Demarca-se o solo onde fecunda o povo dos perversos... Onde começa a perversão? Eis uma questão que este livro tenta responder, onde atesta a história incessantemente reinventada dos grandes ‘criminosos perversos’ (Gilles de Rais [Barba Azul]; George Chapman [Jack, o Estripador]; Erzebet Bathory [a Condessa de Sangue]; Peter Kürten [o Vampiro de Düsseldorf]): infindavelmente representados em romances, contos, filmes ou monografias, essas ‘criaturas malditas’ suscitam, por seu status estranho, um fascínio recorrente. O desenrolar dessa história pôde ser contado através de cinco capítulos abordados sucessivamente: (1) a época medieval – com Gilles de Rais, os santos místicos, os flagelantes; (2) o século XVIII – em torno da vida e da obra do marquês de Sade; (3) o século XIX – o da medicina mental, com sua descrição das perversões sexuais e sua obsessão pela criança masturbadora, pelo adulto perverso e pela mulher histérica; (4) por fim, o século XX – em que se opera, com o nazismo, a metamorfose mais abjeta da perversão (com ênfase nas confissões de R. Höss a respeito de Auschwitz); (5) em nossos dias – a perversão acaba por qualificar todo um distúrbio de identidade, um estado de delinquência, um desvio, sem que com isso cesse de se desdobrar em múltiplas facetas, entre outras, zoofilia, pedofilia, terrorismo e transexualidade.
Quando os ‘grandes rituais sacrificiais’ – da flagelação à devoração de excrementos – foram adotados por alguns místicos tornaram-se a prova de uma ‘santa exaltação’: aniquilar o corpo físico ou expor-se aos suplícios da carne tornou-se uma regra dessa estranha vontade de metamorfose, que alguns diziam ser a única capaz de efetuar a passagem do abjeto ao sublime. De um lado, os santos – sob o impulso de uma interpretação cristã do livro de Jó – tiveram como dever primordial destruir neles toda forma de desejo de fornicação. De outro, as santas que se condenaram a uma esterilização radical de seus ventres doravante pútridos, tanto pela incorporação de dejeções quanto pela exibição de seus corpos torturados. A santa mártir, porque nascera mulher, era vista como impura e devia purificar-se na metamorfose de um sangue, destinado à fecundidade, a um sangue ofertado a Cristo.
[1] Fiel servo de Deus e herói de uma tradição semítica, Jó vivia rico e feliz, mas Deus permitiu que Satã botasse sua fidelidade à prova. Subitamente perdeu bens e filhos, Jó deitava no meio dos excrementos, coçando suas chagas e lastimando a injustiça de sua desgraça. Três amigos sustentavam, no entanto, que seu sofrimento era necessariamente decorrências de seus pecados: ele gritava por inocência sem compreender por que Deus castigava um inocente – uma vez havida a queixa, sem lhe responder mais nada, Deus lhe restituiu fortuna e saúde. Nesta perspectiva, a salvação do homem reside na aceitação de um sofrimento incondicional, razão pela qual a experiência de Jó ter sido capaz de abrir caminho para as práticas dos mártires cristãos, sobretudo das santas que farão da destruição do corpo carnal uma arte de viver e das práticas mais degradantes a expressão do mais consumado heroísmo.
[2] Dizia-se ser tão suscetível que a visão de menos impureza sobressaltava-lhe o coração, Marguerite-Marie Alacoque (1647-90), uma visitandina francesa, conhecida por seus grandes êxtases místicos que viveu, sobretudo no convento de Paray-le-Monial. Mas quando Jesus chamou-a à ordem, ela só conseguiu limpar o vômito de uma doente transformando-o em sua comida. Mais tarde, sorveu as matérias fecais de uma disentérica declarando que aquele contato bucal suscitava nela visões de Cristo mantendo-a com a boca colada em sua chaga; Catarina de Siena (1347-80), após ter se rebelado contra a família, ingressou na religião nas irmãs penitentes de São Domingos. Cultivou os êxtases e as mortificações e foi canonizada em 1461. Catarina de Siena afirmou um dia não ter comido nada tão delicioso quanto o pus dos seios de uma cancerosa; A história da santa, Liduína de Schiedam (1380-1433), no contexto histórico do fim do século XIV e principio do XV, retraça o itinerário dessa mística holandesa, que quis salvar a alma da Igreja e de seus fiéis transformando seu corpo num monturo. Horrorizada com a possibilidade de se casar, desde os 15 anos, soçobrou na doença. Durante 38 anos levou a vida de uma grabatária, impondo a seu corpo terríveis sofrimentos: gangrena, epilepsia, peste, fratura dos membros. Como Jó, Catarina viveu numa tábua coberta de esterco, amarrada a uma correia de crina que fazia de sua pele uma chaga purulenta.
Nascido em 1404, Gilles de Rais tornou-se um criminoso trágico, mas pertencia à família nobre e muito rica – só que o mundo em que ele viveu (o da Guerra dos Cem Anos) achava-se entregue à pilhagem: transformando todos em predadores, os herdeiros da antiga cavalaria acabaram por ter gosto pela crueldade e pelo assassinato. Gilles de Rais foi iniciado ao crime aos 11 anos. Aos 16 anos, Gilles casou-se com Catarina de Thouars, neta da segunda mulher de seu avô. Em 1424, Gilles apoderou-se da fortuna de seu avô e pensou em dilapidá-la em despesas feéricas e bebedeiras desvairadas. Contrariando todas as expectativas, o rapaz revelou-se um brilhante líder guerreiro, abandonando então o crime para se pôr a serviço de uma personalidade oposta a sua: Joana d’Arc. Em Orléans, além de Tourelles, em Jargeau depois em Patay, Gilles de Rais guerreou bravamente, até que em 17 de julho de 1429, trouxe a abadia de Saint-Remi a ampola contendo o ‘Sagrado Crisma’, necessário a unção real. Depois, ao lado de Joana, assistiu em lágrimas à sagração de Reims. Naquele dia foi nomeado marechal da França: Gilles de Rais foi um soberbo líder guerreiro, se Joana d’Arc, no momento exato, quis tê-lo ao seu lado, foi porque sabia disso. Julgada culpada de um crime perverso por se travestir em homem, apontada como herética, relapsa, idólatra, Joana foi acusada, a despeito de sua virgindade, de envolvimento com o Diabo. Em meio às chamas, Joana entregou-se a Jesus, mas vinte anos mais tarde, em 7 de julho de 1456, ela foi canonizada pelo papa Bento XV em 1920. Depois da morte de seu avô, em novembro de 1432, Gilles de Rais embrenhou-se no crime, sequestrava crianças das famílias camponesas em Champtocé, Tiffauges, Machecoul e lhes impunha as piores sevícias (retalhava os corpos, arrancava os órgãos, corações, dando-se o trabalho de sodomizá-las na hora de sua agonia). Somente em 1440 Gilles de Rais foi levado ao banco dos réus, mas negou todas as acusações, passando às confissões, ele declarou que seus crimes foram cometidos por iniciativa própria, conforme a inclinação de seus sentidos, sem que seus comparsas tivessem a menor participação neles. A princípio excomungado, Gilles de Rais foi reintegrado ao seio da Igreja, depois enforcado e queimado. Gilles perverteu não apenas a ordem da Lei, mas a própria ordem da lei do crime: ao cometer crimes sexuais (crimes perversos, vãos, ‘contra a natureza’ e por puro deleite) que não visavam nem destruir um inimigo nem eliminar um adversário, apenas aniquilar o humano no homem – Gilles tornou-se o agente de seu próprio extermínio.
Sade nunca descambou para o crime radical, uma vez que foi antes com a escrita do que com atos que realizou a sua utopia de inversão da Lei. Ao dar a sociedade um fundamento que inverta a Lei, Sade pretendeu-se o grande domesticador de todas as perversões e distorceu o Iluminismo numa ‘filosofia do crime’ e a libertinagem numa dança da morte – como fundamento para a República, ele preconizou uma tríplice inversão da lei que rege as sociedades humanas: obrigação da sodomia, do incesto e do crime. Segundo esse sistema os homens não deviam ser excluídos da possessão das mulheres, mas nenhum poderia ter uma em particular, daí decorre que as mulheres deviam não apenas se prostituir, como não aspirar senão à prostituição vida afora. Um modelo social fundado na generalização da perversão foi proposto por Sade: ‘para conciliar o incesto, o adultério, a sodomia e o sacrilégio’, dizia ele, ‘o pai deve enrabar a sua filha casada com uma hóstia’. Como ‘príncipe dos perversos’, ele ficou confinado durante 28 anos sob três regimes diferentes: Vincennes; Charenton, passando pela Bastilha. Instalado na casa da sogra em 1763, Sade infligiu toda sorte de baixezas, surras e injúrias à sua esposa, que se curvou às exigências maternas: condenado à morte por crime, blasfêmia, sodomia, envenenamento, Sade foi preso a pedido de sua sogra, a princípio no torreão de Vincennes, em 1777, depois na Bastilha em 1784, mas foi transferido para o hospício de Charenton em 2 de julho de 1789. Em 1790, Sade pôde sair do hospício de Charenton justamente no momento em que sua esposa tomava a decisão de se divorciar. Em razão de seu ateísmo e por ser autor suspeito de Justine, Sade foi condenado à morte em março de 1794, mas foi preciso detectar tanto no homem Sade como também em sua obra, o vício capaz de permitir confiná-lo à acusação de ser louco. A partir do primeiro quartel do século XIX, o nome de Sade repercutiu como um paradigma no cerne da definição de perversão, o que atesta a criação do neologismo ‘sadismo’ em 1838.
Todas as práticas sexuais foram laicizadas em 1810, com o Código Penal francês, nenhuma delas constitui mais objeto de delito ou crime desde que exercidas em privado e consentidas por parceiros adultos. Em compensação, na literatura médica do século XIX, sob a sexologia e a psiquiatria emergentes, tornou-se perverso e, portanto, patológico, aquele que escolhe como objeto o mesmo que ele (o homossexual), ou ainda a parte do corpo ou o desejo de um corpo que remete ao seu próprio (o fetichista, o coprófilo); aqueles que possuem ou penetram o corpo do outro sem consentimento (o estuprador, o pedófilo); os que destroem ou devoram ritualmente seus corpos ou o de um outro (sádico, masoquista, antropófago, necrófago, necrófilo, escarificador, mutiladores); os que travestem sua identidade e seu corpo (travesti); os que exibem ou apreendem o corpo como objeto de prazer (exibicionismo, voyerismo, narcísico, auto-erotismo); aquele que desafia a barreira das espécies (o zoófilo); que nega as leis da filiação e da consanguinidade (incesto); que contraria a lei da conservação da espécie (o onanista). No vasto catálogo das perversões, a criança, como uma criatura peculiarmente sexuada, foi vista por sua ‘perversão polimorfa’ ou por seu ‘auto-erotismo ilimitado’: embora não pudessem ser declaradas loucas, as crianças podiam muito bem ser designadas como perversas. Na Europa de 1850 a 1900, toda uma perseguição médica ocorreu em direção da criança masturbadora e da mulher histérica que tinham em comum preferir a sexualidade auto-erótica a uma sexualidade procriadora. A mulher histeria, o adulto homossexual e a criança masturbadora serviram de suporte a todo tipo de fantasias centradas no terror de uma possível perversão da família e da ordem procriadora.
Ao longo da segunda metade do século XIX, as mais altas autoridades da ciência médica alemã inventaram uma ‘arte de governar’ os povos (biocracia e polícia dos corpos) não com o auxílio de uma política assentada numa filosofia da história, mas por meio das ciências da vida, das ciências ditas humanas, na época, vinculadas à biologia, onde os termos ‘higiene racial’ e ‘degenerescência’ encontraram lugar no discursivo político. A partir de 1920, numa Alemanha vencida, os herdeiros dessa biocracia reivindicaram a aplicação deste programa, incluindo o da eutanásia e o da esterilização. ‘Programa Perverso’, em que a ‘higiene racial’ repousava primordialmente na pretensão ao controle totalizante da sexualidade humana, em cujo programa o ‘genocídio’ tomou um lugar próprio – a destruição física de uma população considerada indesejável em virtude de seu pertencimento a uma raça, espécie ou grupo. Nesse ‘sistema genocida’ correu-se o risco de reproduzir uma espécie de ‘robôs esquizóides assassinos’: Höss, Eichmann, Himmler e Göring, além de serem genocidas e dignatários nazistas, tiveram como ponto comum renegar os atos que cometiam, ou negavam seus crimes (extermínio, torturas, profanações de cadáveres, execuções, experimentações médicas, etc.) ou refutavam a sua existência, como se ‘obedecer a ordens’ contribuísse para inocentá-los. Sistema perverso, o nazismo teve por objetivo eliminar o que ele apontava como ‘povo de perversos’, os judeus, julgados como o mais perverso dentre os demais.
Os místicos haviam alimentado a fantasia de aniquilar o corpo para oferecer a Deus o espetáculo da sua subjugação libertadora. Os libertinos e Sade tinham, contra Deus, promoveram o corpo como único lugar do gozo. Os sexólogos haviam se inclinados a domesticar seus prazeres e seus furores criando um ‘catálogo das perversões’. Os nazistas fizeram da ciência um instrumento de um gozo do mal, permitindo-lhes reduzir a coletividade dos homens a dejetos contabilizados e coisificados. Em 1987, sem a menor a discussão teórica, o termo ‘perversão’ desapareceu do léxico médico-psiquiátrico para ser substituído por ‘parafilia’. Por Richard Von Krafft-Ebbing, em seu Psychopatia sexualis, as descrições das perversões sexuais efetuaram-se sob a imagem do grotesco, do obscuro, do monstruoso, da compaixão. Se Freud reabilitou a ideia segunda a qual a perversão é necessária à civilização, por constituir a parte maldita das sociedades e a parte obscura de nós mesmos. Como um termo fora do léxico médico ou não, a perversão é exclusivamente humana, ou seja: “o homem”, dizia Darwin, “é a única criatura na qual podemos reconhecer a faculdade moral... E isso constitui a maior de todas as distinções que se pode fazer entre os animais e os homens”.
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