sexta-feira, 6 de novembro de 2009

A Linguagem e a Morte: um Seminário sobre o Lugar da Negatividade (Giorgio Agamben)


O homem figura como o mortal e o falante, mas como interrogar o homem livre, mantendo-o livre ao mesmo tempo da morte e da linguagem? A faculdade da morte e da linguagem pode permanecer impensada? A partir daí percebe-se que há um lugar da negatividade e o nexo entre a morte e a linguagem abrem a sua morada fundada na negatividade. Ressalta-se que a voz e a gramática são estruturas da negatividade, assim como a ética e a lógica são inseparáveis e repousam no único fundamento do negativo. O fundamento é compreendido no sentido de ser aquilo que vai ao fundo: o ser é o in-fundado, como fundamento negativo. O advento do niilismo desvenda-se quando a metafísica cai na ética, num declínio reconhecido como o advento do fundamento negativo: ‘morada habitual do homem’.

É notório o modo pelo qual, em um ponto crucial de Sein und Zeit (Ser e Tempo), Heidegger situa a relação do Dasein com a sua morte. O Dasein é um ser-para-o-fim, para a morte e sempre em relação com ela: experiência da morte como certa antecipação de sua possibilidade. Como possibilidade a ‘antecipação da morte’ é testemunhada na sua experiência da consciência e da culpa. O caráter negativo do apelo (Ruff) da consciência não diz nada e fala em silêncio. Assim, desvelar a culpa neste ‘lugar silencioso’ revela uma negatividade própria ao Dasein. Afinal, no culpado está implícito caráter do Não (Nicht). A idéia formal existencial do ‘culpado’ determina-se por ser-fundamento, para um ser que se determinou por meio de um Não, ou seja, ser de uma negatividade. A negatividade (Nichtigkeit) não significa de modo algum não estar presente ou não consistir, mas significa um Não que constitui este ser do Dasein, o seu ser-lançado. O Dasein é determinado como um poder ser, que pertence a si mesmo, embora não como se tivesse dado a si mesmo a própria posse. Sendo fundamento, ou seja, existindo como lançado, o Dasein fica constantemente atrás de suas próprias possibilidades. O cuidado – o ser do Dasein – significa como projeto lançado: o (negativo) ser-fundamentado de uma negatividade. Será a partir desta experiência de uma negatividade que se revela constitutiva do Dasein, na experiência da morte, como sua possibilidade mais próxima, que Heidegger passa a se interrogar sobre o problema da origem ontológica (ontologische Ursprung) da negatividade. Logo, Dasein significa ser-o-Da. Aceitar a tradução atualmente difusa de Dasein como Ser-aí, permite-nos então entender esta expressão como ‘ser-o-aí’. Se ser o próprio Da (o próprio aí) é o que caracteriza o Dasein (o Ser-aí), isto significa que, então,  justamente no ponto em que a possibilidade de ser o Da [de estar em casa no próprio lugar] é assumida, através da experiência da morte, da maneira mais autêntica, o Da se revela como o lugar a partir do qual ameaça uma negatividade radical. Portanto, a negatividade provém, ao Dasein, de seu próprio Da. Mas, perguntemo-nos agora, existe, acaso, uma analogia entre a experiência da morte que, em Sein und Zeit, revela ao Ser-aí a possibilidade autêntica de ser o seu aí, o seu aqui, e a experiência do ‘apreender o Isto’ que, no início da Fenomenologia, garante que o discurso hegeliano comece do nada?

O ‘mistério eleusiano’, que apareceu em uma poesia, intitulada Elêusis, que o jovem Hegel dedicou, em agosto de 1796, ao amigo Hölderling, definindo que todo mistério tem por objeto um indizível (des unaussprechlichen Gefühles Tiefe). A profundidade deste ‘indizível sentimental’ em vão poderia ser buscada em palavras e entre ‘ressequidos signos’. É interessante observar que um mistério eleusiano aparece uma segunda vez na obra de Hegel, precisamente no início daquela Fenomenologia do Espírito que constitui a primeira expressão acabada do seu pensamento, no seu primeiro capítulo intituado: A certeza sensível, ou o Isto e o querer-dizer (Die sinnliche Gewissheit oder das Diese und das Meinen). O mistério eleusiano aparece na Fenomenologia, mas Hegel tem em mira uma liquidação da certeza sensível. Esta liquidação é conduzida mediante uma análise do Isto (das Diese) e do indicar. Vai ser a ela mesma, a certeza sensível, que se deve perguntar: o que é o Isto? Se o tomamos na dupla forma do seu ser, como o Agora e o Aqui. O Agora é um ter-sido (gewesenes), e esta é a sua verdade; ele não possui verdade de ser. Contudo, é verdadeiro isto, que ele foi. Mas aquilo que foi, não é, de fato, um ser; ele não é, e era com o ser que estávamos lidando. Logo, mostrar algo, querer captar o Isto na indicação significa apenas ter a experiência de que a certeza sensível é, na verdade, um processo dialético de negação e mediação; que, portanto, a ‘consciência natural’, a qual se desejaria colocar no início como o absoluto, já é, verdadeiramente, sempre uma ‘história’. Acontece que a coisa sensível que pertence à consciência e se quer-dizer (Meinung, opinião, ponto-de-vista, ‘querer dizer’) é inacessível à linguagem. Aquilo que é indizível, para a linguagem, não é nada mais que o querer-dizer, a Meinung que permanece não-dita necessariamente em todo dizer, refere-se a esse não-dito, que é um negativo e um universal.

O iniciado aprende aqui a não dizer aquilo que ‘quer-dizer’, pois a linguagem conserva o indizível dizendo-o, colhendo-o na sua negatividade. Se a linguagem capturou em si o poder do silêncio é porque ela conserva o indizível nas suas profundezas, o que poderia ser dito ineffabile fatur, isto é, o discurso mostra o inefável como é: um nada, nichtigkeit. O sistema hegeliano parte de um ponto duplo: a um só tempo, ponto de partida e ponto de chegada. Apreende-se o Isto se temos o significado deste isto, que é um não-isto que ele encerra, logo, uma negatividade essencial. De um lado, o mistério eleusiano tem como conteúdo a experiência de um nichtigkeit (um nada), de outro lado, o problema da indicação e do Isto resulta evidentemente do surgimento em um ponto decisivo da história da metafísica. O Isto significa indicação ou a essência segundo o sujeito, assim Hegel afirma que o limite da linguagem cai sempre no interior da linguagem, que está desde sempre contido nela como negativo. Inicialmente o indizível é a coisa mais concreta, imediata, genérica e universal, mas é necessariamente o gênero supremo, além do qual não é possível definição. Trata-se da cisão aristotélica que se constitui a partir do núcleo originário de uma fratura, no plano da linguagem, entre mostrar e dizer, indicação e significação, que atravessa a história da metafísica e sem a qual o próprio problema ontológico permanece informulável.

Alguns gramáticos antigos haviam atribuído a origem da gramática a Platão e a Aristóteles, com suas categorias gramaticais e categorias lógicas, reflexão gramatical e reflexão lógica, que se implicam mutuamente e são inseparáveis. Se, para Aristóteles, o nome faz parte do discurso que correspondia às categorias da substância e da qualidade, o pronome significa substantiam sine qualitate, pura essência em si, antes de qualquer determinação qualitativa. A dimensão de significado do pronome vem a coincidir com aquela esfera do puro ser que a lógica e a teologia medieval identificavam como dimensão de significado dos assim denominados transcendentia: ens, unum, aliquid, bonum, verum. Estes termos eram ditos ‘transcendentes’ porque não têm acima de si nenhum gênero no qual possam ser contidos e a partir do qual possam ser definidos. O estatuto de pronome transcendentia é, pois, atribuído ao objeto na sua universalidade, portanto, o pronome indica uma essência indeterminada, um puro ser, determinados pelos atos de efetuação que são a demonstratio e a relatio. O puro ser, a substantia indeterminada que ele significa e que é em si insignificável e indefinível, mas que se torna significável e definível por meio de um ato de indicação. Se os pronomes são signos vazios que se tornam plenos quando um locutor os assume numa instância de discurso, então os pronomes têm por objetivo que operar a conversão da linguagem em discurso e permitir a passagem da língua à fala.

O pensamento medieval tomou consciência da problemática desta passagem entre significar e mostrar que tem lugar no pronome, mas não a conseguiu explicar. O entrelaçamento no pensamento medieval entre reflexão teológica e reflexão gramatical é muito cerrado, de tal modo que o Deus dos teólogos é o mesmo Deus dos gramáticos. Primeiramente ressalta-se que o nome decai de seu significado e não significa mais nada, transformando-se em pronome, mas se o pronome, por sua vez, é predicado de Deus, ‘cai da indicação’. Segue-se que o nome é formado por um pronome e pelo verbo ser, que é pensado como o nome ‘absoluto’ de Deus. Portanto, o que aqui é pensado como suprema experiência mística do ser e como nome perfeito de Deus é a experiência de significado do próprio grámma, da letra como negação da voz: ‘que se escreve, mas não se lê’. Por sua vez, o nascimento da moderna ciência da linguagem situou-se no próprio desenvolvimento da filosofia moderna que, de Descartes a Kant e até Husserl, não deixou de ser, em boa parte, uma reflexão sobre o estatuto do pronome Eu. De todo modo, tanto para Hegel quanto para Heidegger, a negatividade entra no homem porque o homem tem por ser este ter-lugar, quer colher o evento da linguagem, apreendido, em certa medida, a partir, respectivamente, do Dasein, ‘ser-o-aí’, e no das Diese nehmen, apreender o Isto. Percebe-se mais claramente entre os poetas do que entre os linguistas, que o eu [ou o me/mim] é a palavra associada à voz: aquele que enuncia, o locutor é, antes da mais nada, uma voz, e o problema da díxis é o problema da voz e da sua relação com a linguagem. Este é, pois, o problema.

A Voz situa-se, em relação ao estilo vocal, numa dimensão diversa e mais original, a voz constitui a dimensão ontológica fundamental, ou seja, a dimensão do significado da voz, mas a voz como pura intenção de significar (puro querer-dizer), quando uma coisa se dá à compreensão sem que se produza um evento determinado de significado. Vox, como querer-dizer ou intenção de significar sem significado, decai numa experiência amorosa como vontade de saber; experiência que mostra que a vox na sua pureza originária, como querer-dizer é uma palavra morta. Demarca-se certo flatus vocis, a voz como intenção de significar e como ‘pura indicação’(setentia vacum), significado da voz em si, antes de toda significação. Que o ser (substantiae universale) seja um flatus vocis não significa que ele seja um nada, afinal a dimensão do significado do ser coincide com aquela experiência da voz como pura indicação e puro querer-dizer. Dado que essa Voz (escrita em letra maiúscula para distinguir-se da voz como mero som) tem o estatuto de um não-mais (voz) e de um não-ainda (significado), ela constitui uma dimensão negativa. A linguagem tem um lugar no tempo e na voz, mostrando a instância do discurso, a Voz abre simultaneamente o ser e o tempo. Tanto em Hegel como em Heidegger reencontram-se um pensamento da Voz como articulação negativa originária.

Hegel seguiu o ‘despedaçar-se’ do espírito e sua ‘ocultação’ na natureza. O nome existe como linguagem que não se fixa, igualmente cessa, de imediato, aquilo que é. O despertar do espírito é o reino dos nomes. A linguagem é a voz da consciência, pois todo som tem um significado, nela tem um nome, idealidade de uma coisa existente: o seu imediato não-existir. Para Hegel a articulação se apresenta como processo de diferenciação, interrupção e conservação da voz animal: a voz é ouvido ativo – ele escreve –, puro si, que se põe como universal, todo animal tem na morte violenta uma voz, exprime a si mesmo como si mesmo suprimido. O sistema hegeliano é considerado em seu caráter ‘antripogenético’, no sentido que mantém o contato com a morte.

A dimensão negativa está presente também na linguística moderna, no conceito de fonema, deste ente puramente negativo e insignificante, o qual, contudo, é precisamente aquilo que abre e torna possível a significação e o discurso. Como ‘som da língua’, Jakobson está singularmente próximo da ideia heideggeriana de uma ‘Voz sem som’ e de um ‘som do silêncio’ (Sigé, pensamento silencioso). A fonologia, que se define como a ciência dos sons da língua, apresenta-se como um par análogo da ontologia, que, com base nas considerações precedentes, podemos definir como ‘ciência da voz suprimida, isto é, da Voz’. Existe no pensamento de Heidegger algo como um ‘pensamento da Voz’, mas cuja relação essencial entre linguagem e morte tem, para a metafísica, o seu lugar na Voz. Ter experiência da morte como morte significa efetivamente fazer experiência da supressão da voz e do surgimento, em seu lugar, de outra Voz, que constitui o originário fundamento negativo da palavra humana. A Voz, portanto, não diz nada, não quer-dizer nenhuma proposção significante: ela indica e quer-dizer o puro ter lugar da linguagem, é, pois, uma dimensão puramente lógica. A Voz é a dimensão ética originária, na qual o homem pronuncia seu sim à linguagem e consente que ela tenha lugar.

Morada habitual e hábito, ou seja, o êthos do homem, que se encontra para a filosofia, já sempre cindido e ameaçado por um negativo. Um dos mais antigos testemunhos no qual a filosofia se põe a pensar o êthos caracteriza, deste modo, a morada habitual do homem. O êthos, a morada habitual é, para o homem, o lugar da cisão – aquilo que ele jamais pode apreender sem receber daquilo uma laceração e uma fissura –, o lugar onde jamais pode estar verdadeiramente desde o início, mas aonde pode somente no fim regressar. É possível que o ser não esteja à altura do simples mistério do ter do homem, da sua habitação assim como do seu hábito? Estar na linguagem sem ser aí chamado por nenhuma Voz, simplesmente morrer sem ser chamado pela morte é, talvez, a experiência mais abissal; mas esta é precisamente, para o homem, também a experiência mais habitual, o seu êthos, a sua morada que, na história da metafísica, já se apresenta sempre demonicamente cindida em vivente e linguagem, natureza e cultura, ética e lógica e é, por isso, atingível, apenas na articulação negativa de uma Voz. Pensa-se, neste seminário, a Voz a partir de seu cancelamento, ou melhor, pensa-se a Voz como jamais sida, no seu lugar, morada sem vontade e sem Voz, esta morada é o aqui resta a pensar. Trata-se, em última instância, de um tal ‘fazer interdito’, que fornece à sociedade e à sua infundada legislação a ficção de um início: o que é excluído da comunidade é, na realidade, aquilo sobre o qual se funda a inteira vida da comunidade e é assumido por ela como um passado imemorável e, todavia, memorável.

O homem é o animal que possui a linguagem, enquanto o in-fundado tem fundamento na própria violência, no próprio fazer: facere sacrum (sacrifício, ‘fazer interdito’, afetado pela sacralidade, sacro, acessível apenas a certas pessoas e de acordo com regras determinadas). Noção ambígua esta de sacro, que significa tanto a lei quanto designa quem a viola. Que o sacrifício seja um assassínio, isso nós bem conhecemos, que não seja casual e que por isso mesmo seja violento: violência esta que em si não explica nada, todavia, aliás, por sua vez, essa mesma violência necessita de explicação. A inaturalidade da violência humana é uma produção histórica do homem e é implícita na própria concepção da relação entre natureza e cultura, entre vivente e logos na qual o homem funda a própria humanidade. Não é próprio ao homem ser um indizível, que permanece não dito em toda praxis e em toda palavra humana: ele é antes a própria praxis social e a própria palavra humana, tornadas transparentes a si mesmas. Mas a ‘transmissão indizível’ continua a dominar a tradição da filosofia: em Hegel, como aquele nada, que é preciso abandonar à violência da história e da linguagem para dele extrair a aparência do início e do imediato; em Heidegger, como o sem nome que, permanecendo não dito em toda palavra e em toda transmissão, destina o homem à tradição e à linguagem. É certo que em ambos os casos, o pensamento se propõe a absolução do homem da violência do fundamento. Assim como o fundamento da violência é a violência do fundamento.

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