quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Nascimento da Biopolítica (Michel Foucault)


Trata-se de um período em que o que está em questão é um mercado cada vez mais extenso, no limite, trata-se da própria totalidade do que pode ser posto no mercado, no mundo: a uma mundialização a que somos convidados, com o enriquecimento coletivo da Europa, através da própria concorrência que se estabelece entre os Estados, deve-se tomar um caminho do próprio progresso econômico ilimitado? Pelo menos, foi a primeira vez que a Europa apareceu como devendo ter o mundo como mercado infinito.

Questiona-se o funcionamento da razão de Estado nos séculos XVII-XVIII ou o objetivo interior sobre o qual vai se exercer o governo segundo essa razão (Estado polícia) que é, sobretudo ilimitado. Há, entretanto, um número de mecanismos de compensação, de posições a partir das quais se vai procurar estabelecer uma linha de demarcação para esse objetivo ilimitado prescrito ao Estado de polícia pela razão de Estado: o direito é o princípio de limitação da razão de Estado naquela época. Quando se desenvolveu essa racionalidade governamental, entre os séculos XVI-XVII, o direito vai servir, ao contrário, como ponto de apoio para toda a pessoa que quiser limitar essa extensão indefinida de uma razão de Estado que toma corpo num Estado de polícia. Tratam-se, pois de leis fundamentais do reino, as quais os juristas objetam à razão de Estado, dizendo que nenhuma prática governamental e nenhuma razão de Estado podem justificar o seu questionamento: o direito constituído por essas leis fundamentais aparece assim fora da razão de Estado e como princípio dessa limitação. As instituições judiciárias e o direito, que haviam sido intrínsecos ao desenvolvimento do poder real, tornam-se exteriores e exorbitantes em relação ao exercício de um governo segundo a razão de Estado. O direito objetar-se-á, portanto, a razão de Estado quando ela houver ultrapassado esses limites do direito (que vem de Deus ou que foram estabelecidos em uma espécie de origem, numa história remota), assim poder-se-á definir um governo como ilegítimo, por suas usurpações, no limite, liberar seus súditos do seu dever de obediência.

Caracteriza, pois a razão governamental moderna uma transformação que consiste na instauração de um princípio de limitação da arte de governar que já não lhe seja mais extrínseco como era o direito no século XVII, isto é, que seja intrínseco a ela. Regulação interna da racionalidade governamental, uma limitação de fato: o governo que desconhecer essa limitação será simplesmente um governo inábil, inadequado, que não faz o que convém. Toda a razão governamental gira em torno de como não governar demais, assim a ‘economia política’, expressão que se vê entre 1750 e 1810-1820 pode tanto significar certa análise da produção e da circulação de riqueza quanto todo método de governo capaz de assegurar a prosperidade de uma nação. Ela se propõe como objetivo o crescimento do Estado e simultaneamente o crescimento ajustado da população, de um lado, e o dos meios de subsistência, de outro. O aparecimento da economia política e o problema do governo mínimo eram duas coisas interligadas. Não se podia pensar a economia política (a liberdade de mercado) sem levantar ao mesmo tempo o problema do direito público – a limitação do poder público: sobre a separação entre governo e administração, sobre a constituição de um direito administrativo, sobre a necessidade ou não de tribunais administrativos específicos. O problema fundamental do direito público era, portanto, como impor limites para o exercício de um poder público. A lei é concebida, neste sentido, ou como a expressão de uma vontade coletiva que manifesta a parte de direito que os indivíduos aceitaram ceder e a parte que eles querem reservar, ou a lei será concebida como efeito de uma transação que colocará a esfera de intervenção do poder público em oposição a esfera de independência dos indivíduos. Duas concepções da lei, duas noções de liberdades, como dois caminhos para constituir em direito a regulação do poder público: ambiguidade que caracteriza o liberalismo europeu nos séculos XIX-XX.

A palavra ‘liberal’ é usada não porque essa pratica governamental se contenta em respeitar esta ou aquela liberdade, mas porque ela é consumidora de liberdade, na medida em que só pode funcionar se existir certo número de liberdades: se se consomem liberdades, obriga-se, pois a consumi-las. Produzir liberdades é necessário, mas estabelecem limitações, coerções, obrigações, etc. A liberdade se fabrica a cada instante, o liberalismo propõe a fabricá-las: a liberdade de comportamento no regime liberal (arte liberal de governar) serve-se como reguladora, para tanto é necessário produzi-la e organizá-la. Tanto os liberais alemães da Escola de Friburgo, a partir de 1927-30, quanto os americanos atuais, instalaram mecanismos de intervenção econômica para evitar esse ‘a menos’ de liberdade que se acarreta pela passagem ao socialismo, ao fascismo, ao nacional-socialismo, com seu inimigo comum: Keynes.

O curioso paralelismo entre a Escola de Frankfurt e seus vizinhos, a Escola de Friburgo, ou os ordoliberais, embora ambas as escolas tenham partido da problemática dominante na Alemanha do início do século XX, grosso modo, chamada de weberianismo, ou seja, se Marx procurou analisar a lógica contraditória do capitalismo, Max Weber procurou definir o problema da racionalidade irracional da sociedade capitalista. Enquanto o problema da Escola de Frankfurt era determinar qual poderia ser a nova racionalidade social que poderia ser definida para anular a irracionalidade econômica, o problema da Escola de Friburgo era redefinir a racionalidade econômica que permita anular a irracionalidade social do capitalismo. Os ordoliberais adotam a liberdade de mercado como princípio organizador e regulador do Estado, desde o início de sua existência até a última forma de suas intervenções. Inverte-se a fórmula: um Estado sob a vigilância do mercado em vez de um mercado sob a vigilância do Estado. A questão será saber se uma economia de mercado pode servir de princípio, de forma e de modelo para um Estado. Se para os liberais do século XVIII o mercado era definido e descrito a partir da troca livre entre dois parceiros, que estabelecem assim a equivalência entre dois valores, para os ordoliberais, o essencial do mercado está na concorrência. Não há por que intervir diretamente no processo econômico, afinal esse processo traz em si uma estrutura reguladora que nunca se desregulará: a concorrência. Trata-se da Gesellschaftspolitik que deve anular os mecanismos anticoncorrenciais que em alguma sociedade possa suscitar. Há ações reguladoras necessárias, mas que não intervém nos mecanismos da economia de mercado; intervém-se nas condições do mercado, ou seja, nas três tendências (à redução de custos, à redução do lucro da empresa, provisória) que as ações reguladoras devem levar em conta.

Destaca-se principalmente o anarcoliberalismo da Escola de Chicago, por volta de 1939, a propósito do problema jurídico, quando se afirmou que o liberalismo não deriva apenas de uma ordem natural espontânea, como declaravam diversos autores dos ‘Códigos da Natureza’, no século XVIII; a vida econômica se desenrola num quadro jurídico que estabelece: o regime de propriedade, dos contratos, das patentes, da falência, do estatuto das associações profissionais, coisas que não são criações da natureza, mas criações contingentes do legislador. Deve-se falar de uma ordem econômico-jurídica, o jurídico enforma o econômico, que no fundo, refere-se a invenção de um novo capitalismo, onde as leis do mercado sejam o princípio de regulação econômica geral: aplica-se à economia o que na tradição alemã chama-se ‘Rechtsstaat’ e que os ingleses chamam de ‘Rules of Law’, ‘Estado de Direito’, pois, ou reinado da lei – em oposição ao Despotismo e ao Estado de polícia. Lei e ordem, afinal bem além do liberalismo, quer dizer o seguinte, o Estado, o poder público nunca intervirá na ordem econômica a não ser na forma da lei, assim o poder público se limita a essas intervenções legais, de modo a aparecer uma ordem econômica, efeito e princípio da sua própria regulação. Na concepção neoliberal americana destacam-se a teoria do ‘capital humano’ e a análise da ‘criminalidade e delinquencia’, principalmente porque a economia torna-se a ciência do comportamento humano, com base estratégica da atividade dos indivíduos. A Vitalpolitik dos ordoliberais, como política da vida em que se generaliza e multiplica-se as formas empresas no interior do corpo social constitui o escopo do neoliberalismo, que foi amplamente difundidas nos EUA, a partir de uma conduta racional (como objeto econômico) e a partir de técnicas comportamentais que moldam os indivíduos em uma ‘sociedade empresarial’.

Só após compreendermos o que é esse regime governamental chamado liberalismo é que poderemos apreender o que vem a ser biopolítica. A intenção de Michel Foucault, neste curso proferido no Collège de France, entre 1978-79, era a de falar sobre biopolítica, mas acabou se alongando sobre o neoliberalismo, em especial na sua forma alemã, mas não para reconstruir um suporte histórico ou teórico sobre a democracia-cristã alemã. Tratava-se apenas de atribuir um conteúdo concreto às análises das relações de poder. O poder designa um campo de relações que deve ser analisado por inteiro, o que se justifica por ‘governamentalidade’, ou seja, o que significa uma maneira de se conduzir a conduta dos homens. Deste modo, deter-se aos problemas do neoliberalismo não deixa de ser uma razão da ‘moralidade cristã’.

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