domingo, 14 de fevereiro de 2010

História da Sexualidade [I] A Vontade de Saber (Michel Foucault)

A repressão funciona, de certo, como condenação ao desaparecimento, mas também como injunção ao silêncio – afirmação da inexistência e, com efeito, constatação de que, em tudo isso, não há nada para dizer nem ver tampouco para saber. Assim marcharia, com a sua lógica capenga, a hipocrisia de nossas sociedades burguesas? Explicam-nos que, se a repressão foi, desde a época clássica, o modo fundamental de ligação entre poder, saber e sexualidade isso só se pode liberar a um preço considerável. Há alguma razão que torne gratificante a formulação das relações de poder e sexo por intermédio da repressão? Há algumas décadas que nós só falamos de sexo fazendo pose, conscientes de se desafiar a ordem estabelecida, com tom de voz que demonstra o quanto isso é subversivo. Enfim, levantam-se pelo menos três dúvidas sobre essa ‘hipótese repressiva’: a repressão do sexo seria mesmo uma evidência histórica? Houve alguma acentuação ou instauração de um regime de repressão ao sexo no século XIX? A repressão veio a se cruzar com um mecanismo de poder, que até então funcionaria sem contestação, para barrar-lhe a via? Acontece que, a partir do fim do século XVI, a ‘colocação do sexo em discurso’, em vez de sofrer um processo de restrição, foi, ao contrário, submetida a um mecanismo de crescente incitação, assim como as técnicas de poder exercidas sobre o sexo não obedeceram a um princípio de seleção rigorosa, mas de disseminação e implantação das sexualidades polimorfas.

Considere-se, portanto, esses três últimos séculos em suas contínuas transformações, as coisas aparecem bem diferentes: em torno e através do sexo houve uma imensa explosão discursiva, talvez tenha havido uma depuração bastante clara do vocabulário autorizado. Fixando cada qual à sua maneira a linha divisória entre o lícito e o ilícito, três grandes códigos explícitos se encarregavam das práticas sexuais até o final do século XVIII: o direito canônico, a pastoral cristã e a lei civil – romper as leis do matrimônio e procurar prazeres estranhos merecia, de qualquer modo, condenação. Os discursos sobre o sexo (específicos e diferentes tanto pela forma quanto pelo objeto) então não cessaram de proliferar. Trata-se de uma fermentação discursiva que se acelerou a partir do século XVIII, não tanto a multiplicação dos discursos provavelmente mais ‘ilícitos’, como zombaria aos novos pudores; mas a multiplicação dos discursos sobre o sexo no próprio campo do exercício do poder (incitação institucional de se falar do sexo e a falar cada vez mais). Este projeto de uma ‘colocação do sexo em discurso’ formara-se há muito tempo, numa tradição ascética e monástica. Considera-se a evolução da pastoral católica e do sacramento da confissão – onde ‘tudo devia ser dito’: trata-se mais de uma evolução que fez da carne, a origem de todos os pecados, ao mesmo tempo deslocou o momento mais importante, do ato em si, para a inquietação do desejo. O que se interrogava era sobre a sexualidade das crianças, a dos loucos e criminosos; é do prazer dos que não amam o outro sexo; os devaneios, as obsessões, as pequenas manias ou as grandes raivas.

Não obstante, através e tais discursos multiplicaram-se as condenações judiciárias das perversões menores, anexou-se a irregularidade sexual à doença mental; da infância à velhice foi definida uma norma do desenvolvimento sexual e foram cuidadosamente caracterizados todos os desvios possíveis; organizaram-se controles pedagógicos e tratamentos médicos; em torno das mínimas fantasias, os moralistas e os médicos trouxeram à baila todo o vocabulário enfático da abominação. Uma série de pequenos perversos desfilou no século XIX e foi entomologizada por seus psiquiatras: os exibicionistas de Lasègue; os fetichistas de Binet; os zoófilos e zooerastas de Krafft-Ebing; os automonossexualistas de Rohdeler; haverá os mixoscopófilos, os ginecomastos, os presbiófilos, os invertidos sexoestéticos e as mulheres disparêunicas. Esses belos nomes de heresias precisavam mais do que as velhas interdições, esta forma de poder exigia para se exercer tanto presenças constantes, atentas e curiosas, quanto proximidades, mediante exames e observações insistentes, requerendo um intercâmbio de discursos através de perguntas que extorquem confissões e de confidências que superam a inquisição.

O poder que toma a sexualidade a seu cargo, que visa açambarcar o corpo sexual, acaba por assumir como dever: roçar os corpos e os acariciar com os olhos, assim como eletrizar algumas regiões e intensificar superfícies, até mesmo dramatizar momentos conturbados. O poder passa a funcionar como um mecanismo de apelação que atrai e extrai essas estranhezas pelas quais se desvela; assim um prazer se difunde através do poder cerceador, que fixa o prazer que acaba por desvendar. Prazer e poder, por um lado, prazer em exercer um poder que questiona, fiscaliza, espreita, espia, investiga, apalpa e revela, por outro lado, prazer que surte em escapar e fugir deste poder, enganá-lo ou travesti-lo. Instituições escolares e psiquiátricas, com suas populações numerosas e hierarquizadas, organizações espaciais e sistema de fiscalização constituem, junto com a ‘família’, outra forma de distribuir o jogo dos poderes e prazeres, mas também indicam regiões de alta saturação sexual com espaços ou ritos privilegiados, como a sala de aula, o dormitório, a visita ou a consulta. Poder e prazer não se anulam nem voltam um contra o outro, seguem-se e se entrelaçam através de mecanismos complexos e positivos, de excitação e de incitação: nunca tantos centros de poder, jamais tanta atenção manifesta e prolixa, nem tantos contatos e vínculos circulares, nunca antes tantos focos onde estimular a intensidade dos prazeres e a obstinação dos poderes para se disseminarem mais além.

Parece que até Freud, o discurso sobre o sexo, dos teóricos e dos cientistas, não teria feito mais do que ocultar continuamente o que dele se falava: era uma ciência feita de esquivas, por ser incapaz ou por se recusar em falar do próprio sexo, referia-se, sobretudo, às aberrações, perversões, extravagâncias excepcionais, anulações patológicas, exasperações mórbidas. O sexo, ao longo do século XIX, parece ter se inscrito em dois registros de saber bem distintos: uma biologia da reprodução e uma medicina do sexo. Até o final do século XIX, além de dúbios prazeres, arrogava-se o poder sobre os imperativos da higiene, somando-se os velhos temores do ‘mal venéreo’ aos novos discursos sobre a assepsia. Em suma, os grandes mitos evolucionistas se expandiram para as instituições modernas de saúde pública pretendendo assegurar-lhes tanto o ‘vigor físico’ como a ‘pureza moral’ do corpo social, deste modo, prometia-se eliminar os portadores de taras, os degenerados e as populações abastardadas – em nome de uma urgência biológica e histórica, justificavam-se os racismos oficiais, então iminentes. Deve-se, portanto, considerar não o limiar de uma nova racionalidade, que a descoberta de Freud ou de outro tenha marcado, mas a formação progressiva desse “jogo da verdade e do sexo”, que o século XIX nos legou.

Existem, historicamente, dois grandes procedimentos para reproduzir a verdade do sexo. Por um lado as sociedades (China, Japão, Índia, Roma, árabe-muçulmanas) que se dotaram de uma ars erotica: a verdade é extraída do próprio prazer, encarado como prática e recolhido na experiência; ele deve ser reconhecido como prazer, segundo sua intensidade, sua qualidade específica, sua duração, suas reverberações no corpo e na alma. Este saber deve recair sobre a própria prática sexual. Nossas civilizações à primeira vista não possuem uma ars erotica. Em compensação parece ser a única a praticar uma scientia sexualis. Ou melhor, só a nossa sociedade desenvolveu, ao longo dos séculos, para dizer a verdade do sexo, procedimentos que se ordenam em função de uma forma de poder-saber rigorosamente oposta à arte das iniciações e ao segredo magistral – a confissão. A confissão é um ritual de discurso onde o sujeito que fala coincide com o sujeito do enunciado, além de se desenrolar numa relação de poder que se baseia na presença de um parceiro, que não é simplesmente um interlocutor, mas a própria instância que requer a confissão: impõe-na, avalia-a e intervém para julgar, punir, perdoar, consolar, reconciliar. A confissão é também, pois um ritual onde a verdade é autenticada pelas próprias resistências que se teve de suprimir para que ela pudesse se manifestar, enfim, trata-se de um ritual onde a enunciação em si produz em quem articular modificações intrínsecas: inocenta-o, resgata-o, purifica-o, livra-o de suas faltas. Se o homem ocidental tornou-se um animal confidente isso ocorreu porque a confissão da verdade se inscreveu no cerne dos procedimentos de individualização do poder, mas principalmente porque a confissão não era para ser espontânea ou imposta por alguns imperativos interiores, era para ser extorquida: desencadeava-se na alma ou era arrancada do corpo.

Dizendo poder, não significa que o ‘Poder’ seja concebido como um conjunto de instituições e aparelhos garantidores da sujeição dos cidadãos em um Estado determinado. Em primeiro lugar, o poder não se adquire nem se possui, mas se exerce a partir de inúmeros pontos e em meio a relações desiguais e móveis. Em segundo lugar, as relações de poder não são exteriores, mas imanentes e possuem lá onde atuam um papel produtor. Em terceiro lugar, o poder não vem de baixo, as correlações de forças são múltiplas e são formadas na mesma medida em que atuam nos aparelhos de produção, nas fábricas, nos grupos restritos e instituições, assim podem formar uma linha de força geral ao atravessar os afrontamentos locais e os ligando entre si. Em quarto lugar, lá onde há poder há resistência, afirma-se que estamos necessariamente ‘no’ poder e que dele nunca se escapa. Daí o caráter relacional das relações de poder: elas não podem existir senão em relação a uma multiplicidade de focos de resistência que representam o papel de alvo, de apoio, saliência que permite a preensão – esses pontos de resistência estão presentes a toda a rede de poder. Enfim, as relações de poder são distribuídas de modo irregular: os pontos, os nós, os focos de resistência disseminam-se com mais ou menos densidade no tempo ou no espaço, às vezes provocando o levante de grupos ou indivíduos de maneira definitiva, inflamando certos pontos nos corpos, certos momentos da vida, certos tipos de comportamento.

Parte-se do que se pode chamar de ‘focos locais’ de poder-saber, por exemplo, as relações que se estabelecem entre penitente e confessor, ou fiel e diretor de consciência e, sob o signo da carne, diferentes formas de discursos (exame de si mesmo, interrogatórios, confissões, interpretações, entrevistas) veiculam formas de sujeição e de esquemas de conhecimento. Da mesma forma que o corpo da criança vigiada e cercada em seu berço, leito ou quarto, por toda uma ronda de parentes, babás, serviçais, pedagogos e médicos, todos atentos às mínimas manifestações de seu sexo, constitui, a partir do século XIX, outro ‘foco local’ de poder-saber. Nenhum ‘foco local’, nenhum esquema de transformação poderia funcionar se, através de uma série de encadeamentos sucessivos, não se inserisse em uma ‘estratégia global’. De todo forma, o dispositivo familiar, no que tinha de mais insular e heteromorfo, pôde servir de suporte às grandes manobras pelo controle da natalidade, pelas incitações populacionais, pela medicalização do sexo e a psiquiatrização de suas formas não genitais. Não existe uma estratégia única, global, válida para toda a sociedade e uniformemente referente a todas as manifestações do sexo, mas parece possível distinguir, a partir do século XVIII, quatro conjuntos estratégicos: (1) a histerização do corpo da mulher; (2) a pedagogização do sexo da criança; (3) socialização das condutas de procriação; (4) a psiquiatrização do prazer perverso. Se a preocupação com o sexo aumentou ao longo do século XIX, quatro figuras se esboçaram como objetos privilegiados de saber e alvos ou pontos de fixação de empreendimentos do poder: a mulher histérica, a criança masturbadora, o casal malthusiano e o adulto perverso, cada uma dessas figuras tornou-se correlativa a uma dessas estratégias, que percorreram ou utilizaram o sexo das crianças, dos homens e das mulheres.

Deve-se ver a burguesia, a partir da metade do século XVIII, empenhada em se atribuir uma sexualidade e constituir para si, a partir dela, um corpo específico – um corpo de ‘classe’ com uma saúde, uma higiene, uma descendência, uma raça. Foi na forma do sangue, isto é, da antiguidade das ascendências e do valor das alianças e da saúde de seu organismo, que a burguesia olhou para assumir um ‘corpo’: o sangue da burguesia foi o seu próprio sexo. A preocupação da burguesia com o seu legado genealógico não deixou de ocorrer sob influência de alguns preceitos biológicos, médicos, eugênicos. Trata-se de uma espécie de racismo embrionário, dinâmico e em expansão, tendo que esperar até meados do século XIX para dar os frutos que chegamos a assistir com a eclosão das primeiras guerras do século XX. O sangue absorveu o sexo, enquanto os primeiros sonhos de aperfeiçoamento da espécie deslocaram todo o problema do sangue para uma gestão bastante coercitiva do sexo. Ocorre que, a partir da segunda metade do século XIX, a temática do sangue foi chamada a sustentar o tipo de poder político que se exerce através dos dispositivos de sexualidade. O racismo, em sua forma estatal, moderna, biologizante, se forma neste ponto: toda uma política do povoamento, da família, do casamento, da educação, da hierarquização social, da propriedade e uma longa série de intervenções permanentes ao nível dos corpos, das condutas, da saúde, da vida cotidiana, receberam justificação em função de proteger a mítica pureza do sangue e fazer triunfar a raça. Para M. Foucault, “o nazismo foi, sem dúvida, a combinação mais ingênua e mais ardilosa dos fantasmas do sangue com os paroxismos de um poder disciplinar”. Trata-se de uma sociedade disciplinar deste tipo, capaz de suportar uma ordenação eugênica sob uma estatização ilimitada e acompanhada pela exaltação onírica de um sangue superior, mas que implicava necessariamente o genocídio sistemático dos outros e o risco de expor a si mesmo a um sacrifício total.

Direito de morte, poder sobre a vida, com efeito, surtem do golpe do sangue sobre o sexo – um genocídio justificado por um surto em ser uma raça superior? O direito de vida e morte sempre esteve condicionado à defesa de um soberano e à sua sobrevivência. O direito de vida e morte é um direito assimétrico: o soberano só exerce seu direito sobre a vida na medida em que exerce seu poder de matar ou contendo-o. Formula-se uma espécie de direito de causar a morte e de deixar viver. Este era um tipo de direito de apreensão das coisas, do tempo, dos corpos e da vida – culminava com o privilégio de se apoderar da vida para depois suprimi-la. Esse é o formidável poder de morte, onde os massacres se tornaram vitais, como gestores da vida e da sobrevivência de corpos e raças que tantos regimes puderam travar tantas guerras, causando a morte de tantos homens, sob o poder de expor toda uma população à morte geral. Pode-se dizer que esse velho direito de causar a morte e deixar viver foi substituído por um poder de causar a vida ou devolver à morte. A velha potência da morte em que se simbolizava o poder soberano é agora recoberta pela administração dos corpos (anátomo-política do corpo humano e suas disciplinas) e pela gestão calculista da vida (biopolítica da população em uma série de intervenções e controles reguladores). Nesse pano de fundo, compreende-se, pois a importância assumida pelo sexo como foco de disputa política, se não é ele afinal que está na articulação dos dois eixos ao longo dos quais se desenvolveu toda a ‘tecnologia política da vida’: de um lado, faz parte das disciplinas do corpo (adestramento, intensificação e distribuição das forças, ajustamento e economia de energia) e, do outro, o sexo pertence à regulação das populações, como na reprodução da espécie, no planejamento familiar, no dispêndio e por todos os efeitos globais que induz. O sexo é, portanto, acesso à vida corpo e, ao mesmo tempo, à vida da espécie.

2 comentários:

Tamires Fonseca disse...

Muito boa a resenha, não parece apresentar nenhum tipo de inconsistência aos elucidado por Foucault.

Muito produtiva a releitura!

Tamires Fonseca disse...

Muito boa a resenha!

Não apresenta nenhum tipo de insconsistência em relação ao que Foucault escreveu.

Acho que seria bacana você expor o que pensou ao ler e resenhar sobre a obra.

Abraços!