terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

A Monstruosidade de Cristo (Slavoj Zizek)

Sublinha-se uma diferença entre Sócrates e Cristo: Cristo não é como uma ‘individualidade plástica’ grega que, através de traços particulares, o conteúdo universal transparece diretamente. Isto significa que, embora Cristo seja Deus-Homem, a identidade direta desses dois termos implica também uma contradição: nada há de ‘divino’ no que se refere a Cristo, pelo menos, nada de excepcional – observando-se os seus traços, eles chegam a ser indistinguíveis de qualquer outro individuo humano. Entre os gregos, Sócrates se distingue de Cristo, por exemplo, através desse ‘universal particular’ percebido neste Deus-Homem, mas Édipo pode se assemelhar com Cristo, como excluído, despojo, rei-mendigo. Da ‘cristologia de Hegel’ extrai-se um Cristo que não só foi o próprio Deus, o criador de todo o nosso universo, mas andou nas ruas como indivíduo comum.

Será que o que nós, crentes, comemos na eucaristia, a carne de Cristo (pão) e o seu sangue (vinho), precisamente o mesmo despojo informe, ‘o que [os soldados romanos que o crucificaram] nunca podem matar’, e que continua a avançar e a organizar-se como uma comunidade de crentes. Nesta perspectiva relê-se o próprio Édipo um precursor de Cristo. O corpo poluído de Édipo significa entre outras coisas o monstruoso terror que ronda as portas e no qual, se tiver a sorte de sobreviver, a polis deverá reconhecer a sua deformidade atroz. Édipo é despojado da sua identidade e autoridade e pôde assim oferecer o seu corpo lacerado como pedra angular de uma nova ordem social: “Tornar-me-ei um homem na hora em que deixo de existir?”, ou talvez: “Passarei a contar alguma coisa somente quando não sou nada / deixo de ser humano?”, pergunta-se o rei-mendigo em voz alta. O que nos faz pensar num rei-mendigo posterior, Cristo que, pela sua morte como um ser nulo, um excluído abandonado pelos seus próprios discípulos, funda uma nova comunidade de crentes. Um e outro, Édipo, Cristo, reemergem atravessando o grau zero do ser, reduzido a um despojo excrementício.

Acrescente-se a figura do Deus sofredor à oposição estabelecida entre o Deus benevolente, da paz e da harmonia cósmicas, e o Deus maldoso, com o seu furor assassino. É por isso que G. K. Chesterton destacou a intuição da identidade especulativa do Bem e do Mal, ou seja, a tese de que, ao combater o Mal, o Bom Deus está a combater contra si mesmo, num conflito interno, pertence ainda à suprema intuição pagã. Só o terceiro traço, o sofrimento de Deus resolve, ao emergir subitamente, esta tensão entre as duas faces de Deus, conduzindo-nos assim ao cristianismo propriamente dito: porque é um Deus sofredor. O sofrimento conduz-nos ao Livro de Job, celebrado por Chesterton como o mais interessante dos livros antigos. Depois de Job ser ferido por suas calamidades, os seus amigos teólogos intervêm, oferecendo interpretações, que tornam as calamidades dotadas de sentido, e a grandeza de Job não é tanto protestar a sua inocência como insistir no sem-sentido das calamidades. Essa resistência ao sentido é decisiva quando nos confrontamos com catástrofes potenciais ou atuais (desastres ecológicos, Holocausto, Aids): não ‘tem sentido mais profundo’. A herança de Job proíbe-nos esta atitude de buscar refúgio na figura transcendente e estabelecida de Deus como Senhor secreto que conhece o sentido do que nos parece a nós uma catástrofe sem sentido. O próprio Deus chega a compartilhar do próprio assombro de Job perante a loucura caótica do universo criado: “Job adianta um ponto de interrogação, Deus responde-lhe com um ponto de exclamação. Em vez de mostrar a Job um mundo explicável, insiste em que se trata de um mundo mais estranho do que Job alguma vez pensou”. A eterna interrogação: Havia Deus em Auschwitz? Como poderia Ele ter permitido um sofrimento tão imenso? Por que não interveio para impedir? Encontra-se uma resposta na cena final de Shooting Dogs, um filme sobre o genocídio em Ruanda, na qual vemos um grupo de Tutsi refugiados numa escola cristã, sabendo que em breve serão chacinados por uma turba Hutu –, um jovem professor britânico da escola soçobra no desespero e pergunta a figura paterna, o sacerdote mais velho, onde está agora Cristo para impedir o massacre; a resposta do padre é: ‘Cristo agora está mais do que nunca aqui presente. Está aqui sofrendo conosco’.

Trata-se de Cristo, sofredor, mas que se parece mais com um Deus fraco, um Deus reduzido e compadecido observar a miséria humana, incapaz de intervir e de socorrer. Deus não é justo nem injusto, mas simplesmente impotente. O que Job compreendeu de súbito é que não era ele, mas que o próprio Deus fracassaria: Job previa o futuro sofrimento do próprio Deus. Só o cristianismo abriu um espaço para pensar esse sofrimento, na medida em que é a religião de um Deus que morre. Continua morto, morre realmente, no caso de Cristo que renasceu enquanto outra pessoa, como Espírito Santo. Percebe-se, pois de um triplo movimento: [1] a pessoa singular de Cristo é superada na sua identidade ressurreta enquanto Espírito (amor) da comunidade dos crentes; [2] o milagre empírico é superado no ‘verdadeiro’ milagre maior; [3] o próprio cristianismo se supera em organização política. Ao observar atentamente, reconhece-se certo tipo de ‘reversão dialética’ no cristianismo – a Crucificação e a Ressurreição – variantes formais de um e mesmo acontecimento: ‘Crucificação é ressurreição’. Assim, quando os crentes se reúnem, chorando a morte de Cristo, o seu espírito compartilhado é o Cristo ressuscitado. A relação entre Vida e Morte na figura de Cristo, a morte exemplar na cruz, e a ressurreição na vida eterna dada a todos os que acreditem nele e decidem ‘viver em Cristo’. A Vida e a Morte não são aqui pólos opostos, contrários, mas a mesma coisa vista segundo uma perspectiva global diferente, ou melhor, um só e mesmo acontecimento visto de duas perspectivas. O que é superado no movimento que leva do Filho ao Espírito Santo é assim o próprio Deus: depois da crucificação, da morte do Deus encarnado, o Deus universal regressa enquanto um Espírito da comunidade dos crentes. Cristo é, enquanto Homem-Deus, a unidade ou a reconciliação exteriormente pressuposta: primeiro, uma unidade imediata, depois, uma unidade mediatizada sob a forma do Espírito Santo: passa-se de Cristo, cujo predicado é o amor, ao próprio amor como sujeito, o Espírito Santo. Essa unidade ou essa Reconciliação não pode ser direta, sob a intuição de Hegel, primeiro terá de gerar um (aparecer um) monstro, uma monstruosidade, para indicar a primeira figura da Reconciliação, o aparecimento de Deus na carne finita de um indivíduo humano: “tal é o monstruoso [das Ungeheure] cuja necessidade vimos”, afinal para Hegel, o indivíduo humano frágil e finito é “inapropriado’ para representar Deus, é a impropriedade em geral, enquanto tal”. A própria tentativa de reconciliação produz um monstro, uma grotesca “impropriedade enquanto tal”?

Cristo é o ‘objeto parcial’ de Deus – um órgão autonomizado e sem corpo, como se Deus tivesse extraído o seu olho da sua cabeça e do exterior virasse para si. Intui-se melhor daí porque Hegel insistia na monstruosidade de Cristo. A modalidade cristã de um “Deus que se vê a Si-mesmo” nada tem a ver com o anel fechado e harmonioso do “vejo-me ver”, mas aqui o olho que se vira para o seu corpo pressupõe um olho separado do corpo, e aquilo que vejo por meio do meu olho autonomizado/exteriorizado é uma imagem em perspectiva, anamorficamente distorcida de mim: Cristo é uma anamorfose de Deus. A liberdade humana só se funda nesta monstruosidade de Cristo, desobstruindo-nos o caminho. Deste modo, o mistério de Deus é o homem. “Deus” não é mais do que a versão reificada e substantivada da atividade coletiva humana, ou seja, o fosso irredutível que separa os sujeitos humanos de Cristo – o sujeito monstruoso ‘mais humano do que o humano’. O cristianismo é a ‘religião absoluta’ precisamente na medida em que, nele, a distância que separa Deus do homem separa Deus do próprio Deus (e o homem do homem, do que há nele de inumano). Assim, a humanidade se torna consciente de si na figura alienada de Deus, mas na religião humana, Deus torna-se consciente de Si-mesmo (o Espírito é ele próprio a ferida que tenta sarar – o que significa que a ferida é uma ferida auto-infligida; trata-se de uma auto-alienação que reconstitui o Espírito a si mesmo através do seu ‘regresso a si’ por meio de uma imersão a alteridade natural). Então, Cristo é o excesso que proíbe, enfim, o simples reconhecimento do Sujeito coletivo na Substância – a redução do Espírito a uma entidade virtual e objetiva pressuposta pela humanidade.

Mesmo que Deus seja a substância de todo o nosso ser (humano), é impotente sem nós, age apenas em e através de nós – é estabelecido através da nossa atividade como seu pressuposto. É por isso que Cristo é impassível, etéreo, frágil: um simples observador animado de simpatia, mas impotente por si só. O estatuto do ‘Espírito’ não deixa de ser um ‘pressuposto subjetivo’: “só existe na medida em que os sujeitos ajam como se existisse”, ou seja, a substância da causa só é real na medida em que os indivíduos acreditem nela e ajam consequentemente. O estatuto da ‘substância espiritual’ hegeliana é então propriamente virtual – só existe na medida em que os sujeitos agem como se ela existisse: é a ‘substância espiritual’ dos indivíduos que nela se reconhecem e é o solo onde assenta toda a sua existência, o ponto de referência ou qualquer coisa pela qual os indivíduos estão dispostos a darem suas vidas. E a única coisa que realmente existe são esses indivíduos e a sua atividade, pelo que a substância só se atualiza na medida em que os indivíduos ‘acreditam nela’ e, com efeito, agem. Os indivíduos pensam que tratam certa pessoa como um rei porque essa pessoa é o rei em pessoa, quando, na realidade, essa pessoa só é rei porque os outros assim a tratam como tal. Trata-se do ‘performativo hegeliano’, sem dúvida, um rei é ‘em si mesmo’ um pobre indivíduo; sem dúvida, só é rei na medida em que seus súditos o tratam como tal; no entanto, a questão é que a ‘ilusão fetichista’ que sustenta a nossa veneração perante um rei tem enquanto tal uma dimensão performativa – a própria unidade do nosso Estado, ‘encarnada’ no rei, só se atualiza na pessoa do rei.

Reside aí a monstruosidade de Cristo, quando esse pobre indivíduo, esse rei-palhaço, ridículo e escandaloso, andava por aí, era como se o umbigo do mundo, o nó que mantinha ligada e conjunta a textura da realidade (o que Lacan chamava sinthoma), andasse por aí fora do seu lugar: a sua monstruosidade é o preço a pagar pela introdução do Absoluto no meio da representação exterior, que é o meio religioso. Como se o herói Syme de Chesterton revelasse a identidade da Lei e o crime universalizado/absoluto: não só o crime é essencialmente moral como a própria moralidade é essencialmente criminosa, no sentido em que o modo como a moralidade se afirma é já em si mesma um crime: “a propriedade é um roubo”, como costumava dizer-se no século XI. Ou de sua clareza e simplicidade, Agota Kristof, mestra de horror, autora húngara de O Caderno Grande, retira-se o ‘modo de ser’ de um ‘monstro ético’, sem empatia, fazendo o que há a fazer numa insólita coincidência entre espontaneidade cega e distância reflexiva, auxiliando os outros ao mesmo tempo evitando a sua proximidade repulsiva: com mais gente assim, o mundo seria um lugar mais agradável, no qual o sentimento seria substituído por uma paixão mais cruel e fria... Se existe uma ética cristã (?), talvez seja essa, por mais extravagante que o pedido do próximo pareça, tente dar-lhe resposta.