontânea; a sua indiferença e o seu desprezo do bem-estar, da vida; a alegria terrível e profunda em toda a destruição, os prazeres da vitória e da crueldade, tudo isso, na imaginação das vítimas se resumia na ideia de ‘bárbaro’, ‘maligno’, ‘vândalo’. Por isso, no fundo destas raças aristocráticas é impossível não reconhecer a fera – o bruto de louros cabelos em busca de presa – este fundo de bestialidade mostra-se de quando em quando: a aristocracia romana, árabe, germânica, japonesa ou os heróis homéricos, vikings escandinavos, todos são iguais a esse respeito. Por outro lado, qual é o sentido da palavra ‘bom’, segundo a etimologia, nas diversas línguas? Através das palavras e raízes que significam ‘bom’, transparece o matiz principal pelo qual os ‘nobres’ se tinham por homens de uma classe superior. Em toda a parte, a ideia de ‘distinção’ e de ‘nobreza’ é, no sentido de ordem social, a idéia-mãe donde nasce e se desenvolve a concepção de ‘nobreza’ como privilegiada quanto à alma. Este desenvolvimento foi paralelo à transformação das noções ‘vulgar’, ‘plebeu, ‘baixo’ na noção de ‘mau’. Um exemplo dessa metamorfose é a palavra alemã schlecht [mau] que é idêntica à palavra schlicht [simples], em cuja origem designava o homem simples, o homem plebeu. O latim malus pode designar o homem plebeu de cor morena e de cabelos pretos, o autóctone pré-ariano do solo itálico que se distinguia muito, pela sua cor, da raça dominadora e conquistadora dos loiros arianos. Ao menos o gaélico subministra-se indício semelhante: a palavra ‘fin’, por exemplo, ‘Fin gal’, é um termo distintivo da nobreza e que, em última análise, significa ‘o bom’, ‘o nobre’, ‘o puro’, que significava antigamente ‘o de cabelos loiros’ em oposição ao autônomo de cabelos negros. Crê-se poder interpretar o latim bonus por ‘o guerreiro’: levando-se bonus à sua forma antiga de duonus [comparado a bellum duellumduenlum, donde parece conservar duonus]. Com efeito, bonus seria o homem da disputa [duo], o guerreiro: eis o que constitui a bondade de um homem da Roma antiga. E a nossa palavra alemã gut [‘bom’] não significaria der Goettlich [‘o divino’], o homem de origem divina?

Os dois valores opostos ‘bom e mau’, ‘bem e mal’, mantiveram durante milhares de anos um combate largo e terrível e ainda que, há muito tempo que o segundo valor logrou vantagem, não faltam ainda hoje terrenos onde a luta continua com variado êxito. O símbolo desta luta: ‘Roma contra Judéia, Judéia contra Roma’. Roma via no judeu uma natureza oposta à sua: um antípoda monstruoso. Os romanos eram fortes e nobres, enquanto os judeus eram um povo levita e rancoroso por excelência. Qual dos povos venceu? Roma ou Judéia? Note-se que na mesma Roma e em metade do mundo ou em toda parte onde o homem está civilizado ou tende a sê-lo, a humanidade inclina-se diante de três judeus e uma judia: Jesus de Nazaré, Pedro, Paulo e Maria, mãe de Jesus. Este é um fato notável. Roma foi vencida. Jesus de Nazaré, encarnado de amor e ‘Salvador’, trouxe aos pobres, aos enfermos e aos pecadores a bem-aventurança e a vitória, não deixava de ser precisamente a sedução mais irresistível que havia de conduzir aos homens e adaptá-los aos valores judaicos. Que coisa mais sedutora não é este símbolo da ‘santa cruz’, esta crueldade louca de um Deus que se crucifixa ele mesmo ‘pela salvação’ da humanidade?

Tudo o que na Terra se fez contra os ‘nobres’ (poderosos, senhores, governantes) não se pode comparar com o que fizeram os ‘judeus’. Os judeus se vingaram dos seus dominadores por uma radical mudança dos valores morais, uma vingança essencialmente espiritual. Só um povo de sacerdotes podia obrar assim, com uma lógica formidável, atiraram por terra a aristocrática equação dos valores: bom, nobre, poderosos, amado por Deus. Com encarniçado ódio, os judeus afirmaram: ‘só os desgraçados são bons; os que sofrem e os enfermos, os necessitados, os pequenos são bons. Com os judeus começou a emancipação dos escravos da moral. Esclarece-se que o ‘mau’ do aristocrata e o ‘maligno’ do rancoroso apresentam um singular contraste: o primeiro é uma criação posterior, um acessório, complementar; o segundo é a ideia original, o começo – o ato por excelência na concepção de uma ‘moral dos escravos’. O juízo da aristocracia segue-se na guerra, nas aventuras, na caça, na dança, nos jogos e em exercícios físicos que implicam uma ação robusta, livre e alegre; enquanto os sacerdotes são inimigos mais malignos, porque são mais impotentes, o que faz crer um ódio monstruoso, sinistro, intelectual e venenoso. De um lado, toda amoral aristocrática nasce de uma triunfante afirmação de si mesma, a ‘moral dos escravos’ opõe um ‘não’ a tudo o que não é seu – ‘não’ que por si só é o seu ato criador. Essa mudança total está sob o ponto de vista do ódio: a moral dos escravos necessitou sempre de estimulantes externos para entrar em ação; a sua ação é uma reação. A rebelião dos escravos na moral começou quando o ódio começou a produzir valores.

O homem designa-se a si mesmo como ser que estima valores, que aprecia e avalia por excelência: a compra e a venda, os seus corolários psicológicos são anteriores às origens de toda a organização social e o sentimento que nasceu da troca (do contrato, da dívida, do direito, da obrigação, da compensação) transportou-se logo para os complexos sociais mais primitivos ou mais grosseiros no mesmo tempo que o hábito de comparar uma força com a outra, de as medir e calcular. Fixar preços, estimar valores, imaginar equivalência, cambiar, tudo isto preocupa o pensamento primitivo que, em certo sentido, é o pensamento mesmo. Por meio das relações entre credor e devedor, pela primeira vez, a pessoa opôs-se à pessoa e mede-se com ela. Através dessa relação contratual entre credor e devedor, tão antiga quanto a de ‘sujeição moral’, todos foram levados às formas primitivas da compra e venda, do câmbio. Nos modernos, as relações da comunidade com seus membros são as de um credor com seus devedores. O culpado não é senão um violador do compromisso; falta à sua palavra para com a comunidade que lhes assegurava tantas regalias. O culpado é um devedor que não só não paga as suas dividas como também ataca o credor. O credor, por seu turno, humanizou-se conforme foi se enriquecendo; como no fim, sua riqueza mede-se pelo número de prejuízos que pode suportar – até se concebe uma sociedade com tal consciência do seu poderio, que se permita o luxo de deixar impunes os que a ofendem. Consiste, entretanto, um ‘princípio de equivalência’ que se descreve: em lugar de um benefício que compensasse diretamente o dano causado, concede-se ao credor certa satisfação e gozo à maneira de compensação e pensamento, a satisfação de exercer impunemente o seu poderio com respeito a um ser reduzido à impotência, o deleite de fazer o mal pelo gosto de o fazer, a alegria de tiranizar. Como pode a dor compensar as dívidas? O ‘fazer’ sofrer causava um prazer imenso à parte ofendida: fazer sofrer! Isto era uma verdadeira ‘festa’! Tanto mais grata quanto mais era o contraste entre a posição social do credor e do devedor. Ver sofrer, alegra; fazer sofrer, alegra mais ainda: há nisto uma antiga verdade ‘humana’ – sem crueldade não há gozo, o castigo é uma festa. O castigo tem a propriedade de despertar no culpado o ‘sentimento da falta’, ou seja, o verdadeiro instrumento desta reação psíquica que denomina ‘remorso’, ‘má consciência’. Então veio ao mundo, a maior e mais perigosa de todas as doenças: a ‘má consciência’ e o ‘homem doente de si mesmo’.

O sacerdote ascético dever ser o salvador predestinado, o pastor e defensor do rebanho doente, sua prestigiosa missão histórica. Eis o papel, a arte e a maestria do sacerdote ascético: a ‘dominação sobre os doentes’. É preciso que o sacerdote seja também doente, para se entender com eles, mas é preciso que seja forte, a fim de possuir a confiança dos doentes e ser para eles um amparo, um escudo, um deus, um tirano. Não resta dúvida que o homem seja o animal mais doente, mais incerto e mais inconsciente: é o animal doente por excelência, mas donde lhe veio isto? Grande experimentador de si próprio, o insaciável, que luta para reinar sobre os animais e a Natureza, sobre os deuses, o indomável e de futuro esterno; como o homem não haveria de estar exposto a doenças mais largas e terríveis? Quem não percebe por todos os lados uma atmosfera de um manicômio e de um hospital em todas as partes do mundo civilizado, europeizado. Os doentes são o maior perigo da humanidade e não os maus, as ‘feras de rapina’. O asceta apareceu, contudo em todos os tempos e em todas as classes sociais. A vida ascética é uma guerra intestina, um flagrante de contradição, converte-se em alegria e em triunfo toda dor íntima: o ideal ascético combateu sempre debaixo desta bandeira – no símbolo da agonia achou a sua luz mais pura, a sua salvação, a sua vitória definitiva. Em uma só palavra; o sacerdote ascético é um homem que muda a direção do ressentimento. Os meios que se empregam contra a dor são os que reduzem a vida à sua expressão menor possível: nada de vontade, nada de desejo, nada de paixão, nada de sangue; não comer sal, não amar, não odiar; não se perturbar, não se vingar; não se enriquecer, não trabalhar, mendigar; nada de mulheres, ou o menos possível; quanto ao intelecto – bestializar-se. Resultado em linguagem moral: aniquilamento do eu, santificação; e em termos fisiológicos: hipnotizado, hibernação, mínimo de assimilação compatível com a vida. Então para arrancar da consciência a dor, é necessária uma paixão e um pretexto para a excitar: esta não deixa de ser uma maneira própria do doente e quanto mais esteja oculta a verdadeira causa de seu mal. “Eu sofro, alguém tem culpa”. Assim discorrem todas as ovelhas. E então o pastor lhes responde: “É verdade, minha ovelha; alguém tem culpa; mas és tu mesma; os teus pecados são a causa do teu mal”. Isto é atrevido e soa até muito falso, mas obtém-se com isso um fim: ‘mudar a direção do ressentimento’. Tudo isto é ascetismo em alto grau... é niilismo. Nota-se no observador um olhar triste, duro, resoluto (‘olha para o longe’). Não vê mais do que neve, não há vida; as gralhas dizem: “E para quê?” Em vão! “Nada!” Nada cresce; talvez a metafísica russa de Tolstoi?

Nenhum comentário: