Se em todas as outras religiões, Deus pede a seus seguidores que lhe permaneçam fiéis, só Cristo lhe pediu que o traíssem para cumprir sua missão. Na sua frase “Pai, porque me abandonaste?”, o próprio Cristo comete aquilo que é o pecado supremo para o cristão: ser abalado na sua fé. Na história aterradora da Paixão está claramente indicado que o autor de todas as coisas conheceu não só o sofrimento extremo como a própria dúvida. No cristianismo, Deus morre não para os homens, mas para Si mesmo. Quando Cristo morre, o que morre com ele é a esperança secreta discernível na frase: “Pai, porque me abandonaste?” O ponto principal do cristianismo é antes o ataque ao núcleo religioso duro que sobrevive mesmo no humanismo, até no stalinismo. Só é possível redimir esse núcleo do cristianismo pelo gesto que consiste em abandonar o escudo da sua organização institucional: ou abandonamos ou conservamos a forma religiosa, mas perdemos a essência. Para poder salvar o seu tesouro, tem de se sacrificar a si mesmo, como Cristo teve de morrer para que o cristianismo pudesse emergir.
Enquanto o olhar do budista está voltado com uma intensidade peculiar para o Interior (a imersão na Verdade): o cristão contempla o Exterior (o encontro traumático com a Verdade) com uma intensidade fulgurante. A rápida industrialização e militarização do Japão nos últimos cento e cinquenta anos, por exemplo, com a sua ética da disciplina e do sacrifício, foi apoiada pela grande maioria dos pensadores zen e hoje se assiste ao fenômeno corrente do zen industrial entre os dirigentes japoneses. A atitude de imersão completa no ‘agora’ da Iluminação imediata – onde o ‘eu’ não existe e toda a distância reflexiva abole-se. No entanto, eu ‘sou o que faço’, desde que isso resulte de uma disciplina absoluta que coincida com uma espontaneidade total, o que legitima perfeitamente a subordinação à máquina social militarista. Verifica-se uma oposição, onde se situa o discurso zen, entre a atitude reflexiva que temos na vida cotidiana (desejamos a vida e tememos a morte, lutamos por prazeres em vez de agirmos diretamente) e a posição daquele que recebeu a iluminação (ao mostrar que a diferença entre a vida e a morte deixou de ter importância). Deste modo, é exatamente nesta oposição que nos redescobrimos na unidade original em que o ‘eu’ não existe e que somos diretamente o nosso ‘ato’. Os mestres militares interpretam a mensagem zen fundamental (a libertação está na perda do ‘eu’, na união imediata com o Vazio primordial) idêntica à fidelidade total dos soldados, com sua obediência mecânica às ordens, na medida em que realizam o seu dever sem consideração pelo ‘eu’ e por seus interesses. Os soldados são levados a marchar de modo a levá-los a uma espécie de subordinação cega e a fazê-los obedecer como marionetes.
Não há reencarnação, há apenas esta vida que é diretamente idêntica à morte, assim o guerreiro já não age como uma pessoa, ele está totalmente dessubjetivado, ou conforme D. T. Suzuki: “no caso do homem que ergueu o sabre por obrigação, não é ele que mata, mas o próprio sabre”. É o próprio sabre que realiza o ato de matar, é o próprio inimigo que se apresenta e se transforma em vítima – eu nada posso fazer a esse respeito, estou reduzido a observador passivo dos meus próprios atos. Qual a diferença entre a legitimação da violência do ‘guerreiro zen’ e a longa tradição ocidental, que vai de Cristo a Che Guevara, apregoa também o recurso à violência, mas como ‘obra do amor’? De um lado, em uma ‘guerra da compaixão’, o verdadeiro guerreiro mata por amor, assim o zen militarista se justifica de maneira contraditória: ‘a guerra é um mal necessário empreendido para engendrar um bem superior – qualquer batalha, seja qual for, deve ser travada para antecipar a paz’. De outro, “se alguém vier a mim, e não aborrecer seu pai e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs, e ainda também a sua própria vida, não pode ser meu discípulo”, palavras de Cristo, às vezes escandalosas, transmitidas por Lucas.
Quando sou fraco e ridículo, por exemplo, quando sou troçado e se riem de mim, assemelho-me a Cristo, que tanto foi objeto de escárnio, afinal Cristo é o supremo louco divino, privado de qualquer majestade e dignidade. A verdadeira intervenção da eternidade no Tempo ocorre quando o senhor do desgoverno, o Rei-Louco, não representa uma suspensão provisória da Ordem, mas começa a funcionar como a figura fundadora de uma Nova Ordem. Só fazemos ‘um’ com Deus a partir do momento em que Deus deixou de fazer ‘um’ consigo próprio, se auto-abandonou, ‘interiorizou’ a distância radical que nos separa d’Ele.
Para uma estrutura como é a da ‘política do conjunto vazio’, Jacques Rancière desenvolveu um conceito, o ‘supranumerário’, isto é, o que faz parte do conjunto, mas que não tem lugar no seu próprio seio. Neste caso, o conflito político designa a tensão entre o corpo social estruturado, onde cada parte tem o seu lugar, e a ‘parte dos sem-parte’ que abala essa ordem, em nome do princípio vazio da universalidade, não deixa de ser deslocada e erra sem trabalho nem residência, sem identidade cultural ou sexual e sem estarem registrados em qualquer lado. O que é perceptível quando G. Agamben afirma que a ‘dimensão messiânica’ não é a universalidade neutra, mas antes a não-coincidência que cada elemento particular pode obter consigo próprio. Se Cristo pode ser considerado o supremo Mann ohne Eigenschaften, o homem sem qualidades, ele é mais do que homem precisamente na medida em que podemos dizer a propósito da sua figura “ecce homo”, na medida em que é um “homem kat’exochen”, ‘como tal’, sem traços distintivos, particulares. Isto quer dizer que Cristo é um ‘universal singular’ (conforme Rancière atribuiu aos que não têm um lugar particular na ordem social e que acabam por representar a humanidade como tal, na sua dimensão universal). Descreve-se, então, o que seria a ‘diferença minimal’: uma diferença entre o conjunto e esse elemento supranumerário que pertence ao conjunto, mas ao qual falta qualquer propriedade diferencial que especificaria o seu lugar no edifício. Isto não quer dizer que Cristo esteja dividido entre uma parte ‘divina’ e outra ‘humana’, acontece que a diferença minimal não é a diferença entre duas partes, mas a diferença entre dois ‘aspectos’ de uma única e mesma identidade: é a diferença de uma entidade consigo própria.
Acontece que a autêntica libertação está muito ligada com a violência – ela é uma violência e, como tal (o gesto violento de rejeitar, estabelecer uma diferença, traçar uma linha de separação), liberta. A liberdade não é um estado de harmonia e equilíbrio, mas um ato violento que perturba esse mesmo equilíbrio. Não se trata de Bhagavad-Guitá, quando o deus Krishna dirige-se a Arjuna – o rei-guerreiro que hesita combater, horrorizado pelos sofrimentos que pode provocar. O amor cristão é uma paixão violenta que visa introduzir uma diferença, uma separação na ordem do ser, que procura privilegiar e elevar um objeto à custa de outros. Os budistas e hinduístas, com sua compaixão generalizada e sua indiferença, diferem do amor cristão que é violência, intolerância.
Georges Bataille e sua exigência ‘em pensar tudo ao ponto de abalar as pessoas’, de ir tão longe quanto possível – ao ponto em que a dor transformar-se em alegria, os contrários coincidirem, o gozo encontrar a morte, a santidade se confundir com o deboche e Deus se revelar uma besta cruel. É essa necessidade de ‘ir até o fim’, até a experiência mesma do impossível, como única forma de ser autêntico, que faz de Bataille o filósofo da paixão pelo Real – o que faz repousar nessa paixão transgressiva, a proibição: Bataille fica preso nesta dialética entre a lei e a sua transgressão, ou seja, a lei proibitiva é um elemento que engendra o desejo transgressivo, afinal nós somos obrigados a instaurar interditos para podermos gozar da sua violação. O que provocaria a angústia, portanto, não deixa de ser a elevação da transgressão ao estatuto de norma ou a ausência de uma proibição que viria apoiar o desejo: o que nos falta é o espaço criado pelo interdito, antes que possamos afirmar nossa singularidade ao resistir às Normas, que nos prescrevem a resistência e a transgressão, ou que nos convidam a ir sempre mais longe.
Trata-se de uma leitura sacrificial, aquela em que o gesto de Cristo surge no interior do horizonte do qual Cristo mesmo desejava triunfar, no interior do horizonte em que morremos por ele, nos identificamos com ele: no interior do horizonte da lei (a troca simbólica, a culpa e a sua expiação, o pecado e o preço a pagar por ele) – a morte de Cristo só pode surgir como a afirmação absoluta da lei, como a elevação da Lei ao estatuto de instância todo-poderosa do superego que nos esmaga, anos, seus sujeitos, com uma culpabilidade que nunca poderemos pagar. Uma Lei Infinita, de uma lei que, de certo modo, ultrapassa-se a si mesma, de uma Lei que já não impõe proibições ou injunções específicas e determinadas (faz isso, não faça aquilo...), mas que repete simplesmente uma Interdição vazia, não... , de uma Lei em que tudo é simultaneamente proibido e autorizado (ou seja, obrigatório). Esta inversão, que transforma as proibições em ordens, deve ser compreendida na medida em que a própria lei engendra o desejo de violar a si mesma. Na mesma lógica, contrariamente às proibições precisas da lei, devíamos saber ou adivinhar o que não se deve fazer, de modo que estivéssemos sempre na posição impossível de sermos sempre, e a priori, suspeitos de infringir uma proibição. Aos olhos dessa Lei ‘louca’, já somos sempre culpados, sem mesmo saber exatamente de quê (?): esta Lei é a meta-lei, a Lei do estado de emergência, onde a ordem do direito positivo é suspensa e a Lei ‘pura’ é uma forma da ordem/interdição ‘como tal’: o enunciado de uma injunção privada de qualquer conteúdo.
Trata-se de reconhecer o efeito da Lei incondicional kafkiana, que não pode ser executada como potencialidade pura, nem sequer traduzida em normas positivas, mas que permanece uma injunção abstrata que faz de todos nós culpados precisamente por não sabermos do que somos culpados. Deveríamos correlacionar a ‘culpabilidade incondicional do superego’ e a ‘misericórdia do amor’ – duas figuras do excesso: a misericórdia é obrigatoriamente algo que temos de dispensar – a misericórdia como excesso desnecessário que, como tal, tem de ocorrer. O problema da Lei não é o fato de ela não conter amor suficiente, mas antes de o conter demasiado amor, o que significa que a vida social me parece dominada por uma Lei imposta do exterior, na qual sou incapaz de me reconhecer, precisamente na medida em que continuo agarrado ao imediatismo do amor que se sente ameaçado pelo reino da Lei: como devemos realizar a Lei desembaraçando-nos da mácula patológica do amor? Quando há oposição entre a Lei e o Amor, do amor que ultrapassa e elimina a Lei – o excesso da própria Lei do amor para lá da Lei. Este será o caso do ‘amor paulino’, como reverso da Lei obscena do superego, que não pode ser executada em regras particulares? Agamben concentra-se na posição do “como-se-não”: Paulo nos diz “obedecei às leis como se não lhe obedecêsseis”, isto significa que deveríamos suspender nosso obsceno investimento libidinal na Lei, investimento na base do qual a Lei engendra e solicita a sua própria transgressão. Observa-se, enfim, uma dupla articulação entre o “haverá amor para lá da Lei?” e da “dialética paulina da Lei e sua transgressão”.
O ‘julgamento negativo de Paulo’ é desprovido de ambiguidade: “por isso, nenhuma carne será justificada diante dele pelas obras da lei, porque pela lei vem o conhecimento do pecado”. “Ora, o aguilhão da morte é o pecado, e a força do pecado é a lei”, por isso, “Cristo nos resgatou da maldição da lei”. Portanto, quando Paulo diz que “a letra mata e o espírito vivifica”, esta letra é precisamente a letra da lei. Segundo a leitura habitual de Paulo, Deus deu a Lei aos homens para lhes fazer tomar consciência dos seus pecados, para tornar-lhes ainda mais pecadores e levá-los a compreender que precisam de salvação, que só poderá vir da misericórdia divina. De outra forma, a Lei judia já é fundada num gesto de ‘desprendimento’: através da referência à Lei, os judeus na diáspora mantêm certa distância relativamente à sociedade no seio da qual vivem. A Lei judia introduz outra dimensão, a da justiça divina, que é de uma heterogeneidade radical em relação à lei social: a justiça judia é a visão do estágio final em que serão anuladas todas as injustiças infligidas aos indivíduos. Quando os judeus ‘se desligam’ e mantêm certa distância relativamente à sociedade em que vivem, os judeus são ‘desenraizados’, a sua Lei torna-se abstrata e ela os extrapola da Substância social.
Não se trata de uma distância entre Deus e o homem na frase: “pai, porque me abandonaste?”, mas de uma cisão interna ao próprio Deus. Essas palavras de Cristo não deixam de se parecer com uma queixa de criança que, depois de ter acreditado no poder absoluto do pai, descobre aterrorizada que o pai não pode ajudá-la: Deus não é justo nem injusto, ele torna-se simplesmente impotente. Se o cristianismo é a religião da Revelação é porque nele tudo é revelado, mas o que é revelado no cristianismo não é só todo o conteúdo, mais precisamente o fato de não haver nada, nenhum segredo a revelar para lá do conteúdo: o que Deus revela não é o seu poder escondido, mas simplesmente a sua impotência como tal. De tal sorte que o segredo que os judeus permanecem fiéis é ao horror da impotência divina – e é esse segredo que o cristianismo ‘revela’. Por isso, o cristianismo só pôde aparecer depois do judaísmo: ele revela o horror com que os judeus foram os primeiros a ser confrontados.
Relativamente ao Evento (a passagem do judaísmo ao cristianismo) está mais bem exemplificado com o estatuto do Messias: em contraste com a atitude dos judeus, que se encontram na espera messiânica, os cristãos consideram que o Messias, tão aguardado, não só já chegou como já estamos redimidos. Com a fórmula “O Messias chegou” mostra-se que a Revelação é um risco tremendo, que Deus se arriscou a pôr tudo em jogo, comprometeu-se com a “chegada de Cristo”, através da qual somos formalmente redimidos, subsumidos sob a redenção e, principalmente, que nós, homens, não podemos repousar-nos contando com a ajuda de Deus: pelo contrário, somos nós que devemos ajudar a Deus. Deus é, portanto, um observador trágico e impotente, para ele, a única intervenção possível na história era, precisamente, ‘cair nela’, aparecer nela sob a forma do Filho. O judaísmo reduz a promessa de uma ‘Outra Vida’ à Alteridade pura, à promessa messiânica que nunca se tornará completamente presente e atualizada, ao passo que o cristianismo, o Messias já está cá, já chegou, o evento final já aconteceu e, não obstante, a distância (como horizonte sempre por vir, a distância que sustinha a promessa messiânica) permanece...
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