terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

A Farmácia de Platão (Jacques Derrida)

Será que a evocação de Farmacéia, no início do Fedro, é casual? De todo modo, Farmacéia (pharmákeia) pode ser um nome comum para designar a administração do phármakon, da droga: do remédio e/ou veneno. Esse phármakon, essa ‘medicina’, esse filtro, ao mesmo tempo remédio e veneno, já se introduz no corpo do discurso com toda sua ambivalência. O phármakon faz sair dos rumos e das leis gerais, naturais ou habituais. As folhas da escritura agem como um phármakon que expulsa ou atrai para fora da cidade aquele que dela nunca quis sair, mesmo no último momento, para escapar da cicuta. Elas o fazem sair de si e o conduzem por um caminho que é propriamente de êxodo. Quando Sócrates enfim se deitou e Fedro tomou a posição mais cômoda para manejar o texto ou, se for o caso, o phármakon, que tem início a conversação: falas envolvidas, enroladas, reservadas, mas apenas as letras ocultadas poderiam fazer Sócrates caminhar dessa forma, no limite, se um lógos não diferido fosse possível, ele não seduziria, ele não arrastaria Sócrates como se estivesse sob o efeito de um phármakon, fora de seu rumo. Antecipemos. Desde já a escritura, o phármakon, o descaminho. Antes mesmo que a apresentação declarada da escritura como um phármakon intervenha no centro do mito de Theuth. Ocorre que os phármaka estão entre as coisas que podem ser ao mesmo tempo boas e penosas, o phármakon é colhido sempre na mistura. Esta dolorosa fruição, ligada tanto à doença quanto ao apaziguamento, é um phármakon em si. Ela participa ao mesmo tempo do bem e do mal, do agradável e do desagradável, ou, antes, é no seu elemento que se desenham essas oposições. A tradução corrente de phármakon por remédio – droga benéfica – não é de certa forma inexata. Essa medicina é benéfica, ela produz e repara, acumula e remedia, aumenta o saber e reduz o esquecimento. Theuth, por astúcia ou ingenuidade, exibiu o reverso verdadeiro efeito da escritura: para fazer valer sua invenção, Theuth teria, assim, desnaturado phármakon, dito o contrário daquilo que a escritura é capaz. A tradução por remédio acusa a ingenuidade ou a artimanha de Theuth. “Do ponto de vista do sol”, Theuth jogou, sem dúvida, com a palavra, interrompendo a comunicação entre os dois valores opostos: Theuth, o inventor do phármakon, pronunciava em pessoa um longo discurso e apresentava suas letras à aprovação do rei.

Para que a escritura produza o efeito ‘inverso’ daquele que se poderia esperar, ora, essa ambiguidade, Platão, pela boca do rei, quer dominar sua definição na oposição simples e nítida: do bem e do mal, do dentro e do fora, do verdadeiro e do falso, da essência e da aparência. É em aparência que a escritura é benéfica para a memória, mas, na verdade, a escritura é essencialmente nociva: o phármakon produz o jogo da aparência a favor do qual ele se faz passar pela verdade – o caso da escritura é grave. Se a escritura produz, segundo o rei e sob o sol, o efeito inverso daquele que lhe atribuímos, se o phármakon é nefasto, é que ele não é daqui: ele é exterior ou estrangeiro ao ser vivo que é o aqui-mesmo de dentro, que ele pretende socorrer ou suprir. A escritura anunciada por Theuth como um remédio, como uma droga benéfica, é em seguida devolvida e denunciada pelo rei, depois, no lugar do rei, por Sócrates, como substância maléfica e filtro do esquecimento. A escritura é dada como suplente sensível, visível, espacial da mnéme; ela se verifica em seguida nociva e entorpecente para o dentro invisível da alma, da memória e da verdade. Inversamente, a cicuta é dada como um veneno nocivo e entorpecente para o corpo. Ela se verifica em seguida benéfica para a alma, que libera do corpo e desperta para a verdade do eîdos. A cicuta, essa poção que nunca teve outro nome no Fédon senão o de phármakon e é apresentada a Sócrates como um veneno, mas ela se transforma, pelo efeito do lógos socrático, em meio de libertação, possibilidade de salvação e virtude catártica. A cicuta tem um efeito ontológico – iniciar à contemplação do eîdos e à imortalidade da alma: Sócrates a toma como tal.

Platão teve de adequar sua narrativa a leis de estrutura, as mais gerais, aquelas que articulam e comandam as oposições fala/escritura, vida/morte, pai/filho, mestre/servidor, alma/corpo, dentro/fora, sol/lua, etc. Platão certamente não descreve o personagem de Theuth, mas organiza traços de uma figura marcante, sob uma analogia estrutural que os relaciona com outros deuses da escritura, e antes de tudo com Thot egípcio. O deus Thot tem várias faces, várias épocas e habitações. Thot é um deus engendrado, chama-se frequentemente o filho do deus-rei, do deus-sol, de Amon-Ra: “eu sou Thot, filho mais velho de Ra”. Ra (sol) é o deus criador e engendra pela mediação do verbo, Amon: o oculto. Temos aqui, portanto, um sol oculto, pai de todas as coisas, deixando-se representar pela falta. Conjuga-se nisso o que poderia se chamar a história do ovo ou o ovo da história: o criador vivo da vida do mundo nasceu de um ovo – o sol. Amon-Ra é também um pássaro, um falcão (“Eu sou o grande falcão saído de seu ovo”). A subordinação de Thot, filho mais velho do pássaro original, assinala-se porque Thot é o executante, pela língua, do projeto criador de Horus: ele carrega os signos do grande deus-sol, ele o interpreta como seu porta-voz, ele detém o papel de deus mensageiro, do intermediário astuto, engenhoso e sutil que furta e se furta sempre – o deus do significante, mas o que ele deve enunciar ou informar em palavras, Horus já o pensou. Thot só pode se tornar o deus da fala, criadora por subversão violenta. A substituição coloca Thot no lugar de Ra como a lua no lugar do sol: Thot também o imita, torna-se seu signo e representante, obedece-lhe, conforma-se a ele, o substitui, quando preciso, por violência. Ele é o outro do pai, o pai e o movimento subversivo da substituição. O deus da escritura é, portanto, de uma só vez, seu pai, seu filho e ele próprio.

Não que o lógos seja o pai, mas a origem do lógos é seu pai. Se o ‘sujeito falante’ é o pai de sua fala, o lógos é um filho, então, e um filho que se destruiria sem a presença, sem a assistência presente de seu pai. O lógos vivo é vivo por ter um pai vivo, um pai que se mantém presente, de pé junto a ele, atrás dele, nele, sustentando-o com sua retidão, assistindo-o pessoalmente e em seu nome próprio. O lógos vivo reconhece sua dívida, vive desse reconhecimento e se interdita, acredita poder interditar-se o parricídio. A morte do pai abre o reino da violência. Escolhendo a violência, e a violência contra o pai, o filho – ou a escritura parricida –, não pode deixar de se expor a si mesmo. Tudo isso é feito para que o pai morto (primeira vítima e último recurso) não esteja mais aí: a escritura, o fora-da-lei, o filho perdido. Sócrates desempenha nos diálogos o papel do pai, representa o pai ou, no máximo, o irmão mais velho. E Sócrates lembra aos atenienses, como um pai aos seus filhos, que, ao matá-lo, serão a eles próprios a quem inicialmente prejudicarão. O que é o pai? O pai é. O pai é (o filho perdido). A escritura, o filho perdido, não responde a essa questão, ela se escreve: que o pai não está, ou seja, não está presente. Platão designa como escritura um discurso que se queria falado em sua essência, em sua verdade, e que, no entanto, se escreve. E se ele se escreve a partir da morte de Sócrates, é sem dúvida por essa razão profunda: a escritura é parricida. Esse parricídio é uma decisão terrível. Esse parricídio, em todo caso, será tão decisivo, peremptório e temível quanto uma pena capital. Sem esperança de volta. O lógos paterno está revirado. Mas o que é um pai? A origem ou a causa do lógos é comprada ao que sabemos ser a causa de um filho vivo, seu pai. O pai é sempre o pai de um ser vivo/falante, ou seja, é a partir do lógos que se anuncia e se dá a pensar algo como a paternidade. Se houvesse uma simples metáfora na locução “pai do lógos”: a figura do pai sabe-se, é também aquela do bem (agathón). O lógos representa isto ao que ele é devedor, o pai, que é também um chefe, um capital e um bem. Ou antes, o chefe, o capital, o bem. Pater significa em grego tudo isso ao mesmo tempo. Ora, desse pai, desse capital, desse bem, dessa origem de valor e dos entes manifestados, não podemos falar simples ou diretamente, porque não podemos olhá-los na face como não podemos ao sol. Até aqui, a escritura não tinha outro estatuto que aquele de órfão ou de parricida moribundo. O discurso escrito, no sentido ‘próprio’ é malformado de nascimento. Ele não é gnésios: pela voz de seu pai ele não pode ser declarado, reconhecido. Ele é fora-da-lei.

O antídoto ainda é a epistéme. A filosofia opõe essa transmutação da droga em remédio, do veneno em contraveneno. Se o phármako-lógos não abrigasse nele mesmo essa cumplicidade dos valores contrários, e se o phármakon em geral não fosse, antes de toda discriminação, o que, dando-se como remédio, pode-se corromper em veneno, ou o que se dando como veneno pode se verificar como remédio: a essência do phármakon é que, não tendo essência estável nem caráter ‘próprio’, não é uma substância. O phármakon invertido não é outro senão a origem da epistéme, abertura à verdade como possibilidade da repetição e submissão do ‘furor de viver’ à lei (ao bem, ao pai, ao rei, ao chefe, ao capital, ao sol, invisíveis). São as próprias leis que convidam a ‘não’ manifestar esse furor de viver em detrimento das leis mais importantes. O eîdos é o que sempre pode ser repetido como o mesmo. A idealidade e a invisibilidade do eîdos é seu poder-ser-repetido. Ora, a lei é sempre a lei de uma repetição e a repetição é sempre a submissão a uma lei. A morte se abre então ao eîdos assim como à lei-repetição. Sócrates é chamado a aceitar ao mesmo tempo a morte e a lei. Ele deve se reconhecer como descendente ou mesmo escravo da lei que tornou seu nascimento possível. Sócrates deve morrer conforme a lei e nos limites desta cidade, ele que (quase) nunca quis sair dela. Trata-se da palavra ‘pharmakós’ (feiticeiro, mágico, envenenador), sinônimo de ‘pharmakeús’ que tem a originalidade de ter sido sobredeterminada pela cultura grega com outras funções: comparou-se o personagem do pharmakós a um bode expiatório. O mal e o fora, a expulsão do mal, sua exclusão fora do corpo (e fora) da cidade, tais são as duas significações maiores do personagem e da prática ritual. Em geral, os pharmakós eram destinados à morte.

O phármakon apresenta e abriga a morte, mas designa também o perfume, sem essência, como uma droga sem substância. Ele transforma a ordem em enfeite e o cosmos em cosmético. A morte, a máscara, o disfarce, é a festa que subverte a ordem da cidade, tal como ela deveria ser regulada pelo dialético e pela ciência do ser. O ilusionista, o técnico do trompe l’oeil, o pintor, o escritor, o pharmakeús... A palavra phármakon que significa cor também se aplica às drogas dos feiticeiros ou dos médicos. O encantamento é sempre o efeito de uma representação capturando e cativando a forma do outro, sobretudo em seu rosto, na sua face: vultus. A escritura se dá por imagem da fala. Ela desnatura o que pretende imitar. Ela inscreve no espaço do silêncio e no silêncio do espaço o tempo vivo da voz: arranca violentamente ao seu elemento a interioridade animada da fala. Assim, a escritura distancia-se imensamente da verdade da coisa mesma, da verdade da fala e da verdade que se abre à fala. Neste sentido, Sócrates, “aquele que não escreve”, não é também um mestre do phármakon? Um pharmakeús? Um mágico, um feiticeiro e até mesmo um envenenador? Não é rico nem belo, nem delicado, passa a vida filosofando; é um temível feiticeiro, um sofista. Indivíduo que nenhuma lógica pode reter numa definição não-contraditória, indivíduo da espécie demoníaca, nem deus nem homem, nem imortal nem mortal, nem vivo nem morto, ele tem por virtude ‘dar livre curso, tanto à adivinhação completa quanto à arte dos sacerdotes, no que concerne aos sacrifícios e iniciações, assim como as encantações, vaticinações em geral e magia’. A magia socrática opera, portanto, o lógos sem instrumento, por uma voz sem acessório. Esta voz nua e sem órgãos, a ela, nós só podemos impedi-la de penetrar tampando as orelhas...

... O ritual (do pharmakós) era uma dessas antigas práticas de purificação. Se uma calamidade se abatia sobre a cidade, exprimindo a cólera de deus – fome, peste ou qualquer outra catástrofe – o homem mais feio de todos era conduzido como que a um sacrifício como forma de purificação e remédio para o sofrimento da cidade. Excluindo violentamente de seu território o representante da ameaça ou agressão exterior. Quando uma calamidade tal como a seca ou a fome se abatia sobre a cidade, eles sacrificavam dois desses reprovados, como bodes expiatórios. A cerimônia do pharmakós se passa no limite de dentro e do fora que ela tem por função traçar e retraçar sem cessar: intramuros/extramuros. A prática ritual, que tinha lugar em Abdera, em Thrace, em Marselha etc. reproduzia-se todos os anos em Atenas. E ainda no século V Aristófanes e Lísias fazem claras alusões a isso. Platão não podia ignorá-lo. A data da cerimônia é notável: o sexto dia das Targélias. Angustiante e apaziguador, sagrado e maldito, o pharmakós requer que a surpresa seja prevenida: pela regra, pela lei, pela regularidade, pela repetição, pela data fixa. Sócrates nasceu no sexto dia das Targélias: o dia em que os atenienses purificam a cidade.

A Monstruosidade de Cristo (Slavoj Zizek)

Sublinha-se uma diferença entre Sócrates e Cristo: Cristo não é como uma ‘individualidade plástica’ grega que, através de traços particulares, o conteúdo universal transparece diretamente. Isto significa que, embora Cristo seja Deus-Homem, a identidade direta desses dois termos implica também uma contradição: nada há de ‘divino’ no que se refere a Cristo, pelo menos, nada de excepcional – observando-se os seus traços, eles chegam a ser indistinguíveis de qualquer outro individuo humano. Entre os gregos, Sócrates se distingue de Cristo, por exemplo, através desse ‘universal particular’ percebido neste Deus-Homem, mas Édipo pode se assemelhar com Cristo, como excluído, despojo, rei-mendigo. Da ‘cristologia de Hegel’ extrai-se um Cristo que não só foi o próprio Deus, o criador de todo o nosso universo, mas andou nas ruas como indivíduo comum.

Será que o que nós, crentes, comemos na eucaristia, a carne de Cristo (pão) e o seu sangue (vinho), precisamente o mesmo despojo informe, ‘o que [os soldados romanos que o crucificaram] nunca podem matar’, e que continua a avançar e a organizar-se como uma comunidade de crentes. Nesta perspectiva relê-se o próprio Édipo um precursor de Cristo. O corpo poluído de Édipo significa entre outras coisas o monstruoso terror que ronda as portas e no qual, se tiver a sorte de sobreviver, a polis deverá reconhecer a sua deformidade atroz. Édipo é despojado da sua identidade e autoridade e pôde assim oferecer o seu corpo lacerado como pedra angular de uma nova ordem social: “Tornar-me-ei um homem na hora em que deixo de existir?”, ou talvez: “Passarei a contar alguma coisa somente quando não sou nada / deixo de ser humano?”, pergunta-se o rei-mendigo em voz alta. O que nos faz pensar num rei-mendigo posterior, Cristo que, pela sua morte como um ser nulo, um excluído abandonado pelos seus próprios discípulos, funda uma nova comunidade de crentes. Um e outro, Édipo, Cristo, reemergem atravessando o grau zero do ser, reduzido a um despojo excrementício.

Acrescente-se a figura do Deus sofredor à oposição estabelecida entre o Deus benevolente, da paz e da harmonia cósmicas, e o Deus maldoso, com o seu furor assassino. É por isso que G. K. Chesterton destacou a intuição da identidade especulativa do Bem e do Mal, ou seja, a tese de que, ao combater o Mal, o Bom Deus está a combater contra si mesmo, num conflito interno, pertence ainda à suprema intuição pagã. Só o terceiro traço, o sofrimento de Deus resolve, ao emergir subitamente, esta tensão entre as duas faces de Deus, conduzindo-nos assim ao cristianismo propriamente dito: porque é um Deus sofredor. O sofrimento conduz-nos ao Livro de Job, celebrado por Chesterton como o mais interessante dos livros antigos. Depois de Job ser ferido por suas calamidades, os seus amigos teólogos intervêm, oferecendo interpretações, que tornam as calamidades dotadas de sentido, e a grandeza de Job não é tanto protestar a sua inocência como insistir no sem-sentido das calamidades. Essa resistência ao sentido é decisiva quando nos confrontamos com catástrofes potenciais ou atuais (desastres ecológicos, Holocausto, Aids): não ‘tem sentido mais profundo’. A herança de Job proíbe-nos esta atitude de buscar refúgio na figura transcendente e estabelecida de Deus como Senhor secreto que conhece o sentido do que nos parece a nós uma catástrofe sem sentido. O próprio Deus chega a compartilhar do próprio assombro de Job perante a loucura caótica do universo criado: “Job adianta um ponto de interrogação, Deus responde-lhe com um ponto de exclamação. Em vez de mostrar a Job um mundo explicável, insiste em que se trata de um mundo mais estranho do que Job alguma vez pensou”. A eterna interrogação: Havia Deus em Auschwitz? Como poderia Ele ter permitido um sofrimento tão imenso? Por que não interveio para impedir? Encontra-se uma resposta na cena final de Shooting Dogs, um filme sobre o genocídio em Ruanda, na qual vemos um grupo de Tutsi refugiados numa escola cristã, sabendo que em breve serão chacinados por uma turba Hutu –, um jovem professor britânico da escola soçobra no desespero e pergunta a figura paterna, o sacerdote mais velho, onde está agora Cristo para impedir o massacre; a resposta do padre é: ‘Cristo agora está mais do que nunca aqui presente. Está aqui sofrendo conosco’.

Trata-se de Cristo, sofredor, mas que se parece mais com um Deus fraco, um Deus reduzido e compadecido observar a miséria humana, incapaz de intervir e de socorrer. Deus não é justo nem injusto, mas simplesmente impotente. O que Job compreendeu de súbito é que não era ele, mas que o próprio Deus fracassaria: Job previa o futuro sofrimento do próprio Deus. Só o cristianismo abriu um espaço para pensar esse sofrimento, na medida em que é a religião de um Deus que morre. Continua morto, morre realmente, no caso de Cristo que renasceu enquanto outra pessoa, como Espírito Santo. Percebe-se, pois de um triplo movimento: [1] a pessoa singular de Cristo é superada na sua identidade ressurreta enquanto Espírito (amor) da comunidade dos crentes; [2] o milagre empírico é superado no ‘verdadeiro’ milagre maior; [3] o próprio cristianismo se supera em organização política. Ao observar atentamente, reconhece-se certo tipo de ‘reversão dialética’ no cristianismo – a Crucificação e a Ressurreição – variantes formais de um e mesmo acontecimento: ‘Crucificação é ressurreição’. Assim, quando os crentes se reúnem, chorando a morte de Cristo, o seu espírito compartilhado é o Cristo ressuscitado. A relação entre Vida e Morte na figura de Cristo, a morte exemplar na cruz, e a ressurreição na vida eterna dada a todos os que acreditem nele e decidem ‘viver em Cristo’. A Vida e a Morte não são aqui pólos opostos, contrários, mas a mesma coisa vista segundo uma perspectiva global diferente, ou melhor, um só e mesmo acontecimento visto de duas perspectivas. O que é superado no movimento que leva do Filho ao Espírito Santo é assim o próprio Deus: depois da crucificação, da morte do Deus encarnado, o Deus universal regressa enquanto um Espírito da comunidade dos crentes. Cristo é, enquanto Homem-Deus, a unidade ou a reconciliação exteriormente pressuposta: primeiro, uma unidade imediata, depois, uma unidade mediatizada sob a forma do Espírito Santo: passa-se de Cristo, cujo predicado é o amor, ao próprio amor como sujeito, o Espírito Santo. Essa unidade ou essa Reconciliação não pode ser direta, sob a intuição de Hegel, primeiro terá de gerar um (aparecer um) monstro, uma monstruosidade, para indicar a primeira figura da Reconciliação, o aparecimento de Deus na carne finita de um indivíduo humano: “tal é o monstruoso [das Ungeheure] cuja necessidade vimos”, afinal para Hegel, o indivíduo humano frágil e finito é “inapropriado’ para representar Deus, é a impropriedade em geral, enquanto tal”. A própria tentativa de reconciliação produz um monstro, uma grotesca “impropriedade enquanto tal”?

Cristo é o ‘objeto parcial’ de Deus – um órgão autonomizado e sem corpo, como se Deus tivesse extraído o seu olho da sua cabeça e do exterior virasse para si. Intui-se melhor daí porque Hegel insistia na monstruosidade de Cristo. A modalidade cristã de um “Deus que se vê a Si-mesmo” nada tem a ver com o anel fechado e harmonioso do “vejo-me ver”, mas aqui o olho que se vira para o seu corpo pressupõe um olho separado do corpo, e aquilo que vejo por meio do meu olho autonomizado/exteriorizado é uma imagem em perspectiva, anamorficamente distorcida de mim: Cristo é uma anamorfose de Deus. A liberdade humana só se funda nesta monstruosidade de Cristo, desobstruindo-nos o caminho. Deste modo, o mistério de Deus é o homem. “Deus” não é mais do que a versão reificada e substantivada da atividade coletiva humana, ou seja, o fosso irredutível que separa os sujeitos humanos de Cristo – o sujeito monstruoso ‘mais humano do que o humano’. O cristianismo é a ‘religião absoluta’ precisamente na medida em que, nele, a distância que separa Deus do homem separa Deus do próprio Deus (e o homem do homem, do que há nele de inumano). Assim, a humanidade se torna consciente de si na figura alienada de Deus, mas na religião humana, Deus torna-se consciente de Si-mesmo (o Espírito é ele próprio a ferida que tenta sarar – o que significa que a ferida é uma ferida auto-infligida; trata-se de uma auto-alienação que reconstitui o Espírito a si mesmo através do seu ‘regresso a si’ por meio de uma imersão a alteridade natural). Então, Cristo é o excesso que proíbe, enfim, o simples reconhecimento do Sujeito coletivo na Substância – a redução do Espírito a uma entidade virtual e objetiva pressuposta pela humanidade.

Mesmo que Deus seja a substância de todo o nosso ser (humano), é impotente sem nós, age apenas em e através de nós – é estabelecido através da nossa atividade como seu pressuposto. É por isso que Cristo é impassível, etéreo, frágil: um simples observador animado de simpatia, mas impotente por si só. O estatuto do ‘Espírito’ não deixa de ser um ‘pressuposto subjetivo’: “só existe na medida em que os sujeitos ajam como se existisse”, ou seja, a substância da causa só é real na medida em que os indivíduos acreditem nela e ajam consequentemente. O estatuto da ‘substância espiritual’ hegeliana é então propriamente virtual – só existe na medida em que os sujeitos agem como se ela existisse: é a ‘substância espiritual’ dos indivíduos que nela se reconhecem e é o solo onde assenta toda a sua existência, o ponto de referência ou qualquer coisa pela qual os indivíduos estão dispostos a darem suas vidas. E a única coisa que realmente existe são esses indivíduos e a sua atividade, pelo que a substância só se atualiza na medida em que os indivíduos ‘acreditam nela’ e, com efeito, agem. Os indivíduos pensam que tratam certa pessoa como um rei porque essa pessoa é o rei em pessoa, quando, na realidade, essa pessoa só é rei porque os outros assim a tratam como tal. Trata-se do ‘performativo hegeliano’, sem dúvida, um rei é ‘em si mesmo’ um pobre indivíduo; sem dúvida, só é rei na medida em que seus súditos o tratam como tal; no entanto, a questão é que a ‘ilusão fetichista’ que sustenta a nossa veneração perante um rei tem enquanto tal uma dimensão performativa – a própria unidade do nosso Estado, ‘encarnada’ no rei, só se atualiza na pessoa do rei.

Reside aí a monstruosidade de Cristo, quando esse pobre indivíduo, esse rei-palhaço, ridículo e escandaloso, andava por aí, era como se o umbigo do mundo, o nó que mantinha ligada e conjunta a textura da realidade (o que Lacan chamava sinthoma), andasse por aí fora do seu lugar: a sua monstruosidade é o preço a pagar pela introdução do Absoluto no meio da representação exterior, que é o meio religioso. Como se o herói Syme de Chesterton revelasse a identidade da Lei e o crime universalizado/absoluto: não só o crime é essencialmente moral como a própria moralidade é essencialmente criminosa, no sentido em que o modo como a moralidade se afirma é já em si mesma um crime: “a propriedade é um roubo”, como costumava dizer-se no século XI. Ou de sua clareza e simplicidade, Agota Kristof, mestra de horror, autora húngara de O Caderno Grande, retira-se o ‘modo de ser’ de um ‘monstro ético’, sem empatia, fazendo o que há a fazer numa insólita coincidência entre espontaneidade cega e distância reflexiva, auxiliando os outros ao mesmo tempo evitando a sua proximidade repulsiva: com mais gente assim, o mundo seria um lugar mais agradável, no qual o sentimento seria substituído por uma paixão mais cruel e fria... Se existe uma ética cristã (?), talvez seja essa, por mais extravagante que o pedido do próximo pareça, tente dar-lhe resposta.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

A Marioneta e o Anão: o Cristianismo entre Perversão e Subversão (Slavoj Zizek)

Se em todas as outras religiões, Deus pede a seus seguidores que lhe permaneçam fiéis, só Cristo lhe pediu que o traíssem para cumprir sua missão. Na sua frase “Pai, porque me abandonaste?”, o próprio Cristo comete aquilo que é o pecado supremo para o cristão: ser abalado na sua fé. Na história aterradora da Paixão está claramente indicado que o autor de todas as coisas conheceu não só o sofrimento extremo como a própria dúvida. No cristianismo, Deus morre não para os homens, mas para Si mesmo. Quando Cristo morre, o que morre com ele é a esperança secreta discernível na frase: “Pai, porque me abandonaste?” O ponto principal do cristianismo é antes o ataque ao núcleo religioso duro que sobrevive mesmo no humanismo, até no stalinismo. Só é possível redimir esse núcleo do cristianismo pelo gesto que consiste em abandonar o escudo da sua organização institucional: ou abandonamos ou conservamos a forma religiosa, mas perdemos a essência. Para poder salvar o seu tesouro, tem de se sacrificar a si mesmo, como Cristo teve de morrer para que o cristianismo pudesse emergir.

Enquanto o olhar do budista está voltado com uma intensidade peculiar para o Interior (a imersão na Verdade): o cristão contempla o Exterior (o encontro traumático com a Verdade) com uma intensidade fulgurante. A rápida industrialização e militarização do Japão nos últimos cento e cinquenta anos, por exemplo, com a sua ética da disciplina e do sacrifício, foi apoiada pela grande maioria dos pensadores zen e hoje se assiste ao fenômeno corrente do zen industrial entre os dirigentes japoneses. A atitude de imersão completa no ‘agora’ da Iluminação imediata – onde o ‘eu’ não existe e toda a distância reflexiva abole-se. No entanto, eu ‘sou o que faço’, desde que isso resulte de uma disciplina absoluta que coincida com uma espontaneidade total, o que legitima perfeitamente a subordinação à máquina social militarista. Verifica-se uma oposição, onde se situa o discurso zen, entre a atitude reflexiva que temos na vida cotidiana (desejamos a vida e tememos a morte, lutamos por prazeres em vez de agirmos diretamente) e a posição daquele que recebeu a iluminação (ao mostrar que a diferença entre a vida e a morte deixou de ter importância). Deste modo, é exatamente nesta oposição que nos redescobrimos na unidade original em que o ‘eu’ não existe e que somos diretamente o nosso ‘ato’. Os mestres militares interpretam a mensagem zen fundamental (a libertação está na perda do ‘eu’, na união imediata com o Vazio primordial) idêntica à fidelidade total dos soldados, com sua obediência mecânica às ordens, na medida em que realizam o seu dever sem consideração pelo ‘eu’ e por seus interesses. Os soldados são levados a marchar de modo a levá-los a uma espécie de subordinação cega e a fazê-los obedecer como marionetes.

Não há reencarnação, há apenas esta vida que é diretamente idêntica à morte, assim o guerreiro já não age como uma pessoa, ele está totalmente dessubjetivado, ou conforme D. T. Suzuki: “no caso do homem que ergueu o sabre por obrigação, não é ele que mata, mas o próprio sabre”. É o próprio sabre que realiza o ato de matar, é o próprio inimigo que se apresenta e se transforma em vítima – eu nada posso fazer a esse respeito, estou reduzido a observador passivo dos meus próprios atos. Qual a diferença entre a legitimação da violência do ‘guerreiro zen’ e a longa tradição ocidental, que vai de Cristo a Che Guevara, apregoa também o recurso à violência, mas como ‘obra do amor’? De um lado, em uma ‘guerra da compaixão’, o verdadeiro guerreiro mata por amor, assim o zen militarista se justifica de maneira contraditória: ‘a guerra é um mal necessário empreendido para engendrar um bem superior – qualquer batalha, seja qual for, deve ser travada para antecipar a paz’. De outro, “se alguém vier a mim, e não aborrecer seu pai e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs, e ainda também a sua própria vida, não pode ser meu discípulo”, palavras de Cristo, às vezes escandalosas, transmitidas por Lucas.

Quando sou fraco e ridículo, por exemplo, quando sou troçado e se riem de mim, assemelho-me a Cristo, que tanto foi objeto de escárnio, afinal Cristo é o supremo louco divino, privado de qualquer majestade e dignidade. A verdadeira intervenção da eternidade no Tempo ocorre quando o senhor do desgoverno, o Rei-Louco, não representa uma suspensão provisória da Ordem, mas começa a funcionar como a figura fundadora de uma Nova Ordem. Só fazemos ‘um’ com Deus a partir do momento em que Deus deixou de fazer ‘um’ consigo próprio, se auto-abandonou, ‘interiorizou’ a distância radical que nos separa d’Ele.

Para uma estrutura como é a da ‘política do conjunto vazio’, Jacques Rancière desenvolveu um conceito, o ‘supranumerário’, isto é, o que faz parte do conjunto, mas que não tem lugar no seu próprio seio. Neste caso, o conflito político designa a tensão entre o corpo social estruturado, onde cada parte tem o seu lugar, e a ‘parte dos sem-parte’ que abala essa ordem, em nome do princípio vazio da universalidade, não deixa de ser deslocada e erra sem trabalho nem residência, sem identidade cultural ou sexual e sem estarem registrados em qualquer lado. O que é perceptível quando G. Agamben afirma que a ‘dimensão messiânica’ não é a universalidade neutra, mas antes a não-coincidência que cada elemento particular pode obter consigo próprio. Se Cristo pode ser considerado o supremo Mann ohne Eigenschaften, o homem sem qualidades, ele é mais do que homem precisamente na medida em que podemos dizer a propósito da sua figura “ecce homo”, na medida em que é um “homem kat’exochen”, ‘como tal’, sem traços distintivos, particulares. Isto quer dizer que Cristo é um ‘universal singular’ (conforme Rancière atribuiu aos que não têm um lugar particular na ordem social e que acabam por representar a humanidade como tal, na sua dimensão universal). Descreve-se, então, o que seria a ‘diferença minimal’: uma diferença entre o conjunto e esse elemento supranumerário que pertence ao conjunto, mas ao qual falta qualquer propriedade diferencial que especificaria o seu lugar no edifício. Isto não quer dizer que Cristo esteja dividido entre uma parte ‘divina’ e outra ‘humana’, acontece que a diferença minimal não é a diferença entre duas partes, mas a diferença entre dois ‘aspectos’ de uma única e mesma identidade: é a diferença de uma entidade consigo própria.

Acontece que a autêntica libertação está muito ligada com a violência – ela é uma violência e, como tal (o gesto violento de rejeitar, estabelecer uma diferença, traçar uma linha de separação), liberta. A liberdade não é um estado de harmonia e equilíbrio, mas um ato violento que perturba esse mesmo equilíbrio. Não se trata de Bhagavad-Guitá, quando o deus Krishna dirige-se a Arjuna – o rei-guerreiro que hesita combater, horrorizado pelos sofrimentos que pode provocar. O amor cristão é uma paixão violenta que visa introduzir uma diferença, uma separação na ordem do ser, que procura privilegiar e elevar um objeto à custa de outros. Os budistas e hinduístas, com sua compaixão generalizada e sua indiferença, diferem do amor cristão que é violência, intolerância.

Georges Bataille e sua exigência ‘em pensar tudo ao ponto de abalar as pessoas’, de ir tão longe quanto possível – ao ponto em que a dor transformar-se em alegria, os contrários coincidirem, o gozo encontrar a morte, a santidade se confundir com o deboche e Deus se revelar uma besta cruel. É essa necessidade de ‘ir até o fim’, até a experiência mesma do impossível, como única forma de ser autêntico, que faz de Bataille o filósofo da paixão pelo Real – o que faz repousar nessa paixão transgressiva, a proibição: Bataille fica preso nesta dialética entre a lei e a sua transgressão, ou seja, a lei proibitiva é um elemento que engendra o desejo transgressivo, afinal nós somos obrigados a instaurar interditos para podermos gozar da sua violação. O que provocaria a angústia, portanto, não deixa de ser a elevação da transgressão ao estatuto de norma ou a ausência de uma proibição que viria apoiar o desejo: o que nos falta é o espaço criado pelo interdito, antes que possamos afirmar nossa singularidade ao resistir às Normas, que nos prescrevem a resistência e a transgressão, ou que nos convidam a ir sempre mais longe.

Trata-se de uma leitura sacrificial, aquela em que o gesto de Cristo surge no interior do horizonte do qual Cristo mesmo desejava triunfar, no interior do horizonte em que morremos por ele, nos identificamos com ele: no interior do horizonte da lei (a troca simbólica, a culpa e a sua expiação, o pecado e o preço a pagar por ele) – a morte de Cristo só pode surgir como a afirmação absoluta da lei, como a elevação da Lei ao estatuto de instância todo-poderosa do superego que nos esmaga, anos, seus sujeitos, com uma culpabilidade que nunca poderemos pagar. Uma Lei Infinita, de uma lei que, de certo modo, ultrapassa-se a si mesma, de uma Lei que já não impõe proibições ou injunções específicas e determinadas (faz isso, não faça aquilo...), mas que repete simplesmente uma Interdição vazia, não... , de uma Lei em que tudo é simultaneamente proibido e autorizado (ou seja, obrigatório). Esta inversão, que transforma as proibições em ordens, deve ser compreendida na medida em que a própria lei engendra o desejo de violar a si mesma. Na mesma lógica, contrariamente às proibições precisas da lei, devíamos saber ou adivinhar o que não se deve fazer, de modo que estivéssemos sempre na posição impossível de sermos sempre, e a priori, suspeitos de infringir uma proibição. Aos olhos dessa Lei ‘louca’, já somos sempre culpados, sem mesmo saber exatamente de quê (?): esta Lei é a meta-lei, a Lei do estado de emergência, onde a ordem do direito positivo é suspensa e a Lei ‘pura’ é uma forma da ordem/interdição ‘como tal’: o enunciado de uma injunção privada de qualquer conteúdo.

Trata-se de reconhecer o efeito da Lei incondicional kafkiana, que não pode ser executada como potencialidade pura, nem sequer traduzida em normas positivas, mas que permanece uma injunção abstrata que faz de todos nós culpados precisamente por não sabermos do que somos culpados. Deveríamos correlacionar a ‘culpabilidade incondicional do superego’ e a ‘misericórdia do amor’ – duas figuras do excesso: a misericórdia é obrigatoriamente algo que temos de dispensar – a misericórdia como excesso desnecessário que, como tal, tem de ocorrer. O problema da Lei não é o fato de ela não conter amor suficiente, mas antes de o conter demasiado amor, o que significa que a vida social me parece dominada por uma Lei imposta do exterior, na qual sou incapaz de me reconhecer, precisamente na medida em que continuo agarrado ao imediatismo do amor que se sente ameaçado pelo reino da Lei: como devemos realizar a Lei desembaraçando-nos da mácula patológica do amor? Quando há oposição entre a Lei e o Amor, do amor que ultrapassa e elimina a Lei – o excesso da própria Lei do amor para lá da Lei. Este será o caso do ‘amor paulino’, como reverso da Lei obscena do superego, que não pode ser executada em regras particulares? Agamben concentra-se na posição do “como-se-não”: Paulo nos diz “obedecei às leis como se não lhe obedecêsseis”, isto significa que deveríamos suspender nosso obsceno investimento libidinal na Lei, investimento na base do qual a Lei engendra e solicita a sua própria transgressão. Observa-se, enfim, uma dupla articulação entre o “haverá amor para lá da Lei?” e da “dialética paulina da Lei e sua transgressão”.

O ‘julgamento negativo de Paulo’ é desprovido de ambiguidade: “por isso, nenhuma carne será justificada diante dele pelas obras da lei, porque pela lei vem o conhecimento do pecado”. “Ora, o aguilhão da morte é o pecado, e a força do pecado é a lei”, por isso, “Cristo nos resgatou da maldição da lei”. Portanto, quando Paulo diz que “a letra mata e o espírito vivifica”, esta letra é precisamente a letra da lei. Segundo a leitura habitual de Paulo, Deus deu a Lei aos homens para lhes fazer tomar consciência dos seus pecados, para tornar-lhes ainda mais pecadores e levá-los a compreender que precisam de salvação, que só poderá vir da misericórdia divina. De outra forma, a Lei judia já é fundada num gesto de ‘desprendimento’: através da referência à Lei, os judeus na diáspora mantêm certa distância relativamente à sociedade no seio da qual vivem. A Lei judia introduz outra dimensão, a da justiça divina, que é de uma heterogeneidade radical em relação à lei social: a justiça judia é a visão do estágio final em que serão anuladas todas as injustiças infligidas aos indivíduos. Quando os judeus ‘se desligam’ e mantêm certa distância relativamente à sociedade em que vivem, os judeus são ‘desenraizados’, a sua Lei torna-se abstrata e ela os extrapola da Substância social.

Não se trata de uma distância entre Deus e o homem na frase: “pai, porque me abandonaste?”, mas de uma cisão interna ao próprio Deus. Essas palavras de Cristo não deixam de se parecer com uma queixa de criança que, depois de ter acreditado no poder absoluto do pai, descobre aterrorizada que o pai não pode ajudá-la: Deus não é justo nem injusto, ele torna-se simplesmente impotente. Se o cristianismo é a religião da Revelação é porque nele tudo é revelado, mas o que é revelado no cristianismo não é só todo o conteúdo, mais precisamente o fato de não haver nada, nenhum segredo a revelar para lá do conteúdo: o que Deus revela não é o seu poder escondido, mas simplesmente a sua impotência como tal. De tal sorte que o segredo que os judeus permanecem fiéis é ao horror da impotência divina – e é esse segredo que o cristianismo ‘revela’. Por isso, o cristianismo só pôde aparecer depois do judaísmo: ele revela o horror com que os judeus foram os primeiros a ser confrontados.

Relativamente ao Evento (a passagem do judaísmo ao cristianismo) está mais bem exemplificado com o estatuto do Messias: em contraste com a atitude dos judeus, que se encontram na espera messiânica, os cristãos consideram que o Messias, tão aguardado, não só já chegou como já estamos redimidos. Com a fórmula “O Messias chegou” mostra-se que a Revelação é um risco tremendo, que Deus se arriscou a pôr tudo em jogo, comprometeu-se com a “chegada de Cristo”, através da qual somos formalmente redimidos, subsumidos sob a redenção e, principalmente, que nós, homens, não podemos repousar-nos contando com a ajuda de Deus: pelo contrário, somos nós que devemos ajudar a Deus. Deus é, portanto, um observador trágico e impotente, para ele, a única intervenção possível na história era, precisamente, ‘cair nela’, aparecer nela sob a forma do Filho. O judaísmo reduz a promessa de uma ‘Outra Vida’ à Alteridade pura, à promessa messiânica que nunca se tornará completamente presente e atualizada, ao passo que o cristianismo, o Messias já está cá, já chegou, o evento final já aconteceu e, não obstante, a distância (como horizonte sempre por vir, a distância que sustinha a promessa messiânica) permanece...

domingo, 14 de fevereiro de 2010

História da Sexualidade [I] A Vontade de Saber (Michel Foucault)

A repressão funciona, de certo, como condenação ao desaparecimento, mas também como injunção ao silêncio – afirmação da inexistência e, com efeito, constatação de que, em tudo isso, não há nada para dizer nem ver tampouco para saber. Assim marcharia, com a sua lógica capenga, a hipocrisia de nossas sociedades burguesas? Explicam-nos que, se a repressão foi, desde a época clássica, o modo fundamental de ligação entre poder, saber e sexualidade isso só se pode liberar a um preço considerável. Há alguma razão que torne gratificante a formulação das relações de poder e sexo por intermédio da repressão? Há algumas décadas que nós só falamos de sexo fazendo pose, conscientes de se desafiar a ordem estabelecida, com tom de voz que demonstra o quanto isso é subversivo. Enfim, levantam-se pelo menos três dúvidas sobre essa ‘hipótese repressiva’: a repressão do sexo seria mesmo uma evidência histórica? Houve alguma acentuação ou instauração de um regime de repressão ao sexo no século XIX? A repressão veio a se cruzar com um mecanismo de poder, que até então funcionaria sem contestação, para barrar-lhe a via? Acontece que, a partir do fim do século XVI, a ‘colocação do sexo em discurso’, em vez de sofrer um processo de restrição, foi, ao contrário, submetida a um mecanismo de crescente incitação, assim como as técnicas de poder exercidas sobre o sexo não obedeceram a um princípio de seleção rigorosa, mas de disseminação e implantação das sexualidades polimorfas.

Considere-se, portanto, esses três últimos séculos em suas contínuas transformações, as coisas aparecem bem diferentes: em torno e através do sexo houve uma imensa explosão discursiva, talvez tenha havido uma depuração bastante clara do vocabulário autorizado. Fixando cada qual à sua maneira a linha divisória entre o lícito e o ilícito, três grandes códigos explícitos se encarregavam das práticas sexuais até o final do século XVIII: o direito canônico, a pastoral cristã e a lei civil – romper as leis do matrimônio e procurar prazeres estranhos merecia, de qualquer modo, condenação. Os discursos sobre o sexo (específicos e diferentes tanto pela forma quanto pelo objeto) então não cessaram de proliferar. Trata-se de uma fermentação discursiva que se acelerou a partir do século XVIII, não tanto a multiplicação dos discursos provavelmente mais ‘ilícitos’, como zombaria aos novos pudores; mas a multiplicação dos discursos sobre o sexo no próprio campo do exercício do poder (incitação institucional de se falar do sexo e a falar cada vez mais). Este projeto de uma ‘colocação do sexo em discurso’ formara-se há muito tempo, numa tradição ascética e monástica. Considera-se a evolução da pastoral católica e do sacramento da confissão – onde ‘tudo devia ser dito’: trata-se mais de uma evolução que fez da carne, a origem de todos os pecados, ao mesmo tempo deslocou o momento mais importante, do ato em si, para a inquietação do desejo. O que se interrogava era sobre a sexualidade das crianças, a dos loucos e criminosos; é do prazer dos que não amam o outro sexo; os devaneios, as obsessões, as pequenas manias ou as grandes raivas.

Não obstante, através e tais discursos multiplicaram-se as condenações judiciárias das perversões menores, anexou-se a irregularidade sexual à doença mental; da infância à velhice foi definida uma norma do desenvolvimento sexual e foram cuidadosamente caracterizados todos os desvios possíveis; organizaram-se controles pedagógicos e tratamentos médicos; em torno das mínimas fantasias, os moralistas e os médicos trouxeram à baila todo o vocabulário enfático da abominação. Uma série de pequenos perversos desfilou no século XIX e foi entomologizada por seus psiquiatras: os exibicionistas de Lasègue; os fetichistas de Binet; os zoófilos e zooerastas de Krafft-Ebing; os automonossexualistas de Rohdeler; haverá os mixoscopófilos, os ginecomastos, os presbiófilos, os invertidos sexoestéticos e as mulheres disparêunicas. Esses belos nomes de heresias precisavam mais do que as velhas interdições, esta forma de poder exigia para se exercer tanto presenças constantes, atentas e curiosas, quanto proximidades, mediante exames e observações insistentes, requerendo um intercâmbio de discursos através de perguntas que extorquem confissões e de confidências que superam a inquisição.

O poder que toma a sexualidade a seu cargo, que visa açambarcar o corpo sexual, acaba por assumir como dever: roçar os corpos e os acariciar com os olhos, assim como eletrizar algumas regiões e intensificar superfícies, até mesmo dramatizar momentos conturbados. O poder passa a funcionar como um mecanismo de apelação que atrai e extrai essas estranhezas pelas quais se desvela; assim um prazer se difunde através do poder cerceador, que fixa o prazer que acaba por desvendar. Prazer e poder, por um lado, prazer em exercer um poder que questiona, fiscaliza, espreita, espia, investiga, apalpa e revela, por outro lado, prazer que surte em escapar e fugir deste poder, enganá-lo ou travesti-lo. Instituições escolares e psiquiátricas, com suas populações numerosas e hierarquizadas, organizações espaciais e sistema de fiscalização constituem, junto com a ‘família’, outra forma de distribuir o jogo dos poderes e prazeres, mas também indicam regiões de alta saturação sexual com espaços ou ritos privilegiados, como a sala de aula, o dormitório, a visita ou a consulta. Poder e prazer não se anulam nem voltam um contra o outro, seguem-se e se entrelaçam através de mecanismos complexos e positivos, de excitação e de incitação: nunca tantos centros de poder, jamais tanta atenção manifesta e prolixa, nem tantos contatos e vínculos circulares, nunca antes tantos focos onde estimular a intensidade dos prazeres e a obstinação dos poderes para se disseminarem mais além.

Parece que até Freud, o discurso sobre o sexo, dos teóricos e dos cientistas, não teria feito mais do que ocultar continuamente o que dele se falava: era uma ciência feita de esquivas, por ser incapaz ou por se recusar em falar do próprio sexo, referia-se, sobretudo, às aberrações, perversões, extravagâncias excepcionais, anulações patológicas, exasperações mórbidas. O sexo, ao longo do século XIX, parece ter se inscrito em dois registros de saber bem distintos: uma biologia da reprodução e uma medicina do sexo. Até o final do século XIX, além de dúbios prazeres, arrogava-se o poder sobre os imperativos da higiene, somando-se os velhos temores do ‘mal venéreo’ aos novos discursos sobre a assepsia. Em suma, os grandes mitos evolucionistas se expandiram para as instituições modernas de saúde pública pretendendo assegurar-lhes tanto o ‘vigor físico’ como a ‘pureza moral’ do corpo social, deste modo, prometia-se eliminar os portadores de taras, os degenerados e as populações abastardadas – em nome de uma urgência biológica e histórica, justificavam-se os racismos oficiais, então iminentes. Deve-se, portanto, considerar não o limiar de uma nova racionalidade, que a descoberta de Freud ou de outro tenha marcado, mas a formação progressiva desse “jogo da verdade e do sexo”, que o século XIX nos legou.

Existem, historicamente, dois grandes procedimentos para reproduzir a verdade do sexo. Por um lado as sociedades (China, Japão, Índia, Roma, árabe-muçulmanas) que se dotaram de uma ars erotica: a verdade é extraída do próprio prazer, encarado como prática e recolhido na experiência; ele deve ser reconhecido como prazer, segundo sua intensidade, sua qualidade específica, sua duração, suas reverberações no corpo e na alma. Este saber deve recair sobre a própria prática sexual. Nossas civilizações à primeira vista não possuem uma ars erotica. Em compensação parece ser a única a praticar uma scientia sexualis. Ou melhor, só a nossa sociedade desenvolveu, ao longo dos séculos, para dizer a verdade do sexo, procedimentos que se ordenam em função de uma forma de poder-saber rigorosamente oposta à arte das iniciações e ao segredo magistral – a confissão. A confissão é um ritual de discurso onde o sujeito que fala coincide com o sujeito do enunciado, além de se desenrolar numa relação de poder que se baseia na presença de um parceiro, que não é simplesmente um interlocutor, mas a própria instância que requer a confissão: impõe-na, avalia-a e intervém para julgar, punir, perdoar, consolar, reconciliar. A confissão é também, pois um ritual onde a verdade é autenticada pelas próprias resistências que se teve de suprimir para que ela pudesse se manifestar, enfim, trata-se de um ritual onde a enunciação em si produz em quem articular modificações intrínsecas: inocenta-o, resgata-o, purifica-o, livra-o de suas faltas. Se o homem ocidental tornou-se um animal confidente isso ocorreu porque a confissão da verdade se inscreveu no cerne dos procedimentos de individualização do poder, mas principalmente porque a confissão não era para ser espontânea ou imposta por alguns imperativos interiores, era para ser extorquida: desencadeava-se na alma ou era arrancada do corpo.

Dizendo poder, não significa que o ‘Poder’ seja concebido como um conjunto de instituições e aparelhos garantidores da sujeição dos cidadãos em um Estado determinado. Em primeiro lugar, o poder não se adquire nem se possui, mas se exerce a partir de inúmeros pontos e em meio a relações desiguais e móveis. Em segundo lugar, as relações de poder não são exteriores, mas imanentes e possuem lá onde atuam um papel produtor. Em terceiro lugar, o poder não vem de baixo, as correlações de forças são múltiplas e são formadas na mesma medida em que atuam nos aparelhos de produção, nas fábricas, nos grupos restritos e instituições, assim podem formar uma linha de força geral ao atravessar os afrontamentos locais e os ligando entre si. Em quarto lugar, lá onde há poder há resistência, afirma-se que estamos necessariamente ‘no’ poder e que dele nunca se escapa. Daí o caráter relacional das relações de poder: elas não podem existir senão em relação a uma multiplicidade de focos de resistência que representam o papel de alvo, de apoio, saliência que permite a preensão – esses pontos de resistência estão presentes a toda a rede de poder. Enfim, as relações de poder são distribuídas de modo irregular: os pontos, os nós, os focos de resistência disseminam-se com mais ou menos densidade no tempo ou no espaço, às vezes provocando o levante de grupos ou indivíduos de maneira definitiva, inflamando certos pontos nos corpos, certos momentos da vida, certos tipos de comportamento.

Parte-se do que se pode chamar de ‘focos locais’ de poder-saber, por exemplo, as relações que se estabelecem entre penitente e confessor, ou fiel e diretor de consciência e, sob o signo da carne, diferentes formas de discursos (exame de si mesmo, interrogatórios, confissões, interpretações, entrevistas) veiculam formas de sujeição e de esquemas de conhecimento. Da mesma forma que o corpo da criança vigiada e cercada em seu berço, leito ou quarto, por toda uma ronda de parentes, babás, serviçais, pedagogos e médicos, todos atentos às mínimas manifestações de seu sexo, constitui, a partir do século XIX, outro ‘foco local’ de poder-saber. Nenhum ‘foco local’, nenhum esquema de transformação poderia funcionar se, através de uma série de encadeamentos sucessivos, não se inserisse em uma ‘estratégia global’. De todo forma, o dispositivo familiar, no que tinha de mais insular e heteromorfo, pôde servir de suporte às grandes manobras pelo controle da natalidade, pelas incitações populacionais, pela medicalização do sexo e a psiquiatrização de suas formas não genitais. Não existe uma estratégia única, global, válida para toda a sociedade e uniformemente referente a todas as manifestações do sexo, mas parece possível distinguir, a partir do século XVIII, quatro conjuntos estratégicos: (1) a histerização do corpo da mulher; (2) a pedagogização do sexo da criança; (3) socialização das condutas de procriação; (4) a psiquiatrização do prazer perverso. Se a preocupação com o sexo aumentou ao longo do século XIX, quatro figuras se esboçaram como objetos privilegiados de saber e alvos ou pontos de fixação de empreendimentos do poder: a mulher histérica, a criança masturbadora, o casal malthusiano e o adulto perverso, cada uma dessas figuras tornou-se correlativa a uma dessas estratégias, que percorreram ou utilizaram o sexo das crianças, dos homens e das mulheres.

Deve-se ver a burguesia, a partir da metade do século XVIII, empenhada em se atribuir uma sexualidade e constituir para si, a partir dela, um corpo específico – um corpo de ‘classe’ com uma saúde, uma higiene, uma descendência, uma raça. Foi na forma do sangue, isto é, da antiguidade das ascendências e do valor das alianças e da saúde de seu organismo, que a burguesia olhou para assumir um ‘corpo’: o sangue da burguesia foi o seu próprio sexo. A preocupação da burguesia com o seu legado genealógico não deixou de ocorrer sob influência de alguns preceitos biológicos, médicos, eugênicos. Trata-se de uma espécie de racismo embrionário, dinâmico e em expansão, tendo que esperar até meados do século XIX para dar os frutos que chegamos a assistir com a eclosão das primeiras guerras do século XX. O sangue absorveu o sexo, enquanto os primeiros sonhos de aperfeiçoamento da espécie deslocaram todo o problema do sangue para uma gestão bastante coercitiva do sexo. Ocorre que, a partir da segunda metade do século XIX, a temática do sangue foi chamada a sustentar o tipo de poder político que se exerce através dos dispositivos de sexualidade. O racismo, em sua forma estatal, moderna, biologizante, se forma neste ponto: toda uma política do povoamento, da família, do casamento, da educação, da hierarquização social, da propriedade e uma longa série de intervenções permanentes ao nível dos corpos, das condutas, da saúde, da vida cotidiana, receberam justificação em função de proteger a mítica pureza do sangue e fazer triunfar a raça. Para M. Foucault, “o nazismo foi, sem dúvida, a combinação mais ingênua e mais ardilosa dos fantasmas do sangue com os paroxismos de um poder disciplinar”. Trata-se de uma sociedade disciplinar deste tipo, capaz de suportar uma ordenação eugênica sob uma estatização ilimitada e acompanhada pela exaltação onírica de um sangue superior, mas que implicava necessariamente o genocídio sistemático dos outros e o risco de expor a si mesmo a um sacrifício total.

Direito de morte, poder sobre a vida, com efeito, surtem do golpe do sangue sobre o sexo – um genocídio justificado por um surto em ser uma raça superior? O direito de vida e morte sempre esteve condicionado à defesa de um soberano e à sua sobrevivência. O direito de vida e morte é um direito assimétrico: o soberano só exerce seu direito sobre a vida na medida em que exerce seu poder de matar ou contendo-o. Formula-se uma espécie de direito de causar a morte e de deixar viver. Este era um tipo de direito de apreensão das coisas, do tempo, dos corpos e da vida – culminava com o privilégio de se apoderar da vida para depois suprimi-la. Esse é o formidável poder de morte, onde os massacres se tornaram vitais, como gestores da vida e da sobrevivência de corpos e raças que tantos regimes puderam travar tantas guerras, causando a morte de tantos homens, sob o poder de expor toda uma população à morte geral. Pode-se dizer que esse velho direito de causar a morte e deixar viver foi substituído por um poder de causar a vida ou devolver à morte. A velha potência da morte em que se simbolizava o poder soberano é agora recoberta pela administração dos corpos (anátomo-política do corpo humano e suas disciplinas) e pela gestão calculista da vida (biopolítica da população em uma série de intervenções e controles reguladores). Nesse pano de fundo, compreende-se, pois a importância assumida pelo sexo como foco de disputa política, se não é ele afinal que está na articulação dos dois eixos ao longo dos quais se desenvolveu toda a ‘tecnologia política da vida’: de um lado, faz parte das disciplinas do corpo (adestramento, intensificação e distribuição das forças, ajustamento e economia de energia) e, do outro, o sexo pertence à regulação das populações, como na reprodução da espécie, no planejamento familiar, no dispêndio e por todos os efeitos globais que induz. O sexo é, portanto, acesso à vida corpo e, ao mesmo tempo, à vida da espécie.

A Parte Obscura de Nós Mesmos: uma História dos Perversos (Elisabeth Roudinesco)

Demarca-se o solo onde fecunda o povo dos perversos... Onde começa a perversão? Eis uma questão que este livro tenta responder, onde atesta a história incessantemente reinventada dos grandes ‘criminosos perversos’ (Gilles de Rais [Barba Azul]; George Chapman [Jack, o Estripador]; Erzebet Bathory [a Condessa de Sangue]; Peter Kürten [o Vampiro de Düsseldorf]): infindavelmente representados em romances, contos, filmes ou monografias, essas ‘criaturas malditas’ suscitam, por seu status estranho, um fascínio recorrente. O desenrolar dessa história pôde ser contado através de cinco capítulos abordados sucessivamente: (1) a época medieval – com Gilles de Rais, os santos místicos, os flagelantes; (2) o século XVIII – em torno da vida e da obra do marquês de Sade; (3) o século XIX – o da medicina mental, com sua descrição das perversões sexuais e sua obsessão pela criança masturbadora, pelo adulto perverso e pela mulher histérica; (4) por fim, o século XX – em que se opera, com o nazismo, a metamorfose mais abjeta da perversão (com ênfase nas confissões de R. Höss a respeito de Auschwitz); (5) em nossos dias – a perversão acaba por qualificar todo um distúrbio de identidade, um estado de delinquência, um desvio, sem que com isso cesse de se desdobrar em múltiplas facetas, entre outras, zoofilia, pedofilia, terrorismo e transexualidade.

Quando os ‘grandes rituais sacrificiais’ – da flagelação à devoração de excrementos – foram adotados por alguns místicos tornaram-se a prova de uma ‘santa exaltação’: aniquilar o corpo físico ou expor-se aos suplícios da carne tornou-se uma regra dessa estranha vontade de metamorfose, que alguns diziam ser a única capaz de efetuar a passagem do abjeto ao sublime. De um lado, os santos – sob o impulso de uma interpretação cristã do livro de Jó – tiveram como dever primordial destruir neles toda forma de desejo de fornicação. De outro, as santas que se condenaram a uma esterilização radical de seus ventres doravante pútridos, tanto pela incorporação de dejeções quanto pela exibição de seus corpos torturados. A santa mártir, porque nascera mulher, era vista como impura e devia purificar-se na metamorfose de um sangue, destinado à fecundidade, a um sangue ofertado a Cristo.

[1] Fiel servo de Deus e herói de uma tradição semítica, Jó vivia rico e feliz, mas Deus permitiu que Satã botasse sua fidelidade à prova. Subitamente perdeu bens e filhos, Jó deitava no meio dos excrementos, coçando suas chagas e lastimando a injustiça de sua desgraça. Três amigos sustentavam, no entanto, que seu sofrimento era necessariamente decorrências de seus pecados: ele gritava por inocência sem compreender por que Deus castigava um inocente – uma vez havida a queixa, sem lhe responder mais nada, Deus lhe restituiu fortuna e saúde. Nesta perspectiva, a salvação do homem reside na aceitação de um sofrimento incondicional, razão pela qual a experiência de Jó ter sido capaz de abrir caminho para as práticas dos mártires cristãos, sobretudo das santas que farão da destruição do corpo carnal uma arte de viver e das práticas mais degradantes a expressão do mais consumado heroísmo.

[2] Dizia-se ser tão suscetível que a visão de menos impureza sobressaltava-lhe o coração, Marguerite-Marie Alacoque (1647-90), uma visitandina francesa, conhecida por seus grandes êxtases místicos que viveu, sobretudo no convento de Paray-le-Monial. Mas quando Jesus chamou-a à ordem, ela só conseguiu limpar o vômito de uma doente transformando-o em sua comida. Mais tarde, sorveu as matérias fecais de uma disentérica declarando que aquele contato bucal suscitava nela visões de Cristo mantendo-a com a boca colada em sua chaga; Catarina de Siena (1347-80), após ter se rebelado contra a família, ingressou na religião nas irmãs penitentes de São Domingos. Cultivou os êxtases e as mortificações e foi canonizada em 1461. Catarina de Siena afirmou um dia não ter comido nada tão delicioso quanto o pus dos seios de uma cancerosa; A história da santa, Liduína de Schiedam (1380-1433), no contexto histórico do fim do século XIV e principio do XV, retraça o itinerário dessa mística holandesa, que quis salvar a alma da Igreja e de seus fiéis transformando seu corpo num monturo. Horrorizada com a possibilidade de se casar, desde os 15 anos, soçobrou na doença. Durante 38 anos levou a vida de uma grabatária, impondo a seu corpo terríveis sofrimentos: gangrena, epilepsia, peste, fratura dos membros. Como Jó, Catarina viveu numa tábua coberta de esterco, amarrada a uma correia de crina que fazia de sua pele uma chaga purulenta.

Nascido em 1404, Gilles de Rais tornou-se um criminoso trágico, mas pertencia à família nobre e muito rica – só que o mundo em que ele viveu (o da Guerra dos Cem Anos) achava-se entregue à pilhagem: transformando todos em predadores, os herdeiros da antiga cavalaria acabaram por ter gosto pela crueldade e pelo assassinato. Gilles de Rais foi iniciado ao crime aos 11 anos. Aos 16 anos, Gilles casou-se com Catarina de Thouars, neta da segunda mulher de seu avô. Em 1424, Gilles apoderou-se da fortuna de seu avô e pensou em dilapidá-la em despesas feéricas e bebedeiras desvairadas. Contrariando todas as expectativas, o rapaz revelou-se um brilhante líder guerreiro, abandonando então o crime para se pôr a serviço de uma personalidade oposta a sua: Joana d’Arc. Em Orléans, além de Tourelles, em Jargeau depois em Patay, Gilles de Rais guerreou bravamente, até que em 17 de julho de 1429, trouxe a abadia de Saint-Remi a ampola contendo o ‘Sagrado Crisma’, necessário a unção real. Depois, ao lado de Joana, assistiu em lágrimas à sagração de Reims. Naquele dia foi nomeado marechal da França: Gilles de Rais foi um soberbo líder guerreiro, se Joana d’Arc, no momento exato, quis tê-lo ao seu lado, foi porque sabia disso. Julgada culpada de um crime perverso por se travestir em homem, apontada como herética, relapsa, idólatra, Joana foi acusada, a despeito de sua virgindade, de envolvimento com o Diabo. Em meio às chamas, Joana entregou-se a Jesus, mas vinte anos mais tarde, em 7 de julho de 1456, ela foi canonizada pelo papa Bento XV em 1920. Depois da morte de seu avô, em novembro de 1432, Gilles de Rais embrenhou-se no crime, sequestrava crianças das famílias camponesas em Champtocé, Tiffauges, Machecoul e lhes impunha as piores sevícias (retalhava os corpos, arrancava os órgãos, corações, dando-se o trabalho de sodomizá-las na hora de sua agonia). Somente em 1440 Gilles de Rais foi levado ao banco dos réus, mas negou todas as acusações, passando às confissões, ele declarou que seus crimes foram cometidos por iniciativa própria, conforme a inclinação de seus sentidos, sem que seus comparsas tivessem a menor participação neles. A princípio excomungado, Gilles de Rais foi reintegrado ao seio da Igreja, depois enforcado e queimado. Gilles perverteu não apenas a ordem da Lei, mas a própria ordem da lei do crime: ao cometer crimes sexuais (crimes perversos, vãos, ‘contra a natureza’ e por puro deleite) que não visavam nem destruir um inimigo nem eliminar um adversário, apenas aniquilar o humano no homem – Gilles tornou-se o agente de seu próprio extermínio.

Sade nunca descambou para o crime radical, uma vez que foi antes com a escrita do que com atos que realizou a sua utopia de inversão da Lei. Ao dar a sociedade um fundamento que inverta a Lei, Sade pretendeu-se o grande domesticador de todas as perversões e distorceu o Iluminismo numa ‘filosofia do crime’ e a libertinagem numa dança da morte – como fundamento para a República, ele preconizou uma tríplice inversão da lei que rege as sociedades humanas: obrigação da sodomia, do incesto e do crime. Segundo esse sistema os homens não deviam ser excluídos da possessão das mulheres, mas nenhum poderia ter uma em particular, daí decorre que as mulheres deviam não apenas se prostituir, como não aspirar senão à prostituição vida afora. Um modelo social fundado na generalização da perversão foi proposto por Sade: ‘para conciliar o incesto, o adultério, a sodomia e o sacrilégio’, dizia ele, ‘o pai deve enrabar a sua filha casada com uma hóstia’. Como ‘príncipe dos perversos’, ele ficou confinado durante 28 anos sob três regimes diferentes: Vincennes; Charenton, passando pela Bastilha. Instalado na casa da sogra em 1763, Sade infligiu toda sorte de baixezas, surras e injúrias à sua esposa, que se curvou às exigências maternas: condenado à morte por crime, blasfêmia, sodomia, envenenamento, Sade foi preso a pedido de sua sogra, a princípio no torreão de Vincennes, em 1777, depois na Bastilha em 1784, mas foi transferido para o hospício de Charenton em 2 de julho de 1789. Em 1790, Sade pôde sair do hospício de Charenton justamente no momento em que sua esposa tomava a decisão de se divorciar. Em razão de seu ateísmo e por ser autor suspeito de Justine, Sade foi condenado à morte em março de 1794, mas foi preciso detectar tanto no homem Sade como também em sua obra, o vício capaz de permitir confiná-lo à acusação de ser louco. A partir do primeiro quartel do século XIX, o nome de Sade repercutiu como um paradigma no cerne da definição de perversão, o que atesta a criação do neologismo ‘sadismo’ em 1838.

Todas as práticas sexuais foram laicizadas em 1810, com o Código Penal francês, nenhuma delas constitui mais objeto de delito ou crime desde que exercidas em privado e consentidas por parceiros adultos. Em compensação, na literatura médica do século XIX, sob a sexologia e a psiquiatria emergentes, tornou-se perverso e, portanto, patológico, aquele que escolhe como objeto o mesmo que ele (o homossexual), ou ainda a parte do corpo ou o desejo de um corpo que remete ao seu próprio (o fetichista, o coprófilo); aqueles que possuem ou penetram o corpo do outro sem consentimento (o estuprador, o pedófilo); os que destroem ou devoram ritualmente seus corpos ou o de um outro (sádico, masoquista, antropófago, necrófago, necrófilo, escarificador, mutiladores); os que travestem sua identidade e seu corpo (travesti); os que exibem ou apreendem o corpo como objeto de prazer (exibicionismo, voyerismo, narcísico, auto-erotismo); aquele que desafia a barreira das espécies (o zoófilo); que nega as leis da filiação e da consanguinidade (incesto); que contraria a lei da conservação da espécie (o onanista). No vasto catálogo das perversões, a criança, como uma criatura peculiarmente sexuada, foi vista por sua ‘perversão polimorfa’ ou por seu ‘auto-erotismo ilimitado’: embora não pudessem ser declaradas loucas, as crianças podiam muito bem ser designadas como perversas. Na Europa de 1850 a 1900, toda uma perseguição médica ocorreu em direção da criança masturbadora e da mulher histérica que tinham em comum preferir a sexualidade auto-erótica a uma sexualidade procriadora. A mulher histeria, o adulto homossexual e a criança masturbadora serviram de suporte a todo tipo de fantasias centradas no terror de uma possível perversão da família e da ordem procriadora.

Ao longo da segunda metade do século XIX, as mais altas autoridades da ciência médica alemã inventaram uma ‘arte de governar’ os povos (biocracia e polícia dos corpos) não com o auxílio de uma política assentada numa filosofia da história, mas por meio das ciências da vida, das ciências ditas humanas, na época, vinculadas à biologia, onde os termos ‘higiene racial’ e ‘degenerescência’ encontraram lugar no discursivo político. A partir de 1920, numa Alemanha vencida, os herdeiros dessa biocracia reivindicaram a aplicação deste programa, incluindo o da eutanásia e o da esterilização. ‘Programa Perverso’, em que a ‘higiene racial’ repousava primordialmente na pretensão ao controle totalizante da sexualidade humana, em cujo programa o ‘genocídio’ tomou um lugar próprio – a destruição física de uma população considerada indesejável em virtude de seu pertencimento a uma raça, espécie ou grupo. Nesse ‘sistema genocida’ correu-se o risco de reproduzir uma espécie de ‘robôs esquizóides assassinos’: Höss, Eichmann, Himmler e Göring, além de serem genocidas e dignatários nazistas, tiveram como ponto comum renegar os atos que cometiam, ou negavam seus crimes (extermínio, torturas, profanações de cadáveres, execuções, experimentações médicas, etc.) ou refutavam a sua existência, como se ‘obedecer a ordens’ contribuísse para inocentá-los. Sistema perverso, o nazismo teve por objetivo eliminar o que ele apontava como ‘povo de perversos’, os judeus, julgados como o mais perverso dentre os demais.

Os místicos haviam alimentado a fantasia de aniquilar o corpo para oferecer a Deus o espetáculo da sua subjugação libertadora. Os libertinos e Sade tinham, contra Deus, promoveram o corpo como único lugar do gozo. Os sexólogos haviam se inclinados a domesticar seus prazeres e seus furores criando um ‘catálogo das perversões’. Os nazistas fizeram da ciência um instrumento de um gozo do mal, permitindo-lhes reduzir a coletividade dos homens a dejetos contabilizados e coisificados. Em 1987, sem a menor a discussão teórica, o termo ‘perversão’ desapareceu do léxico médico-psiquiátrico para ser substituído por ‘parafilia’. Por Richard Von Krafft-Ebbing, em seu Psychopatia sexualis, as descrições das perversões sexuais efetuaram-se sob a imagem do grotesco, do obscuro, do monstruoso, da compaixão. Se Freud reabilitou a ideia segunda a qual a perversão é necessária à civilização, por constituir a parte maldita das sociedades e a parte obscura de nós mesmos. Como um termo fora do léxico médico ou não, a perversão é exclusivamente humana, ou seja: “o homem”, dizia Darwin, “é a única criatura na qual podemos reconhecer a faculdade moral... E isso constitui a maior de todas as distinções que se pode fazer entre os animais e os homens”.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

A Visão em Paralaxe (Slavoj Zizek) - I

A filosofia surge nos interstícios de comunidades diferentes, como se houvesse um espaço frágil de troca e de circulação entre elas, espaço onde falta qualquer espécie de identidade positiva. Se não fosse da ‘dúvida fundamental’ de Descartes exatamente a experiência multicultural de que a nossa própria tradição ocidental não é melhor que a tradição cultural dos outros, tida como excêntrica. Parece que a luta dos contrários, que rege o materialismo dialético, foi colonizada ou ofuscada pela noção de polaridade dos contrários disseminada pela Nova Era – neste caso, o primeiro passo dado foi o de substituir essa questão da polari-dade dos opostos pelo conceito de ‘tensão’, lacuna, não-coincidência inerente ao próprio Um. Este livro não deixa de se basear na estratégia político-filosófica de chamar essa ‘lacuna’ ou ‘tensão’, que visa a separar o Um, pela palavra ‘paralaxe’. Deste modo, o materialismo será forçado a perceber uma ‘torção reflexiva’, por meio da qual eu mesmo me incluirei em toda imagem constituída por mim: neste caso, trata-se do materialismo desde que isso signifique que a realidade que vejo, nunca será ‘inteira’, porque ela sempre vai conter uma mancha, um ponto obscuro, que indicará minha presença, minha inclusão nela.

A mudança é puramente paraláctica, ou seja, trata-se menos de uma mudança do objeto do que uma mu-dança de nossa atitude perante o objeto visto. Ressaltam-se dois tipos de objetos: o ‘hitchcockiano’ e o ‘Odradek’, pois: (1) Como uma materialização de um investimento libidinal intersubjetivo, como se fosse para os olhos de alguém que a observação o fez olhar, ou seja, isso apresenta um objeto diretamente como transmissão de uma tensão intersubjetiva, já que tal objeto nunca é possuído nem manipulado – o próprio objeto (hitchcockiano) que determina o que nós somos. Assim sua posse nos afeta de maneira incontrolável. Transfere então a ênfase das pessoas para o objeto, de tal forma que a troca dos olhares dá-se primei-ramente, só depois, a câmera se aproxima lentamente para o objeto, ponto central da cena: para criar o suspense proto-hitchcockiano, o objeto – ponto central da cena, ponto focal libidinal – só é citado no fim, sua menção é quanto mais retardada; (2) Descreve-se uma das realizações mais fundamentais de F. Kafka – o ‘Odradek’: à primeira vista, um carretel de linha chato e em forma de estrela, ou melhor, pedaços velhos de linha (amarrados, enovelados) de vários tipos e cores. Uma pequenina cruz de madeira se projeta do meio da estrela e outra varinha se une a ela em ângulo reto. Nessa última varinha, de um lado, e de uma das pontas da estrela, de outro, a coisa consegue ficar de pé, como se realmente tivesse duas pernas. O Odradek é muito hábil e raramente se consegue apanhá-lo, com frequência ele se esconde nos corredores, nos armários, nas escadas, mas ninguém o vê: o Odradek é, portanto, um objeto transgeracional (livre dos ciclos da geração), imortal, fora da finitude, fora do tempo, que não demonstra nenhuma atitude ligada a metas, propósitos, utilidades, mas induz à ideia que sobreviverá a nós.

Retirados do universo cinematográfico, o ‘objeto hitchcockiano’, de um lado, e o ‘Odradek’, do universo literário, de outro, não deixam de ser assinalados em termos éticos e estéticos por S. Zizek como signifi-cantes. Uma série de filmes é disposta para compor o imaginário das significações que alguns conceitos são levados a obter através da ótica estética de S. Zizek: a) A cena de Coração Selvagem, de David Lynch, quando Willem Dafoe pressiona Laura Dern num quarto solitário e escuro a repetir: “Fala ‘me fode’!” – a extorsão da palavra que assinalaria o consentimento para o ato sexual. Quando ela concorda e repete a frase desejada, ele dá um sorriso simpático e diz que hoje não poderia, porque estava com pouco tempo, precisava ir... Trata-se de um ‘estupro em fantasia’? Uma recusa da realidade que humilha a vítima ainda mais, sob uma fantasia que é estimulada e abandonada num mesmo gesto? b) Nos dois últimos filmes do cineasta Andrei Tarkovski, Nostalgia e O sacrifício, o ato de sacrifício sem sentido são profundamente kier-kegaardianos, ato puro e insensato que restaura o sentido de nossa vida terrena; c) Galante e Sanguinário, um filme de Delmer Daves, clássico tema de faroeste, em que o Ato mais importante não é realizado pelo personagem central, mas sim sobre um personagem coadjuvante, que recai a o foco da provação ética. Conta-se a história de um fazendeiro pobre (Van Heflin), que por 200 dólares aceita escoltar um bandido (Glenn Ford) com a cabeça a prêmio do hotel, onde está, até o trem, que desembarcará na prisão. O fazen-deiro precisa desse dinheiro para salvar seu gado da seca, tanto que durante todo o filme, a pessoa que parece ser posta a prova (ética) é o próprio fazendeiro. No entanto, na última cena toda a percepção do filme muda: perto do trem, prestes a sair da estação, o bandido e o fazendeiro se veem frente a frente com a gangue, que aguarda o momento certo para atirar no fazendeiro e libertar seu chefe: quando a situação parece desesperada para o fazendeiro, o bandido de repente diz: ‘Confie em mim! Vamos pular juntos do vagão!” Em resumo, quem foi posto em provação ética acabou sendo o bandido e não o fazendeiro como se esperava; d) uma das cenas de Matrix que se destaca é a que Nero tem escolher entre a pílula azul (Prazer, a persistência na ilusão regulada pela Matrix) e a vermelha (Verdade, o despertar traumático no Real): ele escolhe a vermelha, ao contrário do informante da Matrix infiltrado entre os rebeldes que, em um cena de diálogo com Smith (agente da Matrix), pega um pedaço de carne com seu garfo e diz: ‘sei que é apenas uma ilusão virtual, mas não me importo, porque o gosto é real’ – assim ele segue o princípio da ilusão, onde é preferível permanecer na ilusão mesmo sabendo que é só uma ilusão. Em vez de sermos escravizados pela Matrix, podemos nos libertar? Tanto aprendendo com suas regras como mudando as regras do nosso universo físico? No entanto a escolha não se dá apenas entre a verdade amarga e a ilusão prazerosa, mas antes a dois modos de ilusão: o traidor está preso à ilusão de nossa ‘realidade’, dominada e manipulada pela Matrix.

Trata-se sempre do “gesto ético” elementar que é um gesto negativo: trata-se de estratégias que visem a bloquear a nossa tendência direta. Seja por uma ‘intuição hegeliana’ de Benjamin Libet – de como o ato elementar de liberdade, a manifestação do livre-arbítrio é dizer não, isto é, interromper a execução de uma decisão – assim, a liberdade não é ‘fazer que se quer’, mas ‘fazer o que não se quer’ frustrar a realização espontânea de um ímpeto. Seja quando Daniel Wegner, de modo bem kantiano, afirma que ‘uma ação voluntária é algo que a pessoa pode fazer quando lhe pedem’, a implicação é precisamente que obedecemos a uma ordem que vai contra a nossa tendência espontânea.

Certa ‘substantivação psicológica’, vista por Seymour Chatman, desvela uma das características de Henry James, através do impacto da história sobre as esferas mais íntimas da experiência, até porque as ideias e percepções são mais entidades que ações, mais coisas que movimentos: de tal modo que as abstrações psicológicas adquirem vida própria – são os verdadeiros agentes, aqueles que interagem. Talvez seja por isso que um capítulo deste livro tenha sido intitulo: A Escolha de Kate, ou o materialismo de Henry James. Materialismo percebido quando o sujeito torna-se uma espécie de recipiente vazio – um espaço no qual pode se localizar as coisas. A própria substantivação de verbos e predicados operada por H. James, sua transformação em agentes substantivos, é que dessubstancializa o sujeito, reduzindo-o a um espaço vazio formal no qual interage a multiplicidade de agentes. Trata-se, pois de reler As asas da pomba como a his-tória de como Milly, depois de saber da trapaça da qual se tornou alvo, não sabotou nem se vingou quando o ato se consumou, levando a história até o final. O romance de H. James consuma-se quando um co-nhecimento indesejado é imposto às pessoas, questiona-se: como esse conhecimento afetará seus atos? O que fará Milly quando souber que Densher e Kate estão ligados? Quando souber da tramóia de Densher ao demonstrar amor por ela? Como Densher vai reagir quando souber que Milly conhece o seu plano com Kate? A questão está ligada a Milly, então, ao saber da tramóia, ela reagirá com um gesto de sacrifício e deixa a sua fortuna para Densher? O ‘oferecimento de Milly’, não deixa de ser um oferecimento feito para ser negado. Ao oferecer-lhe uma riqueza da mais profunda bondade ou aceita e será marcado por uma mancha indelével de culpa e corrupção moral, ou se fizer o que é certo e rejeitá-la, você também não estará sendo íntegro – sua própria rejeição servirá como reconhecimento de sua culpa. Acontece que o objetivo de Milly é destruir a ligação entre Dansher e Kate: ao assumir e encenar livremente a própria morte como sacrifico de autodestruição que deveria permitir, junto com a herança, que Densher e Kate vivessem felizes para sempre. Este gesto de Milly acabava arruinando a própria possibilidade de eles serem felizes. Ocorre que se Milly deixar sua fortuna para eles, ao mesmo tempo, torna-se eticamente impossível para eles acei-tarem esse presente.

O ‘Deus de Kierkegaard’ deve ser compreendido como um ponto extremo do idealismo. O ‘Deus de Kierke-gaard’ está correlacionado à nossa relação com a realidade, como inacabada, em ‘devir’. Assim, Deus será o nome do Outro Absoluto contra o qual podemos medir a total contingência da realidade – como tal, ele não pode ser concebido como nenhum tipo de Substância, como Coisa Suprema. Se não há medida em comum entre a nossa vida e o divino, uma ‘renúncia sacrificatória’ não poderia fazer parte de uma troca com Deus, assim sacrificamos tudo (tudo em nossa vida, a sua totalidade) por nada. Acontece que se exige do homem algo que seja o maior sacrifício possível ou um exercício que se dedique por toda a sua vida como sacrifício, mas se caso lhe perguntarem: ‘Sacrifício para quê?’ Não haverá ‘para quê’? Nada vai garantir que nosso sacrifício será recompensado ou que daremos um sentido real à nossa vida. Trata-se de um ‘salto de fé’: para o observador externo só pode parecer um ato de loucura. Então, depois de sacrificar tudo (minha felicidade, honra, riqueza) pela Causa, de repente percebe-se que se perdeu a própria Causa – a alienação é, portanto, redobrada, ‘refletida em-si’. Quando se sacrifica tudo pela Causa, acaba-se perdendo (traindo) a própria Causa, quando se aliena sem restrições ao Simbólico, acaba-se sendo reduzido a uma mancha excrementicial desse Simbólico produzido.

A Visão em Paralaxe (Slavoj Zizek) - II

Antes de sua morte, como Mestre vivo, Cristo tornou-se excessivamente ‘universal’, transmitindo uma mensagem universal (de amor etc.) e ‘exemplificando-a’ com seu comportamento e seus atos. Somente com sua morte na cruz que Cristo, de apenas mensageiro divino, tornou-se diretamente Deus, ou seja, quando se fechou a lacuna entre o conteúdo universal e sua representação. Assim, de volta aos grandes Mestres, como Buda: os budistas não revelam sua verdade no sentido cristão estrito apenas exemplificam (com sua vida modelar) o ensinamento universal que disseminam – Buda era budista e até um budista exemplar, na medida em que Cristo não era cristão, ele era o próprio Cristo em sua absoluta singularidade. Resta que ‘o maior ensinamento ou lição’ de Cristo tenha sido cindir, de imediato, a sua própria existência como indi-víduo que é, simultaneamente, homem e Deus. Superposição direta, pois, do Universal e do Singular: Cristo, o próprio Deus, criador de todo o nosso universo, caminhava por aí como um indivíduo comum. Como conciliar, no entanto, a existência de um Deus bom e onipresente com o terrível sofrimento de milhões de inocentes? De que modo conciliar, então, a existência de Deus com um mal extremo semelhante a shoah? O paradoxo da shoah consiste no seguinte desafio: ‘se existe Deus e se ele é bom, como pôde permitir que tamanho horror acontecesse?

É necessário um líder para deflagrar o entusiasmo pela Causa, para provocar a mudança radica da posição subjetiva de seus seguidores, para ‘transubstanciar’ sua identidade. Apesar do poder quase absoluto que gozavam, os governantes passavam por atribulações éticas e ideológicas o que os levavam a viver num estado permanente de guerra contra os próprios súditos e numa posição que parecia ilegal e obscena. Se-guem-se alguns exemplos militares sobre esse avesso obsceno do poder, a partir das questões sobre o roubo, a homofobia e a tortura (sobre o caso Abu Ghraib no Iraque):

(1) durante um treinamento militar, adolescentes recebiam comida insuficiente, de propósito, para que tivessem que roubá-la; mas se fossem pegos seriam severamente punidos – não por terem roubado, mas por terem sido pegos, sendo forçados a aprender a arte de roubar em segredo, a cometer um ato clandestino de transgressão;

(2) os soldados identificados como homossexuais são isolados e surrados diariamente, mas essa homofobia explícita é acompanhada por uma rede implícita excessiva de insinuações homossexuais, piadas de caserna, práticas obscenas, etc. Assim, a intervenção militar da homofobia não só se concentra na repres-são explícita da homossexualidade, mas perturba as práticas homossexuais implícitas, antes, move esse ‘subterrâneo’, transformando-o;

(3) As torturas de Abu Ghraib não deixavam de se situar como certo tipo de ‘práticas subterrâneas’, ou seja, quando o Poder gera o seu próprio excesso e precisa aniquilar na mesma operação que deve imitar aquilo que combate. Assim, entra-se no domínio das operações secretas – daquilo que o Poder faz sem admitir, a propósito de Abu Ghraib. O comando do Exército dos Estados Unidos impõe uma garantia ‘ridícula’ de que não foi dada nenhuma ‘ordem direta’ para humilhar e torturar os prisioneiros. Não foi assim que as coisas foram feitas: não havia nenhum tipo de ‘ordem formal’, nada era por escrito, assim havia apenas uma ‘pressão não oficial’ (sugestões e diretivas) dada em particular, como se transmitisse um segredo sórdido;

(4) sobre a explosão do escândalo Abu Ghraib: a Cruz Vermelha Internacional bombardeou o comando do Exército norte-americano no Iraque, a partir de relatórios que constavam abusos em suas prisões militares, no entanto, esses relatórios foram ignorados. As autoridades não desconheciam os acontecimentos, somente admitiriam os crimes caso tivessem que enfrentar suas divulgações na mídia. Tanto que uma das medidas de prevenção foi proibir os militares norte-americanos de portar câmeras digitais e telefones celu-lares com vídeo, principalmente para que a circulação pública fosse evitada e não para impedir os seus atos. Destaca-se um contraste entre o ‘modo padrão’ de tortura sob o governo de Saddam e entre os norte-americanos: no regime de Saddam tratava-se de infligir a dor de maneira direta e violenta, enquanto os norte-americanos focavam-se em humilhações psicológicas, além disso, gravar a humilhação com uma câmera, incluindo os responsáveis pelas imagens (fazia parte do processo a dupla série de rostos sorrindo ao lado de corpos nus e contorcidos dos prisioneiros), em flagrante contraste com os sigilos das torturas de Saddam. Acontece que quando os norte-americanos obtinham as fotos dos prisioneiros iraquianos hu-milhados (nas telas e nas primeiras páginas dos jornais), a noção de direita dos ‘valores norte-americanos’ é que era exibida – o próprio deleite obsceno que sustenta o modo de vida dos norte-americanos. Tratava-se, portanto de um ‘choque’ entre a tortura violenta e anônima e a tortura como espetáculo midiático em que os corpos das vítimas serviam de pano de fundo anônimo para o ‘rosto americano inocente’ de sorriso estúpido dos próprios torturadores.

Identifica-se uma torção auto-reflexiva pelos carrascos nazistas para suportar os atos horrendos que co-metiam. É que a maioria desses carrascos se defendia mesmo sabendo que faziam coisas terríveis, como humilhações, sofrimentos e mortes às vítimas. O modo que se lidava com isso ficou conhecido como o ‘truque de Himmler’: “ao invés de (os torturadores) dizerem que coisas horríveis eu fiz com as pessoas”, deste modo os carrascos nazistas poderiam dizer – “Que coisas horríveis eu tive de ver na execução dos meus deveres, como essa tarefa pesa em meus ombros”. Truque de Himmler, ou seja, o deslocamento da culpa, onde o torturador absolve seus atos violentos na medida em que penaliza a sua obediência a uma ordem, o cumprimento de seu dever.

Considera-se que a constituição do Estado de Israel foi, do ponto de vista da Europa, a ‘solução final’ que se realizou sobre o problema dos judeus – o ‘livrar-se dos judeus’, alimentado pelos próprios nazistas. Em 26 de setembro de 1937, Adolf Eichmann e seu assistente embarcaram em Berlim num trem para visitar a Palestina: visitar Tel-Aviv com o intuito de coordenar organizações alemãs e judias para facilitar a imigra-ção dos judeus para a Palestina. Este foi o momento na II Guerra em que os alemães e os sionistas queriam que o máximo de judeus fosse para a Palestina: os alemães os queriam fora da Europa ocidental, enquanto os judeus queriam superar a quantidade de árabes na Palestina. Enfim, os nazistas e os judeus não deixaram de manter alguns interesses em comum.

Se o Poder estatal apenas representa os interesses de seus sujeitos, no nível da lei, o Estado serve a eles e está sujeito ao seu controle. No nível da responsabilidade da ‘mensagem pública’ parece haver uma com-plementaridade com uma ‘mensagem obscena’ (do exercício incondicional do Poder): ‘as leis na verdade não me restringem, não posso fazer com vocês o que eu quiser em absoluto, mas posso tratá-los como culpados se assim decidir... Posso destruí-los se assim quiser’. Excesso obsceno constituinte necessário da noção de soberania – aqui, a lei mantém sua autoridade se caso os súditos ouvirem nela o eco da auto-afirmação incondicional obscena. Com efeito, H. Arendt enfatizou a distinção entre o ‘poder político’ e o ‘mero exercício da violência’ (social): a distinção entre a Lei simbólica pública e seu complemento obsceno implica afirmar que não existe Poder sem violência – o Poder sempre tem de se basear numa mancha obscena de violência. Deste modo, não só a violência é o complemento necessário do poder (político), já que está sempre na raiz de toda relação de violência aparentemente ‘não política’.

Enfatizam-se três tipos de violência: a) Há passages à l’acte violentas que apenas comprovam a impotência do agente; b) há uma violência cuja verdadeira meta é garantir que nada mude realmente; c) o ato violento que muda de fato as coordenadas básicas de uma constelação – a partir do qual o gesto de subtração do “Preferiria não” de Bartleby (incapaz de fazer mal a uma própria mosca, cuja presença o tornaria mais insu-portável), sob o princípio que sustenta todo o movimento e o trabalho subsequente de construção que lhe dá corpo.

A Visão em Paralaxe (Slavoj Zizek) - III


Para Alain Badiou, hoje, o inimigo não se chama o ‘capital’ nem Império, chama-se Democracia. Afinal, para ele, o que impede o questionamento radical do próprio capitalismo é exatamente ‘a crença na forma democrática da luta contra o capitalismo’, ao contrário de insistir na ‘convicção de que não existe alterna-tiva ao domínio do lucro’, com efeito, isso iria ‘atrapalhar a emancipação política dos sujeitos’. Se a economia tem sido o terreno principal, então aí será decidida a batalha. Para se romper com o domínio do capitalismo global, contudo, a intervenção deveria ser política e não propriamente econômica.

Se hoje o mundo pode ser considerado ‘anticapitalista’ é porque alguns signos designam enunciados do tipo: o inimigo se tornou as grandes empresas em sua busca por lucro, mas o significante ‘anticapitalismo’ acaba por perder seu efeito subversivo na medida em que a confiança em certa substância democrática entre os homens norte-americanos para extinguir a ‘conspiração’: esse é o núcleo duro do universo capitalista global, seu verdadeiro Significante-Mestre: a democracia. A verdadeira democracia é encenada ou mesmo simulada à distância do Estado – ela questiona o Estado e convoca a ordem estabelecida a prestar contas, não para se livrar do Estado, por mais que isso seja um desejo democrático utópico e incontido: a Demo-cracia é convidada a melhorar e atenuar os efeitos maléficos da máquina estatal. Por um lado, a democra-cia supõe um mínimo de alienação: os que exercem o poder só podem ser responsáveis pelo povo se houver uma distância mínima de representação entre eles e o povo. Por outro, no ‘totalitarismo’, essa distância é eliminada, supõe-se que o Líder representa diretamente a vontade do povo ou que seja diretamente o que o povo ‘realmente é’, ou seja, a identidade dos desejos e interesses do povo. Se há algo de realmente verdadeiro no ‘totalitarismo’ é que a sua lógica deixa explícita e postula uma cisão no povo representado: a linha de separação entre o líder e o analista pode parecer imperceptível, mas se apresenta na diferença do ‘vínculo social perverso’, no qual o pervertido sabe o que o outro realmente quer.

A fórmula do ‘vínculo social perverso’ proferido por alguns analistas pode ser então assinalada da seguinte forma: o agente, o pervertido masoquista ocupa a posição do objeto-instrumento do desejo do outro e, desse modo, ao servir à sua vítima (feminina), postula-a como sujeito histerizado/dividido que ‘não sabe o quer’ - o pervertido sabe por ela (finge falar da posição de conhecimento sobre o desejo do outro), o que permitir servir ao outro – e o produto desse vínculo social é, enfim, o Significante-Mestre, ou seja, o sujeito histérico elevado ao papel de mestre (dominatrix) a quem serve o masoquista pervertido.

O Mestre é aquele que inventa um significante novo, o famoso ‘ponto de basta’ [point the capiton], que es-tabiliza novamente a situação e a torna legível. O gesto inicial do Mestre será então acrescentar um signi-ficante que passará a transformar a desordem em ordem, em ‘nova harmonia’. Deste modo, afirma-se que o ‘significante-mestre’ é uma espécie de ‘significante-reflexivo’ que preenche a própria falta de significante.

Kant escreveu que ‘o homem é um animal que precisa de um senhor’, no entanto o que Kant quer indicar que é enganosa a isca da própria necessidade de um senhor externo. Desta forma, compreende-se que o ‘homem precisa de um senhor para esconder de si mesmo o impasse de sua própria e difícil liberdade e responsabilidade por si mesmo’. Então, só um ser humano maduro e verdadeiramente esclarecido é quem não precisaria de um senhor, que poderia sustentar e assumir o pesado fardo de definir suas próprias limitações. Para Kant, no entanto, o ‘homem é um animal que precisa de um senhor’, isto significa que o homem é um animal histerizado e subjetivado, ou seja, um homem que não sabe mais o quer, um animal que precisa da figura de um Senhor em um Outro para lhe estabelecer limites, para dizer o que ele quer, um animal preso no jogo de provocações do Senhor.

O sujeito histérico que queixa de ser explorado, manipulado, vitimizado pelos outros – reduzido a um ‘objeto de troca’: para Lacan, essa posição subjetiva de vítima passiva das circunstâncias nunca é simplesmente imposta de fora ao sujeito, mas tem de ser endossada por ele, ao menos, minimamente. Embora o sujeito não tenha consciência de sua própria vitimização, essa talvez seja a ‘verdade inconsciente’ da experiência do sujeito que se coloque como uma vítima passiva das circunstâncias.

Nesta perspectiva, o ‘eu’ não deixa de ser uma entidade puramente performática. O ‘eu’ não é diretamente meu corpo nem o conteúdo da minha mente, mas é antes uma coordenada que possui essas características como propriedades. O sujeito lacaniano é, portanto, o ‘sujeito do significante’. Deste modo, quando digo ‘eu’, quando designo a mim mesmo como ‘eu’, trata-se de um ‘ato de significar’ que a que acrescenta algo à ‘entidade real de carne e osso’ assim designada: O sujeito será então aquele que acrescenta a si um conteúdo por meio do ato de sua designação auto-referencial.

Não se trata da diferença entre os elementos, por exemplo, mas da diferença entre o elemento com ele mesmo: em dezembro de 2001, em Buenos Aires, quando os argentinos ocuparam as ruas para protestar contra o governo e, principalmente, contra o ministro da economia, Cavallo. Quando a comunidade de argentinos se direcionava para o Ministério da Economia, quando cercavam o prédio ameaçando invadi-lo – Cavallo fugiu usando uma máscara dele mesmo (vendida em lojas de fantasia para que o povo pudesse vesti-la e zombar dele). Percebe-se o efeito de uma moldura que é em si já duplicada – uma moldura dentro da ‘realidade’ está vinculada a outra moldura que emoldura a própria realidade. Há um ponto turístico no lado sul da zona desmilitarizada coreana: o prédio de um teatro com uma grande janela na fachada (algo como se fosse uma tela de cinema que se abre para o Norte). O que a platéia assiste quando ocupa os seus lugares nesse ‘teatro coreano’ é a própria ‘realidade’: a zona desmilitarizada, devastada, com seus muros, etc. e, mais além, um vislumbre da Coréia do Norte. Para condescender com a ficção, a Coréia do Norte construiu uma grande fraude diante desse teatro: uma aldeia-modelo com lindas casas.

Duas histórias notáveis foram divulgadas pela mídia em 2003: (1) Walter Benjamin não se matou em 1940 numa aldeia na fronteira espanhola, amedrontado por ser mandado de volta à França e, com efeito, aos agentes nazistas – ele foi morto ali mesmo por agentes de Stálin; (2) Um historiador da arte espanhol des-cobriu o primeiro uso da arte moderna como tortura. Kandinsky, Klee, Buñuel e Dalí inspiraram uma série de celas secretas e centros de tortura construídos em Barcelona em 1938, obra do anarquista francês Alphonse Laurencic –, o inventor de um tipo de tortura ‘psicotécnica’: ele criou as chamadas ‘celas colori-das’ inspiradas tanto por ideias surrealistas e abstrações geométricas quanto por teorias artísticas de van-guarda, sobre as propriedades psicológicas das cores. Além do vínculo surpreendente entre a high culture (belas-artes e teoria) e a política vil e violenta (assassinato e tortura), essas duas histórias têm em comum o vínculo que criam como um ‘curto-circuito impossível’ de níveis que nunca poderiam se encontrar: colocam-se dois fenômenos incompatíveis no mesmo nível.

Entre os cognitivistas, o próprio pensamento humano é concebido segundo o modelo de funcionamento de um computador, de modo que a própria lacuna entre o entendimento (a abertura ao mundo) e o funcio-namento de uma máquina potencialmente desaparece: D. Dennett buscou afirmar que há na mente hu-mana, um ponto central de decisão-percepção no qual toda a informação que chega é reunida, avaliada e daí transformada em ordem para a (re)ação; acerca da inteligência humana proposta por Alain Turing, ou seja, se uma máquina possuir inteligência humana, é porque um interlocutor humano já não pode, depois de um tempo, decidir se está lidando com ser humano ou com uma máquina.

No neodarwinismo, os indivíduos humanos são concebidos como meros instrumentos e veículos de repro-dução de seus ‘genes’ e, com efeito, a cultura humana (atividade cultural da humanidade) como veículo de proliferação de memes: R. Dawkins enfatizou que os memes são ‘vírus da mente’, entidades parasitas que ‘colonizam’ a energia humana, usando-a como meio de multiplicar-se, ainda assim insiste que os memes não sejam apenas vírus; pensar em baixar todo o conteúdo de uma mente para o computador, com a pos-sibilidade de transformar a mente num software que possa migrar indefinidamente de uma encarnação material a outra – a metempsicose, a migração da alma, torna-se assim uma questão de tecnologia –, “quando fazemos um upload de nós mesmos para um computador, tornamo-nos tudo o que queremos?”

A política revolucionária e a arte revolucionária movem-se em temporalidades diferentes, embora interliga-das, são dois lados do mesmo fenômeno que, exatamente por serem dois lados, nunca podem se encontrar. Ainda nos resta provocar um diálogo entre a esperança de Hölderlin em seus versos: “quando estiver na maior encrenca, não se desespere tão rápido; olhe em volta com atenção, a solução pode estar ali na esquina”; frente ao humor dos irmãos Marx ao dizer: “tudo em você me faz lembrar de você – seus olhos, suas orelhas, sua boca, seus lábios, seus braços e pernas... tudo, menos você!”.