Será que a evocação de Farmacéia, no início do
Fedro, é casual? De todo modo, Farmacéia (
pharmákeia) pode ser um nome comum para designar a administração do
phármakon, da droga: do remédio e/ou veneno. Esse
phármakon, essa ‘medicina’, esse filtro, ao mesmo tempo remédio e veneno, já se introduz no corpo do discurso com toda sua ambivalência. O
phármakon faz sair dos rumos e das leis gerais, naturais ou habituais. As folhas da escritura agem como um
phármakon que expulsa ou atrai para fora da cidade aquele que dela nunca quis sair, mesmo no último momento, para escapar da cicuta. Elas o fazem sair de si e o conduzem por um caminho que é propriamente de
êxodo. Quando Sócrates enfim se deitou e Fedro tomou a posição mais cômoda para manejar o texto ou, se for o caso, o
phármakon, que tem início a conversação: falas envolvidas, enroladas, reservadas, mas apenas as letras ocultadas poderiam fazer Sócrates caminhar dessa forma, no limite, se um
lógos não diferido fosse possível, ele não seduziria, ele não arrastaria Sócrates como se estivesse sob o efeito de um
phármakon, fora de seu rumo. Antecipemos. Desde já a escritura, o
phármakon, o descaminho. Antes mesmo que a apresentação declarada da escritura como um
phármakon intervenha no centro do mito de Theuth. Ocorre que os
phármaka estão entre as coisas que podem ser ao mesmo tempo boas e penosas, o
phármakon é colhido sempre na mistura. Esta dolorosa fruição, ligada tanto à doença quanto ao apaziguamento, é um
phármakon em si. Ela participa ao mesmo tempo do bem e do mal, do agradável e do desagradável, ou, antes, é no seu elemento que se desenham essas oposições. A tradução corrente de
phármakon por remédio – droga benéfica – não é de certa forma inexata. Essa medicina é benéfica, ela produz e repara, acumula e remedia, aumenta o saber e reduz o esquecimento. Theuth, por astúcia ou ingenuidade, exibiu o reverso verdadeiro efeito da escritura: para fazer valer sua invenção, Theuth teria, assim, desnaturado
phármakon, dito o contrário daquilo que a escritura é capaz. A tradução por remédio acusa a ingenuidade ou a artimanha de Theuth. “Do ponto de vista do sol”, Theuth jogou, sem dúvida, com a palavra, interrompendo a comunicação entre os dois valores opostos: Theuth, o inventor do
phármakon, pronunciava em pessoa um longo discurso e apresentava suas letras à aprovação do rei.
Para que a escritura produza o efeito ‘inverso’ daquele que se poderia esperar, ora, essa ambiguidade, Platão, pela boca do rei, quer dominar sua definição na oposição simples e nítida: do bem e do mal, do dentro e do fora, do verdadeiro e do falso, da essência e da aparência. É em aparência que a escritura é benéfica para a memória, mas, na verdade, a escritura é essencialmente nociva: o
phármakon produz o jogo da aparência a favor do qual ele se faz passar pela verdade – o caso da escritura é grave. Se a escritura produz, segundo o rei e sob o sol, o efeito inverso daquele que lhe atribuímos, se o
phármakon é nefasto, é que ele não é daqui: ele é exterior ou estrangeiro ao ser vivo que é o aqui-mesmo de dentro, que ele pretende socorrer ou suprir. A escritura anunciada por Theuth como um remédio, como uma droga benéfica, é em seguida devolvida e denunciada pelo rei, depois, no lugar do rei, por Sócrates, como substância maléfica e filtro do esquecimento. A escritura é dada como suplente sensível, visível, espacial da
mnéme; ela se verifica em seguida nociva e entorpecente para o dentro invisível da alma, da memória e da verdade. Inversamente, a cicuta é dada como um veneno nocivo e entorpecente para o corpo. Ela se verifica em seguida benéfica para a alma, que libera do corpo e desperta para a verdade do
eîdos. A cicuta, essa poção que nunca teve outro nome no
Fédon senão o de
phármakon e é apresentada a Sócrates como um veneno, mas ela se transforma, pelo efeito do
lógos socrático, em meio de libertação, possibilidade de salvação e virtude catártica. A cicuta tem um efeito ontológico – iniciar à contemplação do
eîdos e à imortalidade da alma:
Sócrates a toma como tal.
Platão teve de adequar sua narrativa a leis de estrutura, as mais gerais, aquelas que articulam e comandam as oposições fala/escritura, vida/morte, pai/filho, mestre/servidor, alma/corpo, dentro/fora, sol/lua, etc. Platão certamente não descreve o personagem de Theuth, mas organiza traços de uma figura marcante, sob uma analogia estrutural que os relaciona com outros deuses da escritura, e antes de tudo com Thot egípcio. O deus Thot tem várias faces, várias épocas e habitações. Thot é um deus engendrado, chama-se frequentemente o filho do deus-rei, do deus-sol, de Amon-Ra: “eu sou Thot, filho mais velho de Ra”. Ra (sol) é o deus criador e engendra pela mediação do verbo, Amon: o oculto. Temos aqui, portanto, um sol oculto, pai de todas as coisas, deixando-se representar pela falta. Conjuga-se nisso o que poderia se chamar a história do ovo ou o ovo da história: o criador vivo da vida do mundo nasceu de um ovo – o sol. Amon-Ra é também um pássaro, um falcão (“Eu sou o grande falcão saído de seu ovo”). A subordinação de Thot, filho mais velho do pássaro original, assinala-se porque Thot é o executante, pela língua, do projeto criador de Horus: ele carrega os signos do grande deus-sol, ele o interpreta como seu porta-voz, ele detém o papel de deus mensageiro, do intermediário astuto, engenhoso e sutil que furta e se furta sempre – o deus do significante, mas o que ele deve enunciar ou informar em palavras, Horus já o pensou. Thot só pode se tornar o deus da fala, criadora por subversão violenta. A substituição coloca Thot no lugar de Ra como a lua no lugar do sol: Thot também o imita, torna-se seu signo e representante, obedece-lhe, conforma-se a ele, o substitui, quando preciso, por violência. Ele é o outro do pai, o pai e o movimento subversivo da substituição. O deus da escritura é, portanto, de uma só vez, seu pai, seu filho e ele próprio.
Não que o
lógos seja o pai, mas a origem do
lógos é seu pai. Se o ‘sujeito falante’ é o pai de sua fala, o
lógos é um filho, então, e um filho que se destruiria sem a presença, sem a assistência presente de seu pai. O
lógos vivo é vivo por ter um pai vivo, um pai que se mantém presente, de pé junto a ele, atrás dele, nele, sustentando-o com sua retidão, assistindo-o pessoalmente e em seu nome próprio. O
lógos vivo reconhece sua dívida, vive desse reconhecimento e se interdita, acredita poder interditar-se o parricídio. A morte do pai abre o reino da violência. Escolhendo a violência, e a violência contra o pai, o filho – ou a escritura parricida –, não pode deixar de se expor a si mesmo. Tudo isso é feito para que o pai morto (primeira vítima e último recurso) não esteja mais aí: a escritura, o fora-da-lei, o filho perdido. Sócrates desempenha nos diálogos o papel do pai, representa o pai ou, no máximo, o irmão mais velho. E Sócrates lembra aos atenienses, como um pai aos seus filhos, que, ao matá-lo, serão a eles próprios a quem inicialmente prejudicarão. O que é o pai? O pai é. O pai é (o filho perdido). A escritura, o filho perdido, não responde a essa questão, ela se escreve: que o pai não está, ou seja, não está presente. Platão designa como escritura um discurso que se queria falado em sua essência, em sua verdade, e que, no entanto, se escreve. E se ele se escreve a partir da morte de Sócrates, é sem dúvida por essa razão profunda: a escritura é parricida. Esse parricídio é uma decisão terrível. Esse parricídio, em todo caso, será tão decisivo, peremptório e temível quanto uma pena capital. Sem esperança de volta. O
lógos paterno está revirado. Mas o que é um pai? A origem ou a causa do
lógos é comprada ao que sabemos ser a causa de um filho vivo, seu pai. O pai é sempre o pai de um ser vivo/falante, ou seja, é a partir do
lógos que se anuncia e se dá a pensar algo como a paternidade. Se houvesse uma simples metáfora na locução “pai do
lógos”: a figura do pai sabe-se, é também aquela do bem (
agathón). O
lógos representa isto ao que ele é devedor, o pai, que é também um chefe, um capital e um bem. Ou antes, o chefe, o capital, o bem.
Pater significa em grego tudo isso ao mesmo tempo. Ora, desse pai, desse capital, desse bem, dessa origem de valor e dos entes manifestados, não podemos falar simples ou diretamente, porque não podemos olhá-los na face como não podemos ao sol. Até aqui, a escritura não tinha outro estatuto que aquele de órfão ou de parricida moribundo. O discurso escrito, no sentido ‘próprio’ é malformado de nascimento. Ele não é
gnésios: pela voz de seu pai ele não pode ser declarado, reconhecido. Ele é fora-da-lei.
O antídoto ainda é a
epistéme. A filosofia opõe essa transmutação da droga em remédio, do veneno em contraveneno. Se o
phármako-lógos não abrigasse nele mesmo essa cumplicidade dos valores contrários, e se o
phármakon em geral não fosse, antes de toda discriminação, o que, dando-se como remédio, pode-se corromper em veneno, ou o que se dando como veneno pode se verificar como remédio: a essência do
phármakon é que, não tendo essência estável nem caráter ‘próprio’, não é uma substância. O
phármakon invertido não é outro senão a origem da
epistéme, abertura à verdade como possibilidade da repetição e submissão do ‘furor de viver’ à lei (ao bem, ao pai, ao rei, ao chefe, ao capital, ao sol, invisíveis). São as próprias leis que convidam a ‘não’ manifestar esse furor de viver em detrimento das leis mais importantes. O
eîdos é o que sempre pode ser repetido como o
mesmo. A idealidade e a invisibilidade do
eîdos é seu poder-ser-repetido. Ora, a lei é sempre a lei de uma repetição e a repetição é sempre a submissão a uma lei. A morte se abre então ao
eîdos assim como à lei-repetição. Sócrates é chamado a aceitar ao mesmo tempo a morte e a lei. Ele deve se reconhecer como descendente ou mesmo escravo da lei que tornou seu nascimento possível. Sócrates deve morrer conforme a lei e nos limites desta cidade, ele que (quase) nunca quis sair dela. Trata-se da palavra ‘
pharmakós’ (feiticeiro, mágico, envenenador), sinônimo de ‘
pharmakeús’ que tem a originalidade de ter sido sobredeterminada pela cultura grega com outras funções: comparou-se o personagem do
pharmakós a um bode expiatório. O mal e o fora, a expulsão do mal, sua exclusão fora do corpo (e fora) da cidade, tais são as duas significações maiores do personagem e da prática ritual. Em geral, os
pharmakós eram destinados à morte.
O
phármakon apresenta e abriga a morte, mas designa também o perfume, sem essência, como uma droga sem substância. Ele transforma a ordem em enfeite e o cosmos em cosmético. A morte, a máscara, o disfarce, é a festa que subverte a ordem da cidade, tal como ela deveria ser regulada pelo dialético e pela ciência do ser. O ilusionista, o técnico do
trompe l’oeil, o pintor, o escritor, o
pharmakeús... A palavra
phármakon que significa cor também se aplica às drogas dos feiticeiros ou dos médicos. O encantamento é sempre o efeito de uma representação capturando e cativando a forma do outro, sobretudo em seu rosto, na sua face:
vultus. A escritura se dá por imagem da fala. Ela desnatura o que pretende imitar. Ela inscreve no espaço do silêncio e no silêncio do espaço o tempo vivo da voz: arranca violentamente ao seu elemento a interioridade animada da fala. Assim, a escritura distancia-se imensamente da verdade da coisa mesma, da verdade da fala e da verdade que se abre à fala. Neste sentido, Sócrates, “aquele que não escreve”, não é também um mestre do
phármakon? Um
pharmakeús? Um mágico, um feiticeiro e até mesmo um envenenador? Não é rico nem belo, nem delicado, passa a vida filosofando; é um temível feiticeiro, um sofista. Indivíduo que nenhuma lógica pode reter numa definição não-contraditória, indivíduo da espécie demoníaca, nem deus nem homem, nem imortal nem mortal, nem vivo nem morto, ele tem por virtude ‘dar livre curso, tanto à adivinhação completa quanto à arte dos sacerdotes, no que concerne aos sacrifícios e iniciações, assim como as encantações, vaticinações em geral e magia’. A magia socrática opera, portanto, o
lógos sem instrumento, por uma voz sem acessório. Esta voz nua e sem órgãos, a ela, nós só podemos impedi-la de penetrar tampando as orelhas...
... O ritual (do
pharmakós) era uma dessas antigas práticas de purificação. Se uma calamidade se abatia sobre a cidade, exprimindo a cólera de deus – fome, peste ou qualquer outra catástrofe – o homem mais feio de todos era conduzido como que a um sacrifício como forma de purificação e remédio para o sofrimento da cidade. Excluindo violentamente de seu território o representante da ameaça ou agressão exterior. Quando uma calamidade tal como a seca ou a fome se abatia sobre a cidade, eles sacrificavam dois desses reprovados, como bodes expiatórios. A cerimônia do
pharmakós se passa no limite de dentro e do fora que ela tem por função traçar e retraçar sem cessar: intramuros/extramuros. A prática ritual, que tinha lugar em Abdera, em Thrace, em Marselha etc. reproduzia-se todos os anos em Atenas. E ainda no século V Aristófanes e Lísias fazem claras alusões a isso. Platão não podia ignorá-lo. A data da cerimônia é notável: o sexto dia das Targélias. Angustiante e apaziguador, sagrado e maldito, o
pharmakós requer que a surpresa seja prevenida: pela regra, pela lei, pela regularidade, pela repetição, pela data fixa. Sócrates nasceu no sexto dia das Targélias: o dia em que os atenienses purificam a cidade.