domingo, 14 de fevereiro de 2010

História da Sexualidade [I] A Vontade de Saber (Michel Foucault)

A repressão funciona, de certo, como condenação ao desaparecimento, mas também como injunção ao silêncio – afirmação da inexistência e, com efeito, constatação de que, em tudo isso, não há nada para dizer nem ver tampouco para saber. Assim marcharia, com a sua lógica capenga, a hipocrisia de nossas sociedades burguesas? Explicam-nos que, se a repressão foi, desde a época clássica, o modo fundamental de ligação entre poder, saber e sexualidade isso só se pode liberar a um preço considerável. Há alguma razão que torne gratificante a formulação das relações de poder e sexo por intermédio da repressão? Há algumas décadas que nós só falamos de sexo fazendo pose, conscientes de se desafiar a ordem estabelecida, com tom de voz que demonstra o quanto isso é subversivo. Enfim, levantam-se pelo menos três dúvidas sobre essa ‘hipótese repressiva’: a repressão do sexo seria mesmo uma evidência histórica? Houve alguma acentuação ou instauração de um regime de repressão ao sexo no século XIX? A repressão veio a se cruzar com um mecanismo de poder, que até então funcionaria sem contestação, para barrar-lhe a via? Acontece que, a partir do fim do século XVI, a ‘colocação do sexo em discurso’, em vez de sofrer um processo de restrição, foi, ao contrário, submetida a um mecanismo de crescente incitação, assim como as técnicas de poder exercidas sobre o sexo não obedeceram a um princípio de seleção rigorosa, mas de disseminação e implantação das sexualidades polimorfas.

Considere-se, portanto, esses três últimos séculos em suas contínuas transformações, as coisas aparecem bem diferentes: em torno e através do sexo houve uma imensa explosão discursiva, talvez tenha havido uma depuração bastante clara do vocabulário autorizado. Fixando cada qual à sua maneira a linha divisória entre o lícito e o ilícito, três grandes códigos explícitos se encarregavam das práticas sexuais até o final do século XVIII: o direito canônico, a pastoral cristã e a lei civil – romper as leis do matrimônio e procurar prazeres estranhos merecia, de qualquer modo, condenação. Os discursos sobre o sexo (específicos e diferentes tanto pela forma quanto pelo objeto) então não cessaram de proliferar. Trata-se de uma fermentação discursiva que se acelerou a partir do século XVIII, não tanto a multiplicação dos discursos provavelmente mais ‘ilícitos’, como zombaria aos novos pudores; mas a multiplicação dos discursos sobre o sexo no próprio campo do exercício do poder (incitação institucional de se falar do sexo e a falar cada vez mais). Este projeto de uma ‘colocação do sexo em discurso’ formara-se há muito tempo, numa tradição ascética e monástica. Considera-se a evolução da pastoral católica e do sacramento da confissão – onde ‘tudo devia ser dito’: trata-se mais de uma evolução que fez da carne, a origem de todos os pecados, ao mesmo tempo deslocou o momento mais importante, do ato em si, para a inquietação do desejo. O que se interrogava era sobre a sexualidade das crianças, a dos loucos e criminosos; é do prazer dos que não amam o outro sexo; os devaneios, as obsessões, as pequenas manias ou as grandes raivas.

Não obstante, através e tais discursos multiplicaram-se as condenações judiciárias das perversões menores, anexou-se a irregularidade sexual à doença mental; da infância à velhice foi definida uma norma do desenvolvimento sexual e foram cuidadosamente caracterizados todos os desvios possíveis; organizaram-se controles pedagógicos e tratamentos médicos; em torno das mínimas fantasias, os moralistas e os médicos trouxeram à baila todo o vocabulário enfático da abominação. Uma série de pequenos perversos desfilou no século XIX e foi entomologizada por seus psiquiatras: os exibicionistas de Lasègue; os fetichistas de Binet; os zoófilos e zooerastas de Krafft-Ebing; os automonossexualistas de Rohdeler; haverá os mixoscopófilos, os ginecomastos, os presbiófilos, os invertidos sexoestéticos e as mulheres disparêunicas. Esses belos nomes de heresias precisavam mais do que as velhas interdições, esta forma de poder exigia para se exercer tanto presenças constantes, atentas e curiosas, quanto proximidades, mediante exames e observações insistentes, requerendo um intercâmbio de discursos através de perguntas que extorquem confissões e de confidências que superam a inquisição.

O poder que toma a sexualidade a seu cargo, que visa açambarcar o corpo sexual, acaba por assumir como dever: roçar os corpos e os acariciar com os olhos, assim como eletrizar algumas regiões e intensificar superfícies, até mesmo dramatizar momentos conturbados. O poder passa a funcionar como um mecanismo de apelação que atrai e extrai essas estranhezas pelas quais se desvela; assim um prazer se difunde através do poder cerceador, que fixa o prazer que acaba por desvendar. Prazer e poder, por um lado, prazer em exercer um poder que questiona, fiscaliza, espreita, espia, investiga, apalpa e revela, por outro lado, prazer que surte em escapar e fugir deste poder, enganá-lo ou travesti-lo. Instituições escolares e psiquiátricas, com suas populações numerosas e hierarquizadas, organizações espaciais e sistema de fiscalização constituem, junto com a ‘família’, outra forma de distribuir o jogo dos poderes e prazeres, mas também indicam regiões de alta saturação sexual com espaços ou ritos privilegiados, como a sala de aula, o dormitório, a visita ou a consulta. Poder e prazer não se anulam nem voltam um contra o outro, seguem-se e se entrelaçam através de mecanismos complexos e positivos, de excitação e de incitação: nunca tantos centros de poder, jamais tanta atenção manifesta e prolixa, nem tantos contatos e vínculos circulares, nunca antes tantos focos onde estimular a intensidade dos prazeres e a obstinação dos poderes para se disseminarem mais além.

Parece que até Freud, o discurso sobre o sexo, dos teóricos e dos cientistas, não teria feito mais do que ocultar continuamente o que dele se falava: era uma ciência feita de esquivas, por ser incapaz ou por se recusar em falar do próprio sexo, referia-se, sobretudo, às aberrações, perversões, extravagâncias excepcionais, anulações patológicas, exasperações mórbidas. O sexo, ao longo do século XIX, parece ter se inscrito em dois registros de saber bem distintos: uma biologia da reprodução e uma medicina do sexo. Até o final do século XIX, além de dúbios prazeres, arrogava-se o poder sobre os imperativos da higiene, somando-se os velhos temores do ‘mal venéreo’ aos novos discursos sobre a assepsia. Em suma, os grandes mitos evolucionistas se expandiram para as instituições modernas de saúde pública pretendendo assegurar-lhes tanto o ‘vigor físico’ como a ‘pureza moral’ do corpo social, deste modo, prometia-se eliminar os portadores de taras, os degenerados e as populações abastardadas – em nome de uma urgência biológica e histórica, justificavam-se os racismos oficiais, então iminentes. Deve-se, portanto, considerar não o limiar de uma nova racionalidade, que a descoberta de Freud ou de outro tenha marcado, mas a formação progressiva desse “jogo da verdade e do sexo”, que o século XIX nos legou.

Existem, historicamente, dois grandes procedimentos para reproduzir a verdade do sexo. Por um lado as sociedades (China, Japão, Índia, Roma, árabe-muçulmanas) que se dotaram de uma ars erotica: a verdade é extraída do próprio prazer, encarado como prática e recolhido na experiência; ele deve ser reconhecido como prazer, segundo sua intensidade, sua qualidade específica, sua duração, suas reverberações no corpo e na alma. Este saber deve recair sobre a própria prática sexual. Nossas civilizações à primeira vista não possuem uma ars erotica. Em compensação parece ser a única a praticar uma scientia sexualis. Ou melhor, só a nossa sociedade desenvolveu, ao longo dos séculos, para dizer a verdade do sexo, procedimentos que se ordenam em função de uma forma de poder-saber rigorosamente oposta à arte das iniciações e ao segredo magistral – a confissão. A confissão é um ritual de discurso onde o sujeito que fala coincide com o sujeito do enunciado, além de se desenrolar numa relação de poder que se baseia na presença de um parceiro, que não é simplesmente um interlocutor, mas a própria instância que requer a confissão: impõe-na, avalia-a e intervém para julgar, punir, perdoar, consolar, reconciliar. A confissão é também, pois um ritual onde a verdade é autenticada pelas próprias resistências que se teve de suprimir para que ela pudesse se manifestar, enfim, trata-se de um ritual onde a enunciação em si produz em quem articular modificações intrínsecas: inocenta-o, resgata-o, purifica-o, livra-o de suas faltas. Se o homem ocidental tornou-se um animal confidente isso ocorreu porque a confissão da verdade se inscreveu no cerne dos procedimentos de individualização do poder, mas principalmente porque a confissão não era para ser espontânea ou imposta por alguns imperativos interiores, era para ser extorquida: desencadeava-se na alma ou era arrancada do corpo.

Dizendo poder, não significa que o ‘Poder’ seja concebido como um conjunto de instituições e aparelhos garantidores da sujeição dos cidadãos em um Estado determinado. Em primeiro lugar, o poder não se adquire nem se possui, mas se exerce a partir de inúmeros pontos e em meio a relações desiguais e móveis. Em segundo lugar, as relações de poder não são exteriores, mas imanentes e possuem lá onde atuam um papel produtor. Em terceiro lugar, o poder não vem de baixo, as correlações de forças são múltiplas e são formadas na mesma medida em que atuam nos aparelhos de produção, nas fábricas, nos grupos restritos e instituições, assim podem formar uma linha de força geral ao atravessar os afrontamentos locais e os ligando entre si. Em quarto lugar, lá onde há poder há resistência, afirma-se que estamos necessariamente ‘no’ poder e que dele nunca se escapa. Daí o caráter relacional das relações de poder: elas não podem existir senão em relação a uma multiplicidade de focos de resistência que representam o papel de alvo, de apoio, saliência que permite a preensão – esses pontos de resistência estão presentes a toda a rede de poder. Enfim, as relações de poder são distribuídas de modo irregular: os pontos, os nós, os focos de resistência disseminam-se com mais ou menos densidade no tempo ou no espaço, às vezes provocando o levante de grupos ou indivíduos de maneira definitiva, inflamando certos pontos nos corpos, certos momentos da vida, certos tipos de comportamento.

Parte-se do que se pode chamar de ‘focos locais’ de poder-saber, por exemplo, as relações que se estabelecem entre penitente e confessor, ou fiel e diretor de consciência e, sob o signo da carne, diferentes formas de discursos (exame de si mesmo, interrogatórios, confissões, interpretações, entrevistas) veiculam formas de sujeição e de esquemas de conhecimento. Da mesma forma que o corpo da criança vigiada e cercada em seu berço, leito ou quarto, por toda uma ronda de parentes, babás, serviçais, pedagogos e médicos, todos atentos às mínimas manifestações de seu sexo, constitui, a partir do século XIX, outro ‘foco local’ de poder-saber. Nenhum ‘foco local’, nenhum esquema de transformação poderia funcionar se, através de uma série de encadeamentos sucessivos, não se inserisse em uma ‘estratégia global’. De todo forma, o dispositivo familiar, no que tinha de mais insular e heteromorfo, pôde servir de suporte às grandes manobras pelo controle da natalidade, pelas incitações populacionais, pela medicalização do sexo e a psiquiatrização de suas formas não genitais. Não existe uma estratégia única, global, válida para toda a sociedade e uniformemente referente a todas as manifestações do sexo, mas parece possível distinguir, a partir do século XVIII, quatro conjuntos estratégicos: (1) a histerização do corpo da mulher; (2) a pedagogização do sexo da criança; (3) socialização das condutas de procriação; (4) a psiquiatrização do prazer perverso. Se a preocupação com o sexo aumentou ao longo do século XIX, quatro figuras se esboçaram como objetos privilegiados de saber e alvos ou pontos de fixação de empreendimentos do poder: a mulher histérica, a criança masturbadora, o casal malthusiano e o adulto perverso, cada uma dessas figuras tornou-se correlativa a uma dessas estratégias, que percorreram ou utilizaram o sexo das crianças, dos homens e das mulheres.

Deve-se ver a burguesia, a partir da metade do século XVIII, empenhada em se atribuir uma sexualidade e constituir para si, a partir dela, um corpo específico – um corpo de ‘classe’ com uma saúde, uma higiene, uma descendência, uma raça. Foi na forma do sangue, isto é, da antiguidade das ascendências e do valor das alianças e da saúde de seu organismo, que a burguesia olhou para assumir um ‘corpo’: o sangue da burguesia foi o seu próprio sexo. A preocupação da burguesia com o seu legado genealógico não deixou de ocorrer sob influência de alguns preceitos biológicos, médicos, eugênicos. Trata-se de uma espécie de racismo embrionário, dinâmico e em expansão, tendo que esperar até meados do século XIX para dar os frutos que chegamos a assistir com a eclosão das primeiras guerras do século XX. O sangue absorveu o sexo, enquanto os primeiros sonhos de aperfeiçoamento da espécie deslocaram todo o problema do sangue para uma gestão bastante coercitiva do sexo. Ocorre que, a partir da segunda metade do século XIX, a temática do sangue foi chamada a sustentar o tipo de poder político que se exerce através dos dispositivos de sexualidade. O racismo, em sua forma estatal, moderna, biologizante, se forma neste ponto: toda uma política do povoamento, da família, do casamento, da educação, da hierarquização social, da propriedade e uma longa série de intervenções permanentes ao nível dos corpos, das condutas, da saúde, da vida cotidiana, receberam justificação em função de proteger a mítica pureza do sangue e fazer triunfar a raça. Para M. Foucault, “o nazismo foi, sem dúvida, a combinação mais ingênua e mais ardilosa dos fantasmas do sangue com os paroxismos de um poder disciplinar”. Trata-se de uma sociedade disciplinar deste tipo, capaz de suportar uma ordenação eugênica sob uma estatização ilimitada e acompanhada pela exaltação onírica de um sangue superior, mas que implicava necessariamente o genocídio sistemático dos outros e o risco de expor a si mesmo a um sacrifício total.

Direito de morte, poder sobre a vida, com efeito, surtem do golpe do sangue sobre o sexo – um genocídio justificado por um surto em ser uma raça superior? O direito de vida e morte sempre esteve condicionado à defesa de um soberano e à sua sobrevivência. O direito de vida e morte é um direito assimétrico: o soberano só exerce seu direito sobre a vida na medida em que exerce seu poder de matar ou contendo-o. Formula-se uma espécie de direito de causar a morte e de deixar viver. Este era um tipo de direito de apreensão das coisas, do tempo, dos corpos e da vida – culminava com o privilégio de se apoderar da vida para depois suprimi-la. Esse é o formidável poder de morte, onde os massacres se tornaram vitais, como gestores da vida e da sobrevivência de corpos e raças que tantos regimes puderam travar tantas guerras, causando a morte de tantos homens, sob o poder de expor toda uma população à morte geral. Pode-se dizer que esse velho direito de causar a morte e deixar viver foi substituído por um poder de causar a vida ou devolver à morte. A velha potência da morte em que se simbolizava o poder soberano é agora recoberta pela administração dos corpos (anátomo-política do corpo humano e suas disciplinas) e pela gestão calculista da vida (biopolítica da população em uma série de intervenções e controles reguladores). Nesse pano de fundo, compreende-se, pois a importância assumida pelo sexo como foco de disputa política, se não é ele afinal que está na articulação dos dois eixos ao longo dos quais se desenvolveu toda a ‘tecnologia política da vida’: de um lado, faz parte das disciplinas do corpo (adestramento, intensificação e distribuição das forças, ajustamento e economia de energia) e, do outro, o sexo pertence à regulação das populações, como na reprodução da espécie, no planejamento familiar, no dispêndio e por todos os efeitos globais que induz. O sexo é, portanto, acesso à vida corpo e, ao mesmo tempo, à vida da espécie.

A Parte Obscura de Nós Mesmos: uma História dos Perversos (Elisabeth Roudinesco)

Demarca-se o solo onde fecunda o povo dos perversos... Onde começa a perversão? Eis uma questão que este livro tenta responder, onde atesta a história incessantemente reinventada dos grandes ‘criminosos perversos’ (Gilles de Rais [Barba Azul]; George Chapman [Jack, o Estripador]; Erzebet Bathory [a Condessa de Sangue]; Peter Kürten [o Vampiro de Düsseldorf]): infindavelmente representados em romances, contos, filmes ou monografias, essas ‘criaturas malditas’ suscitam, por seu status estranho, um fascínio recorrente. O desenrolar dessa história pôde ser contado através de cinco capítulos abordados sucessivamente: (1) a época medieval – com Gilles de Rais, os santos místicos, os flagelantes; (2) o século XVIII – em torno da vida e da obra do marquês de Sade; (3) o século XIX – o da medicina mental, com sua descrição das perversões sexuais e sua obsessão pela criança masturbadora, pelo adulto perverso e pela mulher histérica; (4) por fim, o século XX – em que se opera, com o nazismo, a metamorfose mais abjeta da perversão (com ênfase nas confissões de R. Höss a respeito de Auschwitz); (5) em nossos dias – a perversão acaba por qualificar todo um distúrbio de identidade, um estado de delinquência, um desvio, sem que com isso cesse de se desdobrar em múltiplas facetas, entre outras, zoofilia, pedofilia, terrorismo e transexualidade.

Quando os ‘grandes rituais sacrificiais’ – da flagelação à devoração de excrementos – foram adotados por alguns místicos tornaram-se a prova de uma ‘santa exaltação’: aniquilar o corpo físico ou expor-se aos suplícios da carne tornou-se uma regra dessa estranha vontade de metamorfose, que alguns diziam ser a única capaz de efetuar a passagem do abjeto ao sublime. De um lado, os santos – sob o impulso de uma interpretação cristã do livro de Jó – tiveram como dever primordial destruir neles toda forma de desejo de fornicação. De outro, as santas que se condenaram a uma esterilização radical de seus ventres doravante pútridos, tanto pela incorporação de dejeções quanto pela exibição de seus corpos torturados. A santa mártir, porque nascera mulher, era vista como impura e devia purificar-se na metamorfose de um sangue, destinado à fecundidade, a um sangue ofertado a Cristo.

[1] Fiel servo de Deus e herói de uma tradição semítica, Jó vivia rico e feliz, mas Deus permitiu que Satã botasse sua fidelidade à prova. Subitamente perdeu bens e filhos, Jó deitava no meio dos excrementos, coçando suas chagas e lastimando a injustiça de sua desgraça. Três amigos sustentavam, no entanto, que seu sofrimento era necessariamente decorrências de seus pecados: ele gritava por inocência sem compreender por que Deus castigava um inocente – uma vez havida a queixa, sem lhe responder mais nada, Deus lhe restituiu fortuna e saúde. Nesta perspectiva, a salvação do homem reside na aceitação de um sofrimento incondicional, razão pela qual a experiência de Jó ter sido capaz de abrir caminho para as práticas dos mártires cristãos, sobretudo das santas que farão da destruição do corpo carnal uma arte de viver e das práticas mais degradantes a expressão do mais consumado heroísmo.

[2] Dizia-se ser tão suscetível que a visão de menos impureza sobressaltava-lhe o coração, Marguerite-Marie Alacoque (1647-90), uma visitandina francesa, conhecida por seus grandes êxtases místicos que viveu, sobretudo no convento de Paray-le-Monial. Mas quando Jesus chamou-a à ordem, ela só conseguiu limpar o vômito de uma doente transformando-o em sua comida. Mais tarde, sorveu as matérias fecais de uma disentérica declarando que aquele contato bucal suscitava nela visões de Cristo mantendo-a com a boca colada em sua chaga; Catarina de Siena (1347-80), após ter se rebelado contra a família, ingressou na religião nas irmãs penitentes de São Domingos. Cultivou os êxtases e as mortificações e foi canonizada em 1461. Catarina de Siena afirmou um dia não ter comido nada tão delicioso quanto o pus dos seios de uma cancerosa; A história da santa, Liduína de Schiedam (1380-1433), no contexto histórico do fim do século XIV e principio do XV, retraça o itinerário dessa mística holandesa, que quis salvar a alma da Igreja e de seus fiéis transformando seu corpo num monturo. Horrorizada com a possibilidade de se casar, desde os 15 anos, soçobrou na doença. Durante 38 anos levou a vida de uma grabatária, impondo a seu corpo terríveis sofrimentos: gangrena, epilepsia, peste, fratura dos membros. Como Jó, Catarina viveu numa tábua coberta de esterco, amarrada a uma correia de crina que fazia de sua pele uma chaga purulenta.

Nascido em 1404, Gilles de Rais tornou-se um criminoso trágico, mas pertencia à família nobre e muito rica – só que o mundo em que ele viveu (o da Guerra dos Cem Anos) achava-se entregue à pilhagem: transformando todos em predadores, os herdeiros da antiga cavalaria acabaram por ter gosto pela crueldade e pelo assassinato. Gilles de Rais foi iniciado ao crime aos 11 anos. Aos 16 anos, Gilles casou-se com Catarina de Thouars, neta da segunda mulher de seu avô. Em 1424, Gilles apoderou-se da fortuna de seu avô e pensou em dilapidá-la em despesas feéricas e bebedeiras desvairadas. Contrariando todas as expectativas, o rapaz revelou-se um brilhante líder guerreiro, abandonando então o crime para se pôr a serviço de uma personalidade oposta a sua: Joana d’Arc. Em Orléans, além de Tourelles, em Jargeau depois em Patay, Gilles de Rais guerreou bravamente, até que em 17 de julho de 1429, trouxe a abadia de Saint-Remi a ampola contendo o ‘Sagrado Crisma’, necessário a unção real. Depois, ao lado de Joana, assistiu em lágrimas à sagração de Reims. Naquele dia foi nomeado marechal da França: Gilles de Rais foi um soberbo líder guerreiro, se Joana d’Arc, no momento exato, quis tê-lo ao seu lado, foi porque sabia disso. Julgada culpada de um crime perverso por se travestir em homem, apontada como herética, relapsa, idólatra, Joana foi acusada, a despeito de sua virgindade, de envolvimento com o Diabo. Em meio às chamas, Joana entregou-se a Jesus, mas vinte anos mais tarde, em 7 de julho de 1456, ela foi canonizada pelo papa Bento XV em 1920. Depois da morte de seu avô, em novembro de 1432, Gilles de Rais embrenhou-se no crime, sequestrava crianças das famílias camponesas em Champtocé, Tiffauges, Machecoul e lhes impunha as piores sevícias (retalhava os corpos, arrancava os órgãos, corações, dando-se o trabalho de sodomizá-las na hora de sua agonia). Somente em 1440 Gilles de Rais foi levado ao banco dos réus, mas negou todas as acusações, passando às confissões, ele declarou que seus crimes foram cometidos por iniciativa própria, conforme a inclinação de seus sentidos, sem que seus comparsas tivessem a menor participação neles. A princípio excomungado, Gilles de Rais foi reintegrado ao seio da Igreja, depois enforcado e queimado. Gilles perverteu não apenas a ordem da Lei, mas a própria ordem da lei do crime: ao cometer crimes sexuais (crimes perversos, vãos, ‘contra a natureza’ e por puro deleite) que não visavam nem destruir um inimigo nem eliminar um adversário, apenas aniquilar o humano no homem – Gilles tornou-se o agente de seu próprio extermínio.

Sade nunca descambou para o crime radical, uma vez que foi antes com a escrita do que com atos que realizou a sua utopia de inversão da Lei. Ao dar a sociedade um fundamento que inverta a Lei, Sade pretendeu-se o grande domesticador de todas as perversões e distorceu o Iluminismo numa ‘filosofia do crime’ e a libertinagem numa dança da morte – como fundamento para a República, ele preconizou uma tríplice inversão da lei que rege as sociedades humanas: obrigação da sodomia, do incesto e do crime. Segundo esse sistema os homens não deviam ser excluídos da possessão das mulheres, mas nenhum poderia ter uma em particular, daí decorre que as mulheres deviam não apenas se prostituir, como não aspirar senão à prostituição vida afora. Um modelo social fundado na generalização da perversão foi proposto por Sade: ‘para conciliar o incesto, o adultério, a sodomia e o sacrilégio’, dizia ele, ‘o pai deve enrabar a sua filha casada com uma hóstia’. Como ‘príncipe dos perversos’, ele ficou confinado durante 28 anos sob três regimes diferentes: Vincennes; Charenton, passando pela Bastilha. Instalado na casa da sogra em 1763, Sade infligiu toda sorte de baixezas, surras e injúrias à sua esposa, que se curvou às exigências maternas: condenado à morte por crime, blasfêmia, sodomia, envenenamento, Sade foi preso a pedido de sua sogra, a princípio no torreão de Vincennes, em 1777, depois na Bastilha em 1784, mas foi transferido para o hospício de Charenton em 2 de julho de 1789. Em 1790, Sade pôde sair do hospício de Charenton justamente no momento em que sua esposa tomava a decisão de se divorciar. Em razão de seu ateísmo e por ser autor suspeito de Justine, Sade foi condenado à morte em março de 1794, mas foi preciso detectar tanto no homem Sade como também em sua obra, o vício capaz de permitir confiná-lo à acusação de ser louco. A partir do primeiro quartel do século XIX, o nome de Sade repercutiu como um paradigma no cerne da definição de perversão, o que atesta a criação do neologismo ‘sadismo’ em 1838.

Todas as práticas sexuais foram laicizadas em 1810, com o Código Penal francês, nenhuma delas constitui mais objeto de delito ou crime desde que exercidas em privado e consentidas por parceiros adultos. Em compensação, na literatura médica do século XIX, sob a sexologia e a psiquiatria emergentes, tornou-se perverso e, portanto, patológico, aquele que escolhe como objeto o mesmo que ele (o homossexual), ou ainda a parte do corpo ou o desejo de um corpo que remete ao seu próprio (o fetichista, o coprófilo); aqueles que possuem ou penetram o corpo do outro sem consentimento (o estuprador, o pedófilo); os que destroem ou devoram ritualmente seus corpos ou o de um outro (sádico, masoquista, antropófago, necrófago, necrófilo, escarificador, mutiladores); os que travestem sua identidade e seu corpo (travesti); os que exibem ou apreendem o corpo como objeto de prazer (exibicionismo, voyerismo, narcísico, auto-erotismo); aquele que desafia a barreira das espécies (o zoófilo); que nega as leis da filiação e da consanguinidade (incesto); que contraria a lei da conservação da espécie (o onanista). No vasto catálogo das perversões, a criança, como uma criatura peculiarmente sexuada, foi vista por sua ‘perversão polimorfa’ ou por seu ‘auto-erotismo ilimitado’: embora não pudessem ser declaradas loucas, as crianças podiam muito bem ser designadas como perversas. Na Europa de 1850 a 1900, toda uma perseguição médica ocorreu em direção da criança masturbadora e da mulher histérica que tinham em comum preferir a sexualidade auto-erótica a uma sexualidade procriadora. A mulher histeria, o adulto homossexual e a criança masturbadora serviram de suporte a todo tipo de fantasias centradas no terror de uma possível perversão da família e da ordem procriadora.

Ao longo da segunda metade do século XIX, as mais altas autoridades da ciência médica alemã inventaram uma ‘arte de governar’ os povos (biocracia e polícia dos corpos) não com o auxílio de uma política assentada numa filosofia da história, mas por meio das ciências da vida, das ciências ditas humanas, na época, vinculadas à biologia, onde os termos ‘higiene racial’ e ‘degenerescência’ encontraram lugar no discursivo político. A partir de 1920, numa Alemanha vencida, os herdeiros dessa biocracia reivindicaram a aplicação deste programa, incluindo o da eutanásia e o da esterilização. ‘Programa Perverso’, em que a ‘higiene racial’ repousava primordialmente na pretensão ao controle totalizante da sexualidade humana, em cujo programa o ‘genocídio’ tomou um lugar próprio – a destruição física de uma população considerada indesejável em virtude de seu pertencimento a uma raça, espécie ou grupo. Nesse ‘sistema genocida’ correu-se o risco de reproduzir uma espécie de ‘robôs esquizóides assassinos’: Höss, Eichmann, Himmler e Göring, além de serem genocidas e dignatários nazistas, tiveram como ponto comum renegar os atos que cometiam, ou negavam seus crimes (extermínio, torturas, profanações de cadáveres, execuções, experimentações médicas, etc.) ou refutavam a sua existência, como se ‘obedecer a ordens’ contribuísse para inocentá-los. Sistema perverso, o nazismo teve por objetivo eliminar o que ele apontava como ‘povo de perversos’, os judeus, julgados como o mais perverso dentre os demais.

Os místicos haviam alimentado a fantasia de aniquilar o corpo para oferecer a Deus o espetáculo da sua subjugação libertadora. Os libertinos e Sade tinham, contra Deus, promoveram o corpo como único lugar do gozo. Os sexólogos haviam se inclinados a domesticar seus prazeres e seus furores criando um ‘catálogo das perversões’. Os nazistas fizeram da ciência um instrumento de um gozo do mal, permitindo-lhes reduzir a coletividade dos homens a dejetos contabilizados e coisificados. Em 1987, sem a menor a discussão teórica, o termo ‘perversão’ desapareceu do léxico médico-psiquiátrico para ser substituído por ‘parafilia’. Por Richard Von Krafft-Ebbing, em seu Psychopatia sexualis, as descrições das perversões sexuais efetuaram-se sob a imagem do grotesco, do obscuro, do monstruoso, da compaixão. Se Freud reabilitou a ideia segunda a qual a perversão é necessária à civilização, por constituir a parte maldita das sociedades e a parte obscura de nós mesmos. Como um termo fora do léxico médico ou não, a perversão é exclusivamente humana, ou seja: “o homem”, dizia Darwin, “é a única criatura na qual podemos reconhecer a faculdade moral... E isso constitui a maior de todas as distinções que se pode fazer entre os animais e os homens”.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

A Visão em Paralaxe (Slavoj Zizek) - I

A filosofia surge nos interstícios de comunidades diferentes, como se houvesse um espaço frágil de troca e de circulação entre elas, espaço onde falta qualquer espécie de identidade positiva. Se não fosse da ‘dúvida fundamental’ de Descartes exatamente a experiência multicultural de que a nossa própria tradição ocidental não é melhor que a tradição cultural dos outros, tida como excêntrica. Parece que a luta dos contrários, que rege o materialismo dialético, foi colonizada ou ofuscada pela noção de polaridade dos contrários disseminada pela Nova Era – neste caso, o primeiro passo dado foi o de substituir essa questão da polari-dade dos opostos pelo conceito de ‘tensão’, lacuna, não-coincidência inerente ao próprio Um. Este livro não deixa de se basear na estratégia político-filosófica de chamar essa ‘lacuna’ ou ‘tensão’, que visa a separar o Um, pela palavra ‘paralaxe’. Deste modo, o materialismo será forçado a perceber uma ‘torção reflexiva’, por meio da qual eu mesmo me incluirei em toda imagem constituída por mim: neste caso, trata-se do materialismo desde que isso signifique que a realidade que vejo, nunca será ‘inteira’, porque ela sempre vai conter uma mancha, um ponto obscuro, que indicará minha presença, minha inclusão nela.

A mudança é puramente paraláctica, ou seja, trata-se menos de uma mudança do objeto do que uma mu-dança de nossa atitude perante o objeto visto. Ressaltam-se dois tipos de objetos: o ‘hitchcockiano’ e o ‘Odradek’, pois: (1) Como uma materialização de um investimento libidinal intersubjetivo, como se fosse para os olhos de alguém que a observação o fez olhar, ou seja, isso apresenta um objeto diretamente como transmissão de uma tensão intersubjetiva, já que tal objeto nunca é possuído nem manipulado – o próprio objeto (hitchcockiano) que determina o que nós somos. Assim sua posse nos afeta de maneira incontrolável. Transfere então a ênfase das pessoas para o objeto, de tal forma que a troca dos olhares dá-se primei-ramente, só depois, a câmera se aproxima lentamente para o objeto, ponto central da cena: para criar o suspense proto-hitchcockiano, o objeto – ponto central da cena, ponto focal libidinal – só é citado no fim, sua menção é quanto mais retardada; (2) Descreve-se uma das realizações mais fundamentais de F. Kafka – o ‘Odradek’: à primeira vista, um carretel de linha chato e em forma de estrela, ou melhor, pedaços velhos de linha (amarrados, enovelados) de vários tipos e cores. Uma pequenina cruz de madeira se projeta do meio da estrela e outra varinha se une a ela em ângulo reto. Nessa última varinha, de um lado, e de uma das pontas da estrela, de outro, a coisa consegue ficar de pé, como se realmente tivesse duas pernas. O Odradek é muito hábil e raramente se consegue apanhá-lo, com frequência ele se esconde nos corredores, nos armários, nas escadas, mas ninguém o vê: o Odradek é, portanto, um objeto transgeracional (livre dos ciclos da geração), imortal, fora da finitude, fora do tempo, que não demonstra nenhuma atitude ligada a metas, propósitos, utilidades, mas induz à ideia que sobreviverá a nós.

Retirados do universo cinematográfico, o ‘objeto hitchcockiano’, de um lado, e o ‘Odradek’, do universo literário, de outro, não deixam de ser assinalados em termos éticos e estéticos por S. Zizek como signifi-cantes. Uma série de filmes é disposta para compor o imaginário das significações que alguns conceitos são levados a obter através da ótica estética de S. Zizek: a) A cena de Coração Selvagem, de David Lynch, quando Willem Dafoe pressiona Laura Dern num quarto solitário e escuro a repetir: “Fala ‘me fode’!” – a extorsão da palavra que assinalaria o consentimento para o ato sexual. Quando ela concorda e repete a frase desejada, ele dá um sorriso simpático e diz que hoje não poderia, porque estava com pouco tempo, precisava ir... Trata-se de um ‘estupro em fantasia’? Uma recusa da realidade que humilha a vítima ainda mais, sob uma fantasia que é estimulada e abandonada num mesmo gesto? b) Nos dois últimos filmes do cineasta Andrei Tarkovski, Nostalgia e O sacrifício, o ato de sacrifício sem sentido são profundamente kier-kegaardianos, ato puro e insensato que restaura o sentido de nossa vida terrena; c) Galante e Sanguinário, um filme de Delmer Daves, clássico tema de faroeste, em que o Ato mais importante não é realizado pelo personagem central, mas sim sobre um personagem coadjuvante, que recai a o foco da provação ética. Conta-se a história de um fazendeiro pobre (Van Heflin), que por 200 dólares aceita escoltar um bandido (Glenn Ford) com a cabeça a prêmio do hotel, onde está, até o trem, que desembarcará na prisão. O fazen-deiro precisa desse dinheiro para salvar seu gado da seca, tanto que durante todo o filme, a pessoa que parece ser posta a prova (ética) é o próprio fazendeiro. No entanto, na última cena toda a percepção do filme muda: perto do trem, prestes a sair da estação, o bandido e o fazendeiro se veem frente a frente com a gangue, que aguarda o momento certo para atirar no fazendeiro e libertar seu chefe: quando a situação parece desesperada para o fazendeiro, o bandido de repente diz: ‘Confie em mim! Vamos pular juntos do vagão!” Em resumo, quem foi posto em provação ética acabou sendo o bandido e não o fazendeiro como se esperava; d) uma das cenas de Matrix que se destaca é a que Nero tem escolher entre a pílula azul (Prazer, a persistência na ilusão regulada pela Matrix) e a vermelha (Verdade, o despertar traumático no Real): ele escolhe a vermelha, ao contrário do informante da Matrix infiltrado entre os rebeldes que, em um cena de diálogo com Smith (agente da Matrix), pega um pedaço de carne com seu garfo e diz: ‘sei que é apenas uma ilusão virtual, mas não me importo, porque o gosto é real’ – assim ele segue o princípio da ilusão, onde é preferível permanecer na ilusão mesmo sabendo que é só uma ilusão. Em vez de sermos escravizados pela Matrix, podemos nos libertar? Tanto aprendendo com suas regras como mudando as regras do nosso universo físico? No entanto a escolha não se dá apenas entre a verdade amarga e a ilusão prazerosa, mas antes a dois modos de ilusão: o traidor está preso à ilusão de nossa ‘realidade’, dominada e manipulada pela Matrix.

Trata-se sempre do “gesto ético” elementar que é um gesto negativo: trata-se de estratégias que visem a bloquear a nossa tendência direta. Seja por uma ‘intuição hegeliana’ de Benjamin Libet – de como o ato elementar de liberdade, a manifestação do livre-arbítrio é dizer não, isto é, interromper a execução de uma decisão – assim, a liberdade não é ‘fazer que se quer’, mas ‘fazer o que não se quer’ frustrar a realização espontânea de um ímpeto. Seja quando Daniel Wegner, de modo bem kantiano, afirma que ‘uma ação voluntária é algo que a pessoa pode fazer quando lhe pedem’, a implicação é precisamente que obedecemos a uma ordem que vai contra a nossa tendência espontânea.

Certa ‘substantivação psicológica’, vista por Seymour Chatman, desvela uma das características de Henry James, através do impacto da história sobre as esferas mais íntimas da experiência, até porque as ideias e percepções são mais entidades que ações, mais coisas que movimentos: de tal modo que as abstrações psicológicas adquirem vida própria – são os verdadeiros agentes, aqueles que interagem. Talvez seja por isso que um capítulo deste livro tenha sido intitulo: A Escolha de Kate, ou o materialismo de Henry James. Materialismo percebido quando o sujeito torna-se uma espécie de recipiente vazio – um espaço no qual pode se localizar as coisas. A própria substantivação de verbos e predicados operada por H. James, sua transformação em agentes substantivos, é que dessubstancializa o sujeito, reduzindo-o a um espaço vazio formal no qual interage a multiplicidade de agentes. Trata-se, pois de reler As asas da pomba como a his-tória de como Milly, depois de saber da trapaça da qual se tornou alvo, não sabotou nem se vingou quando o ato se consumou, levando a história até o final. O romance de H. James consuma-se quando um co-nhecimento indesejado é imposto às pessoas, questiona-se: como esse conhecimento afetará seus atos? O que fará Milly quando souber que Densher e Kate estão ligados? Quando souber da tramóia de Densher ao demonstrar amor por ela? Como Densher vai reagir quando souber que Milly conhece o seu plano com Kate? A questão está ligada a Milly, então, ao saber da tramóia, ela reagirá com um gesto de sacrifício e deixa a sua fortuna para Densher? O ‘oferecimento de Milly’, não deixa de ser um oferecimento feito para ser negado. Ao oferecer-lhe uma riqueza da mais profunda bondade ou aceita e será marcado por uma mancha indelével de culpa e corrupção moral, ou se fizer o que é certo e rejeitá-la, você também não estará sendo íntegro – sua própria rejeição servirá como reconhecimento de sua culpa. Acontece que o objetivo de Milly é destruir a ligação entre Dansher e Kate: ao assumir e encenar livremente a própria morte como sacrifico de autodestruição que deveria permitir, junto com a herança, que Densher e Kate vivessem felizes para sempre. Este gesto de Milly acabava arruinando a própria possibilidade de eles serem felizes. Ocorre que se Milly deixar sua fortuna para eles, ao mesmo tempo, torna-se eticamente impossível para eles acei-tarem esse presente.

O ‘Deus de Kierkegaard’ deve ser compreendido como um ponto extremo do idealismo. O ‘Deus de Kierke-gaard’ está correlacionado à nossa relação com a realidade, como inacabada, em ‘devir’. Assim, Deus será o nome do Outro Absoluto contra o qual podemos medir a total contingência da realidade – como tal, ele não pode ser concebido como nenhum tipo de Substância, como Coisa Suprema. Se não há medida em comum entre a nossa vida e o divino, uma ‘renúncia sacrificatória’ não poderia fazer parte de uma troca com Deus, assim sacrificamos tudo (tudo em nossa vida, a sua totalidade) por nada. Acontece que se exige do homem algo que seja o maior sacrifício possível ou um exercício que se dedique por toda a sua vida como sacrifício, mas se caso lhe perguntarem: ‘Sacrifício para quê?’ Não haverá ‘para quê’? Nada vai garantir que nosso sacrifício será recompensado ou que daremos um sentido real à nossa vida. Trata-se de um ‘salto de fé’: para o observador externo só pode parecer um ato de loucura. Então, depois de sacrificar tudo (minha felicidade, honra, riqueza) pela Causa, de repente percebe-se que se perdeu a própria Causa – a alienação é, portanto, redobrada, ‘refletida em-si’. Quando se sacrifica tudo pela Causa, acaba-se perdendo (traindo) a própria Causa, quando se aliena sem restrições ao Simbólico, acaba-se sendo reduzido a uma mancha excrementicial desse Simbólico produzido.

A Visão em Paralaxe (Slavoj Zizek) - II

Antes de sua morte, como Mestre vivo, Cristo tornou-se excessivamente ‘universal’, transmitindo uma mensagem universal (de amor etc.) e ‘exemplificando-a’ com seu comportamento e seus atos. Somente com sua morte na cruz que Cristo, de apenas mensageiro divino, tornou-se diretamente Deus, ou seja, quando se fechou a lacuna entre o conteúdo universal e sua representação. Assim, de volta aos grandes Mestres, como Buda: os budistas não revelam sua verdade no sentido cristão estrito apenas exemplificam (com sua vida modelar) o ensinamento universal que disseminam – Buda era budista e até um budista exemplar, na medida em que Cristo não era cristão, ele era o próprio Cristo em sua absoluta singularidade. Resta que ‘o maior ensinamento ou lição’ de Cristo tenha sido cindir, de imediato, a sua própria existência como indi-víduo que é, simultaneamente, homem e Deus. Superposição direta, pois, do Universal e do Singular: Cristo, o próprio Deus, criador de todo o nosso universo, caminhava por aí como um indivíduo comum. Como conciliar, no entanto, a existência de um Deus bom e onipresente com o terrível sofrimento de milhões de inocentes? De que modo conciliar, então, a existência de Deus com um mal extremo semelhante a shoah? O paradoxo da shoah consiste no seguinte desafio: ‘se existe Deus e se ele é bom, como pôde permitir que tamanho horror acontecesse?

É necessário um líder para deflagrar o entusiasmo pela Causa, para provocar a mudança radica da posição subjetiva de seus seguidores, para ‘transubstanciar’ sua identidade. Apesar do poder quase absoluto que gozavam, os governantes passavam por atribulações éticas e ideológicas o que os levavam a viver num estado permanente de guerra contra os próprios súditos e numa posição que parecia ilegal e obscena. Se-guem-se alguns exemplos militares sobre esse avesso obsceno do poder, a partir das questões sobre o roubo, a homofobia e a tortura (sobre o caso Abu Ghraib no Iraque):

(1) durante um treinamento militar, adolescentes recebiam comida insuficiente, de propósito, para que tivessem que roubá-la; mas se fossem pegos seriam severamente punidos – não por terem roubado, mas por terem sido pegos, sendo forçados a aprender a arte de roubar em segredo, a cometer um ato clandestino de transgressão;

(2) os soldados identificados como homossexuais são isolados e surrados diariamente, mas essa homofobia explícita é acompanhada por uma rede implícita excessiva de insinuações homossexuais, piadas de caserna, práticas obscenas, etc. Assim, a intervenção militar da homofobia não só se concentra na repres-são explícita da homossexualidade, mas perturba as práticas homossexuais implícitas, antes, move esse ‘subterrâneo’, transformando-o;

(3) As torturas de Abu Ghraib não deixavam de se situar como certo tipo de ‘práticas subterrâneas’, ou seja, quando o Poder gera o seu próprio excesso e precisa aniquilar na mesma operação que deve imitar aquilo que combate. Assim, entra-se no domínio das operações secretas – daquilo que o Poder faz sem admitir, a propósito de Abu Ghraib. O comando do Exército dos Estados Unidos impõe uma garantia ‘ridícula’ de que não foi dada nenhuma ‘ordem direta’ para humilhar e torturar os prisioneiros. Não foi assim que as coisas foram feitas: não havia nenhum tipo de ‘ordem formal’, nada era por escrito, assim havia apenas uma ‘pressão não oficial’ (sugestões e diretivas) dada em particular, como se transmitisse um segredo sórdido;

(4) sobre a explosão do escândalo Abu Ghraib: a Cruz Vermelha Internacional bombardeou o comando do Exército norte-americano no Iraque, a partir de relatórios que constavam abusos em suas prisões militares, no entanto, esses relatórios foram ignorados. As autoridades não desconheciam os acontecimentos, somente admitiriam os crimes caso tivessem que enfrentar suas divulgações na mídia. Tanto que uma das medidas de prevenção foi proibir os militares norte-americanos de portar câmeras digitais e telefones celu-lares com vídeo, principalmente para que a circulação pública fosse evitada e não para impedir os seus atos. Destaca-se um contraste entre o ‘modo padrão’ de tortura sob o governo de Saddam e entre os norte-americanos: no regime de Saddam tratava-se de infligir a dor de maneira direta e violenta, enquanto os norte-americanos focavam-se em humilhações psicológicas, além disso, gravar a humilhação com uma câmera, incluindo os responsáveis pelas imagens (fazia parte do processo a dupla série de rostos sorrindo ao lado de corpos nus e contorcidos dos prisioneiros), em flagrante contraste com os sigilos das torturas de Saddam. Acontece que quando os norte-americanos obtinham as fotos dos prisioneiros iraquianos hu-milhados (nas telas e nas primeiras páginas dos jornais), a noção de direita dos ‘valores norte-americanos’ é que era exibida – o próprio deleite obsceno que sustenta o modo de vida dos norte-americanos. Tratava-se, portanto de um ‘choque’ entre a tortura violenta e anônima e a tortura como espetáculo midiático em que os corpos das vítimas serviam de pano de fundo anônimo para o ‘rosto americano inocente’ de sorriso estúpido dos próprios torturadores.

Identifica-se uma torção auto-reflexiva pelos carrascos nazistas para suportar os atos horrendos que co-metiam. É que a maioria desses carrascos se defendia mesmo sabendo que faziam coisas terríveis, como humilhações, sofrimentos e mortes às vítimas. O modo que se lidava com isso ficou conhecido como o ‘truque de Himmler’: “ao invés de (os torturadores) dizerem que coisas horríveis eu fiz com as pessoas”, deste modo os carrascos nazistas poderiam dizer – “Que coisas horríveis eu tive de ver na execução dos meus deveres, como essa tarefa pesa em meus ombros”. Truque de Himmler, ou seja, o deslocamento da culpa, onde o torturador absolve seus atos violentos na medida em que penaliza a sua obediência a uma ordem, o cumprimento de seu dever.

Considera-se que a constituição do Estado de Israel foi, do ponto de vista da Europa, a ‘solução final’ que se realizou sobre o problema dos judeus – o ‘livrar-se dos judeus’, alimentado pelos próprios nazistas. Em 26 de setembro de 1937, Adolf Eichmann e seu assistente embarcaram em Berlim num trem para visitar a Palestina: visitar Tel-Aviv com o intuito de coordenar organizações alemãs e judias para facilitar a imigra-ção dos judeus para a Palestina. Este foi o momento na II Guerra em que os alemães e os sionistas queriam que o máximo de judeus fosse para a Palestina: os alemães os queriam fora da Europa ocidental, enquanto os judeus queriam superar a quantidade de árabes na Palestina. Enfim, os nazistas e os judeus não deixaram de manter alguns interesses em comum.

Se o Poder estatal apenas representa os interesses de seus sujeitos, no nível da lei, o Estado serve a eles e está sujeito ao seu controle. No nível da responsabilidade da ‘mensagem pública’ parece haver uma com-plementaridade com uma ‘mensagem obscena’ (do exercício incondicional do Poder): ‘as leis na verdade não me restringem, não posso fazer com vocês o que eu quiser em absoluto, mas posso tratá-los como culpados se assim decidir... Posso destruí-los se assim quiser’. Excesso obsceno constituinte necessário da noção de soberania – aqui, a lei mantém sua autoridade se caso os súditos ouvirem nela o eco da auto-afirmação incondicional obscena. Com efeito, H. Arendt enfatizou a distinção entre o ‘poder político’ e o ‘mero exercício da violência’ (social): a distinção entre a Lei simbólica pública e seu complemento obsceno implica afirmar que não existe Poder sem violência – o Poder sempre tem de se basear numa mancha obscena de violência. Deste modo, não só a violência é o complemento necessário do poder (político), já que está sempre na raiz de toda relação de violência aparentemente ‘não política’.

Enfatizam-se três tipos de violência: a) Há passages à l’acte violentas que apenas comprovam a impotência do agente; b) há uma violência cuja verdadeira meta é garantir que nada mude realmente; c) o ato violento que muda de fato as coordenadas básicas de uma constelação – a partir do qual o gesto de subtração do “Preferiria não” de Bartleby (incapaz de fazer mal a uma própria mosca, cuja presença o tornaria mais insu-portável), sob o princípio que sustenta todo o movimento e o trabalho subsequente de construção que lhe dá corpo.

A Visão em Paralaxe (Slavoj Zizek) - III


Para Alain Badiou, hoje, o inimigo não se chama o ‘capital’ nem Império, chama-se Democracia. Afinal, para ele, o que impede o questionamento radical do próprio capitalismo é exatamente ‘a crença na forma democrática da luta contra o capitalismo’, ao contrário de insistir na ‘convicção de que não existe alterna-tiva ao domínio do lucro’, com efeito, isso iria ‘atrapalhar a emancipação política dos sujeitos’. Se a economia tem sido o terreno principal, então aí será decidida a batalha. Para se romper com o domínio do capitalismo global, contudo, a intervenção deveria ser política e não propriamente econômica.

Se hoje o mundo pode ser considerado ‘anticapitalista’ é porque alguns signos designam enunciados do tipo: o inimigo se tornou as grandes empresas em sua busca por lucro, mas o significante ‘anticapitalismo’ acaba por perder seu efeito subversivo na medida em que a confiança em certa substância democrática entre os homens norte-americanos para extinguir a ‘conspiração’: esse é o núcleo duro do universo capitalista global, seu verdadeiro Significante-Mestre: a democracia. A verdadeira democracia é encenada ou mesmo simulada à distância do Estado – ela questiona o Estado e convoca a ordem estabelecida a prestar contas, não para se livrar do Estado, por mais que isso seja um desejo democrático utópico e incontido: a Demo-cracia é convidada a melhorar e atenuar os efeitos maléficos da máquina estatal. Por um lado, a democra-cia supõe um mínimo de alienação: os que exercem o poder só podem ser responsáveis pelo povo se houver uma distância mínima de representação entre eles e o povo. Por outro, no ‘totalitarismo’, essa distância é eliminada, supõe-se que o Líder representa diretamente a vontade do povo ou que seja diretamente o que o povo ‘realmente é’, ou seja, a identidade dos desejos e interesses do povo. Se há algo de realmente verdadeiro no ‘totalitarismo’ é que a sua lógica deixa explícita e postula uma cisão no povo representado: a linha de separação entre o líder e o analista pode parecer imperceptível, mas se apresenta na diferença do ‘vínculo social perverso’, no qual o pervertido sabe o que o outro realmente quer.

A fórmula do ‘vínculo social perverso’ proferido por alguns analistas pode ser então assinalada da seguinte forma: o agente, o pervertido masoquista ocupa a posição do objeto-instrumento do desejo do outro e, desse modo, ao servir à sua vítima (feminina), postula-a como sujeito histerizado/dividido que ‘não sabe o quer’ - o pervertido sabe por ela (finge falar da posição de conhecimento sobre o desejo do outro), o que permitir servir ao outro – e o produto desse vínculo social é, enfim, o Significante-Mestre, ou seja, o sujeito histérico elevado ao papel de mestre (dominatrix) a quem serve o masoquista pervertido.

O Mestre é aquele que inventa um significante novo, o famoso ‘ponto de basta’ [point the capiton], que es-tabiliza novamente a situação e a torna legível. O gesto inicial do Mestre será então acrescentar um signi-ficante que passará a transformar a desordem em ordem, em ‘nova harmonia’. Deste modo, afirma-se que o ‘significante-mestre’ é uma espécie de ‘significante-reflexivo’ que preenche a própria falta de significante.

Kant escreveu que ‘o homem é um animal que precisa de um senhor’, no entanto o que Kant quer indicar que é enganosa a isca da própria necessidade de um senhor externo. Desta forma, compreende-se que o ‘homem precisa de um senhor para esconder de si mesmo o impasse de sua própria e difícil liberdade e responsabilidade por si mesmo’. Então, só um ser humano maduro e verdadeiramente esclarecido é quem não precisaria de um senhor, que poderia sustentar e assumir o pesado fardo de definir suas próprias limitações. Para Kant, no entanto, o ‘homem é um animal que precisa de um senhor’, isto significa que o homem é um animal histerizado e subjetivado, ou seja, um homem que não sabe mais o quer, um animal que precisa da figura de um Senhor em um Outro para lhe estabelecer limites, para dizer o que ele quer, um animal preso no jogo de provocações do Senhor.

O sujeito histérico que queixa de ser explorado, manipulado, vitimizado pelos outros – reduzido a um ‘objeto de troca’: para Lacan, essa posição subjetiva de vítima passiva das circunstâncias nunca é simplesmente imposta de fora ao sujeito, mas tem de ser endossada por ele, ao menos, minimamente. Embora o sujeito não tenha consciência de sua própria vitimização, essa talvez seja a ‘verdade inconsciente’ da experiência do sujeito que se coloque como uma vítima passiva das circunstâncias.

Nesta perspectiva, o ‘eu’ não deixa de ser uma entidade puramente performática. O ‘eu’ não é diretamente meu corpo nem o conteúdo da minha mente, mas é antes uma coordenada que possui essas características como propriedades. O sujeito lacaniano é, portanto, o ‘sujeito do significante’. Deste modo, quando digo ‘eu’, quando designo a mim mesmo como ‘eu’, trata-se de um ‘ato de significar’ que a que acrescenta algo à ‘entidade real de carne e osso’ assim designada: O sujeito será então aquele que acrescenta a si um conteúdo por meio do ato de sua designação auto-referencial.

Não se trata da diferença entre os elementos, por exemplo, mas da diferença entre o elemento com ele mesmo: em dezembro de 2001, em Buenos Aires, quando os argentinos ocuparam as ruas para protestar contra o governo e, principalmente, contra o ministro da economia, Cavallo. Quando a comunidade de argentinos se direcionava para o Ministério da Economia, quando cercavam o prédio ameaçando invadi-lo – Cavallo fugiu usando uma máscara dele mesmo (vendida em lojas de fantasia para que o povo pudesse vesti-la e zombar dele). Percebe-se o efeito de uma moldura que é em si já duplicada – uma moldura dentro da ‘realidade’ está vinculada a outra moldura que emoldura a própria realidade. Há um ponto turístico no lado sul da zona desmilitarizada coreana: o prédio de um teatro com uma grande janela na fachada (algo como se fosse uma tela de cinema que se abre para o Norte). O que a platéia assiste quando ocupa os seus lugares nesse ‘teatro coreano’ é a própria ‘realidade’: a zona desmilitarizada, devastada, com seus muros, etc. e, mais além, um vislumbre da Coréia do Norte. Para condescender com a ficção, a Coréia do Norte construiu uma grande fraude diante desse teatro: uma aldeia-modelo com lindas casas.

Duas histórias notáveis foram divulgadas pela mídia em 2003: (1) Walter Benjamin não se matou em 1940 numa aldeia na fronteira espanhola, amedrontado por ser mandado de volta à França e, com efeito, aos agentes nazistas – ele foi morto ali mesmo por agentes de Stálin; (2) Um historiador da arte espanhol des-cobriu o primeiro uso da arte moderna como tortura. Kandinsky, Klee, Buñuel e Dalí inspiraram uma série de celas secretas e centros de tortura construídos em Barcelona em 1938, obra do anarquista francês Alphonse Laurencic –, o inventor de um tipo de tortura ‘psicotécnica’: ele criou as chamadas ‘celas colori-das’ inspiradas tanto por ideias surrealistas e abstrações geométricas quanto por teorias artísticas de van-guarda, sobre as propriedades psicológicas das cores. Além do vínculo surpreendente entre a high culture (belas-artes e teoria) e a política vil e violenta (assassinato e tortura), essas duas histórias têm em comum o vínculo que criam como um ‘curto-circuito impossível’ de níveis que nunca poderiam se encontrar: colocam-se dois fenômenos incompatíveis no mesmo nível.

Entre os cognitivistas, o próprio pensamento humano é concebido segundo o modelo de funcionamento de um computador, de modo que a própria lacuna entre o entendimento (a abertura ao mundo) e o funcio-namento de uma máquina potencialmente desaparece: D. Dennett buscou afirmar que há na mente hu-mana, um ponto central de decisão-percepção no qual toda a informação que chega é reunida, avaliada e daí transformada em ordem para a (re)ação; acerca da inteligência humana proposta por Alain Turing, ou seja, se uma máquina possuir inteligência humana, é porque um interlocutor humano já não pode, depois de um tempo, decidir se está lidando com ser humano ou com uma máquina.

No neodarwinismo, os indivíduos humanos são concebidos como meros instrumentos e veículos de repro-dução de seus ‘genes’ e, com efeito, a cultura humana (atividade cultural da humanidade) como veículo de proliferação de memes: R. Dawkins enfatizou que os memes são ‘vírus da mente’, entidades parasitas que ‘colonizam’ a energia humana, usando-a como meio de multiplicar-se, ainda assim insiste que os memes não sejam apenas vírus; pensar em baixar todo o conteúdo de uma mente para o computador, com a pos-sibilidade de transformar a mente num software que possa migrar indefinidamente de uma encarnação material a outra – a metempsicose, a migração da alma, torna-se assim uma questão de tecnologia –, “quando fazemos um upload de nós mesmos para um computador, tornamo-nos tudo o que queremos?”

A política revolucionária e a arte revolucionária movem-se em temporalidades diferentes, embora interliga-das, são dois lados do mesmo fenômeno que, exatamente por serem dois lados, nunca podem se encontrar. Ainda nos resta provocar um diálogo entre a esperança de Hölderlin em seus versos: “quando estiver na maior encrenca, não se desespere tão rápido; olhe em volta com atenção, a solução pode estar ali na esquina”; frente ao humor dos irmãos Marx ao dizer: “tudo em você me faz lembrar de você – seus olhos, suas orelhas, sua boca, seus lábios, seus braços e pernas... tudo, menos você!”.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

A Linguagem e a Morte: um Seminário sobre o Lugar da Negatividade (Giorgio Agamben)


O homem figura como o mortal e o falante, mas como interrogar o homem livre, mantendo-o livre ao mesmo tempo da morte e da linguagem? A faculdade da morte e da linguagem pode permanecer impensada? A partir daí percebe-se que há um lugar da negatividade e o nexo entre a morte e a linguagem abrem a sua morada fundada na negatividade. Ressalta-se que a voz e a gramática são estruturas da negatividade, assim como a ética e a lógica são inseparáveis e repousam no único fundamento do negativo. O fundamento é compreendido no sentido de ser aquilo que vai ao fundo: o ser é o in-fundado, como fundamento negativo. O advento do niilismo desvenda-se quando a metafísica cai na ética, num declínio reconhecido como o advento do fundamento negativo: ‘morada habitual do homem’.

É notório o modo pelo qual, em um ponto crucial de Sein und Zeit (Ser e Tempo), Heidegger situa a relação do Dasein com a sua morte. O Dasein é um ser-para-o-fim, para a morte e sempre em relação com ela: experiência da morte como certa antecipação de sua possibilidade. Como possibilidade a ‘antecipação da morte’ é testemunhada na sua experiência da consciência e da culpa. O caráter negativo do apelo (Ruff) da consciência não diz nada e fala em silêncio. Assim, desvelar a culpa neste ‘lugar silencioso’ revela uma negatividade própria ao Dasein. Afinal, no culpado está implícito caráter do Não (Nicht). A idéia formal existencial do ‘culpado’ determina-se por ser-fundamento, para um ser que se determinou por meio de um Não, ou seja, ser de uma negatividade. A negatividade (Nichtigkeit) não significa de modo algum não estar presente ou não consistir, mas significa um Não que constitui este ser do Dasein, o seu ser-lançado. O Dasein é determinado como um poder ser, que pertence a si mesmo, embora não como se tivesse dado a si mesmo a própria posse. Sendo fundamento, ou seja, existindo como lançado, o Dasein fica constantemente atrás de suas próprias possibilidades. O cuidado – o ser do Dasein – significa como projeto lançado: o (negativo) ser-fundamentado de uma negatividade. Será a partir desta experiência de uma negatividade que se revela constitutiva do Dasein, na experiência da morte, como sua possibilidade mais próxima, que Heidegger passa a se interrogar sobre o problema da origem ontológica (ontologische Ursprung) da negatividade. Logo, Dasein significa ser-o-Da. Aceitar a tradução atualmente difusa de Dasein como Ser-aí, permite-nos então entender esta expressão como ‘ser-o-aí’. Se ser o próprio Da (o próprio aí) é o que caracteriza o Dasein (o Ser-aí), isto significa que, então,  justamente no ponto em que a possibilidade de ser o Da [de estar em casa no próprio lugar] é assumida, através da experiência da morte, da maneira mais autêntica, o Da se revela como o lugar a partir do qual ameaça uma negatividade radical. Portanto, a negatividade provém, ao Dasein, de seu próprio Da. Mas, perguntemo-nos agora, existe, acaso, uma analogia entre a experiência da morte que, em Sein und Zeit, revela ao Ser-aí a possibilidade autêntica de ser o seu aí, o seu aqui, e a experiência do ‘apreender o Isto’ que, no início da Fenomenologia, garante que o discurso hegeliano comece do nada?

O ‘mistério eleusiano’, que apareceu em uma poesia, intitulada Elêusis, que o jovem Hegel dedicou, em agosto de 1796, ao amigo Hölderling, definindo que todo mistério tem por objeto um indizível (des unaussprechlichen Gefühles Tiefe). A profundidade deste ‘indizível sentimental’ em vão poderia ser buscada em palavras e entre ‘ressequidos signos’. É interessante observar que um mistério eleusiano aparece uma segunda vez na obra de Hegel, precisamente no início daquela Fenomenologia do Espírito que constitui a primeira expressão acabada do seu pensamento, no seu primeiro capítulo intituado: A certeza sensível, ou o Isto e o querer-dizer (Die sinnliche Gewissheit oder das Diese und das Meinen). O mistério eleusiano aparece na Fenomenologia, mas Hegel tem em mira uma liquidação da certeza sensível. Esta liquidação é conduzida mediante uma análise do Isto (das Diese) e do indicar. Vai ser a ela mesma, a certeza sensível, que se deve perguntar: o que é o Isto? Se o tomamos na dupla forma do seu ser, como o Agora e o Aqui. O Agora é um ter-sido (gewesenes), e esta é a sua verdade; ele não possui verdade de ser. Contudo, é verdadeiro isto, que ele foi. Mas aquilo que foi, não é, de fato, um ser; ele não é, e era com o ser que estávamos lidando. Logo, mostrar algo, querer captar o Isto na indicação significa apenas ter a experiência de que a certeza sensível é, na verdade, um processo dialético de negação e mediação; que, portanto, a ‘consciência natural’, a qual se desejaria colocar no início como o absoluto, já é, verdadeiramente, sempre uma ‘história’. Acontece que a coisa sensível que pertence à consciência e se quer-dizer (Meinung, opinião, ponto-de-vista, ‘querer dizer’) é inacessível à linguagem. Aquilo que é indizível, para a linguagem, não é nada mais que o querer-dizer, a Meinung que permanece não-dita necessariamente em todo dizer, refere-se a esse não-dito, que é um negativo e um universal.

O iniciado aprende aqui a não dizer aquilo que ‘quer-dizer’, pois a linguagem conserva o indizível dizendo-o, colhendo-o na sua negatividade. Se a linguagem capturou em si o poder do silêncio é porque ela conserva o indizível nas suas profundezas, o que poderia ser dito ineffabile fatur, isto é, o discurso mostra o inefável como é: um nada, nichtigkeit. O sistema hegeliano parte de um ponto duplo: a um só tempo, ponto de partida e ponto de chegada. Apreende-se o Isto se temos o significado deste isto, que é um não-isto que ele encerra, logo, uma negatividade essencial. De um lado, o mistério eleusiano tem como conteúdo a experiência de um nichtigkeit (um nada), de outro lado, o problema da indicação e do Isto resulta evidentemente do surgimento em um ponto decisivo da história da metafísica. O Isto significa indicação ou a essência segundo o sujeito, assim Hegel afirma que o limite da linguagem cai sempre no interior da linguagem, que está desde sempre contido nela como negativo. Inicialmente o indizível é a coisa mais concreta, imediata, genérica e universal, mas é necessariamente o gênero supremo, além do qual não é possível definição. Trata-se da cisão aristotélica que se constitui a partir do núcleo originário de uma fratura, no plano da linguagem, entre mostrar e dizer, indicação e significação, que atravessa a história da metafísica e sem a qual o próprio problema ontológico permanece informulável.

Alguns gramáticos antigos haviam atribuído a origem da gramática a Platão e a Aristóteles, com suas categorias gramaticais e categorias lógicas, reflexão gramatical e reflexão lógica, que se implicam mutuamente e são inseparáveis. Se, para Aristóteles, o nome faz parte do discurso que correspondia às categorias da substância e da qualidade, o pronome significa substantiam sine qualitate, pura essência em si, antes de qualquer determinação qualitativa. A dimensão de significado do pronome vem a coincidir com aquela esfera do puro ser que a lógica e a teologia medieval identificavam como dimensão de significado dos assim denominados transcendentia: ens, unum, aliquid, bonum, verum. Estes termos eram ditos ‘transcendentes’ porque não têm acima de si nenhum gênero no qual possam ser contidos e a partir do qual possam ser definidos. O estatuto de pronome transcendentia é, pois, atribuído ao objeto na sua universalidade, portanto, o pronome indica uma essência indeterminada, um puro ser, determinados pelos atos de efetuação que são a demonstratio e a relatio. O puro ser, a substantia indeterminada que ele significa e que é em si insignificável e indefinível, mas que se torna significável e definível por meio de um ato de indicação. Se os pronomes são signos vazios que se tornam plenos quando um locutor os assume numa instância de discurso, então os pronomes têm por objetivo que operar a conversão da linguagem em discurso e permitir a passagem da língua à fala.

O pensamento medieval tomou consciência da problemática desta passagem entre significar e mostrar que tem lugar no pronome, mas não a conseguiu explicar. O entrelaçamento no pensamento medieval entre reflexão teológica e reflexão gramatical é muito cerrado, de tal modo que o Deus dos teólogos é o mesmo Deus dos gramáticos. Primeiramente ressalta-se que o nome decai de seu significado e não significa mais nada, transformando-se em pronome, mas se o pronome, por sua vez, é predicado de Deus, ‘cai da indicação’. Segue-se que o nome é formado por um pronome e pelo verbo ser, que é pensado como o nome ‘absoluto’ de Deus. Portanto, o que aqui é pensado como suprema experiência mística do ser e como nome perfeito de Deus é a experiência de significado do próprio grámma, da letra como negação da voz: ‘que se escreve, mas não se lê’. Por sua vez, o nascimento da moderna ciência da linguagem situou-se no próprio desenvolvimento da filosofia moderna que, de Descartes a Kant e até Husserl, não deixou de ser, em boa parte, uma reflexão sobre o estatuto do pronome Eu. De todo modo, tanto para Hegel quanto para Heidegger, a negatividade entra no homem porque o homem tem por ser este ter-lugar, quer colher o evento da linguagem, apreendido, em certa medida, a partir, respectivamente, do Dasein, ‘ser-o-aí’, e no das Diese nehmen, apreender o Isto. Percebe-se mais claramente entre os poetas do que entre os linguistas, que o eu [ou o me/mim] é a palavra associada à voz: aquele que enuncia, o locutor é, antes da mais nada, uma voz, e o problema da díxis é o problema da voz e da sua relação com a linguagem. Este é, pois, o problema.

A Voz situa-se, em relação ao estilo vocal, numa dimensão diversa e mais original, a voz constitui a dimensão ontológica fundamental, ou seja, a dimensão do significado da voz, mas a voz como pura intenção de significar (puro querer-dizer), quando uma coisa se dá à compreensão sem que se produza um evento determinado de significado. Vox, como querer-dizer ou intenção de significar sem significado, decai numa experiência amorosa como vontade de saber; experiência que mostra que a vox na sua pureza originária, como querer-dizer é uma palavra morta. Demarca-se certo flatus vocis, a voz como intenção de significar e como ‘pura indicação’(setentia vacum), significado da voz em si, antes de toda significação. Que o ser (substantiae universale) seja um flatus vocis não significa que ele seja um nada, afinal a dimensão do significado do ser coincide com aquela experiência da voz como pura indicação e puro querer-dizer. Dado que essa Voz (escrita em letra maiúscula para distinguir-se da voz como mero som) tem o estatuto de um não-mais (voz) e de um não-ainda (significado), ela constitui uma dimensão negativa. A linguagem tem um lugar no tempo e na voz, mostrando a instância do discurso, a Voz abre simultaneamente o ser e o tempo. Tanto em Hegel como em Heidegger reencontram-se um pensamento da Voz como articulação negativa originária.

Hegel seguiu o ‘despedaçar-se’ do espírito e sua ‘ocultação’ na natureza. O nome existe como linguagem que não se fixa, igualmente cessa, de imediato, aquilo que é. O despertar do espírito é o reino dos nomes. A linguagem é a voz da consciência, pois todo som tem um significado, nela tem um nome, idealidade de uma coisa existente: o seu imediato não-existir. Para Hegel a articulação se apresenta como processo de diferenciação, interrupção e conservação da voz animal: a voz é ouvido ativo – ele escreve –, puro si, que se põe como universal, todo animal tem na morte violenta uma voz, exprime a si mesmo como si mesmo suprimido. O sistema hegeliano é considerado em seu caráter ‘antripogenético’, no sentido que mantém o contato com a morte.

A dimensão negativa está presente também na linguística moderna, no conceito de fonema, deste ente puramente negativo e insignificante, o qual, contudo, é precisamente aquilo que abre e torna possível a significação e o discurso. Como ‘som da língua’, Jakobson está singularmente próximo da ideia heideggeriana de uma ‘Voz sem som’ e de um ‘som do silêncio’ (Sigé, pensamento silencioso). A fonologia, que se define como a ciência dos sons da língua, apresenta-se como um par análogo da ontologia, que, com base nas considerações precedentes, podemos definir como ‘ciência da voz suprimida, isto é, da Voz’. Existe no pensamento de Heidegger algo como um ‘pensamento da Voz’, mas cuja relação essencial entre linguagem e morte tem, para a metafísica, o seu lugar na Voz. Ter experiência da morte como morte significa efetivamente fazer experiência da supressão da voz e do surgimento, em seu lugar, de outra Voz, que constitui o originário fundamento negativo da palavra humana. A Voz, portanto, não diz nada, não quer-dizer nenhuma proposção significante: ela indica e quer-dizer o puro ter lugar da linguagem, é, pois, uma dimensão puramente lógica. A Voz é a dimensão ética originária, na qual o homem pronuncia seu sim à linguagem e consente que ela tenha lugar.

Morada habitual e hábito, ou seja, o êthos do homem, que se encontra para a filosofia, já sempre cindido e ameaçado por um negativo. Um dos mais antigos testemunhos no qual a filosofia se põe a pensar o êthos caracteriza, deste modo, a morada habitual do homem. O êthos, a morada habitual é, para o homem, o lugar da cisão – aquilo que ele jamais pode apreender sem receber daquilo uma laceração e uma fissura –, o lugar onde jamais pode estar verdadeiramente desde o início, mas aonde pode somente no fim regressar. É possível que o ser não esteja à altura do simples mistério do ter do homem, da sua habitação assim como do seu hábito? Estar na linguagem sem ser aí chamado por nenhuma Voz, simplesmente morrer sem ser chamado pela morte é, talvez, a experiência mais abissal; mas esta é precisamente, para o homem, também a experiência mais habitual, o seu êthos, a sua morada que, na história da metafísica, já se apresenta sempre demonicamente cindida em vivente e linguagem, natureza e cultura, ética e lógica e é, por isso, atingível, apenas na articulação negativa de uma Voz. Pensa-se, neste seminário, a Voz a partir de seu cancelamento, ou melhor, pensa-se a Voz como jamais sida, no seu lugar, morada sem vontade e sem Voz, esta morada é o aqui resta a pensar. Trata-se, em última instância, de um tal ‘fazer interdito’, que fornece à sociedade e à sua infundada legislação a ficção de um início: o que é excluído da comunidade é, na realidade, aquilo sobre o qual se funda a inteira vida da comunidade e é assumido por ela como um passado imemorável e, todavia, memorável.

O homem é o animal que possui a linguagem, enquanto o in-fundado tem fundamento na própria violência, no próprio fazer: facere sacrum (sacrifício, ‘fazer interdito’, afetado pela sacralidade, sacro, acessível apenas a certas pessoas e de acordo com regras determinadas). Noção ambígua esta de sacro, que significa tanto a lei quanto designa quem a viola. Que o sacrifício seja um assassínio, isso nós bem conhecemos, que não seja casual e que por isso mesmo seja violento: violência esta que em si não explica nada, todavia, aliás, por sua vez, essa mesma violência necessita de explicação. A inaturalidade da violência humana é uma produção histórica do homem e é implícita na própria concepção da relação entre natureza e cultura, entre vivente e logos na qual o homem funda a própria humanidade. Não é próprio ao homem ser um indizível, que permanece não dito em toda praxis e em toda palavra humana: ele é antes a própria praxis social e a própria palavra humana, tornadas transparentes a si mesmas. Mas a ‘transmissão indizível’ continua a dominar a tradição da filosofia: em Hegel, como aquele nada, que é preciso abandonar à violência da história e da linguagem para dele extrair a aparência do início e do imediato; em Heidegger, como o sem nome que, permanecendo não dito em toda palavra e em toda transmissão, destina o homem à tradição e à linguagem. É certo que em ambos os casos, o pensamento se propõe a absolução do homem da violência do fundamento. Assim como o fundamento da violência é a violência do fundamento.

O Ser e o Nada: Ensaio de Ontologia Fenomenológica (Jean-Paul Sartre)


O pensamento moderno realizou progresso considerável ao reduzir o existente à ‘série de aparições’ que o manifesta. Visava-se com isso suprimir certo número de dualismos, um deles, talvez o mais importante e primeiro tenha sido esse dualismo que no existente opõe o interior e o exterior. As aparições que manifestam o existente equivalem-se entre si, remete-se a todas as outras aparições. As aparições não são exteriores nem interiores: as aparências, em geral, apenas se remetem às aparências. Trata-se, sobretudo de compreender que a aparência revela a essência, afinal o ser de um existente é o que ele aparenta, ou seja, destaca-se o fenômeno como ‘relativo-absoluto’. Então, a aparência revela a essência, eis a lei que preside as sucessões de suas aparições, é a razão da ‘série’, isto é, a essência como razão da série é apenas o liame das aparições. O ser fenomênico se manifesta, portanto, ao manifestar tanto a sua essência quanto a sua aparência em uma série bem interligada. Neste sentido, a teoria dos fenômenos substitui a realidade da coisa pela objetividade do fenômeno, que se mostra transcendente, mas o sujeito transcende a aparição rumo à série total a que faz parte. Se a essência está apartada da aparência individual que a manifesta, assim compreende-se o ‘ser da aparição’ ou a ‘essência da aparição’ como um ‘aparecer’ que não se opõe a nenhum ser.

Enquanto a aparição possui o seu ser próprio – o ‘ser da aparição’ –, o ‘fenômeno do ser’ é o que se manifesta, o ser manifesta a todos de algum modo, dele se fala e temos compreensão, por isso deve haver um fenômeno de ser. A essência é o sentido do objeto, a razão de aparições que o revelam, mas o objeto não possui ser. O existente é o fenômeno, que se designa a si como conjunto organizado de qualidades. De modo que o ser é simplesmente a condição de todo desvelar, de outro modo, a aparição necessita de um ser com base no qual possa desvelar. Se há algo que possa medir a aparição, isso será o fato de que ela aparece, limitando a realidade ao fenômeno, então, diz-se que o fenômeno é tal como aparece.

A lei do sujeito cognoscível é ser-consciente. A consciência não é um modo particular de conhecimento, mas se define pela dimensão de ser transfenomenal do sujeito. Em outras palavras, toda consciência é consciência de algo, ou melhor, não há consciência que não seja posicionamento de um objeto transcendente, em suma, a consciência não tem ‘conteúdo’. Desta forma, toda consciência é posicional, pois transcende para alcançar um objeto. Se toda minha intenção está voltada para o exterior, então toda consciência cognoscente só pode ser conhecimento de seu objeto. Uma condição fundamental para que a consciência seja conhecimento de seu objeto é que ela seja ‘consciência de si’, ou seja, como sendo este próprio conhecimento. Primeiramente, uma consciência dirige-se para algo que não é ela, ou seja, trata-se de uma ‘consciência refletida’, assim, ela se transcenderia e se esgotaria visando seu objeto, como consciência posicional do mundo, mas este objeto não deixaria de ser uma consciência. Em seguida, compreende-se, pois porque ‘saber é ter consciência de saber’ ou ‘saber é saber que se sabe’.

Toda consciência de si não deve ser considerada como uma nova consciência, mas o único modo de existência possível para uma consciência de alguma coisa. Enfim, a consciência surge no ser, cria e sustenta sua essência (em uma ordenação sintética de suas possibilidades). A consciência é plenitude de existência e determinação de si por si, de tal sorte que a consciência existe por si. A consciência é, portanto, pura aparência, só existe na medida em que aparece: um vazio total (já que o mundo inteiro se encontra fora dela). A consciência pode ser considerada o absoluto (ou seja, ‘o sujeito da mais concreta das experiências), por causa dessa identidade que nela existe entre aparência e existência.

A subjetividade não deixa de ser uma espécie de imanência de si a si. Para tanto, capturamos um ser que tanto nos escapa ao conhecimento quanto o fundamenta, mas é o pensamento que é capturado enquanto estrutura do ser. De um lado, o conhecido não poderá ser atribuído pelo conhecimento, de outro, torna-se preciso que lhe seja reconhecido um ser: este ser é o percepi. A relatividade e a passividade caracterizam o modo de ser do percepi. Ressalta-se que a passividade é um fenômeno duplamente relativo: relativo à atividade daquele que atua e à existência daquele que padece. Em outros termos, a passividade não se refere a um ser existente passivo, mas à relação de um ser a outro ser. Neste aspecto, a passividade e a percepção são puras atividades, espontaneidade que nada pode capturá-las. Por ser espontaneidade pura, nada pode capturar a passividade, com efeito, a consciência não pode agir sobre nada. Assim, exige-se que a consciência conserve seu nada de ser (total absoluto) ao mesmo tempo depara-se com a relação entre a consciência e os existentes independentes dela, em uma palavra, hylé: fluxo puro do vivido e matéria das sínteses passivas. O ser percebido está diante da consciência, mas existe apartado dela, de sua própria existência. A relatividade e a passividade referem-se às maneiras de ser, não se aplicam ao ser.

Toda consciência é consciência de alguma coisa em dois sentidos, por um lado, como constitutiva do ser do objeto, por outro, com relação a um ser transcendente. A consciência é uma subjetividade real e a impressão, uma plenitude subjetiva. O ser do fenômeno depende da consciência, contanto que o objeto se distinga da consciência, não por sua presença, mas por sua ausência, seu nada. Se o ser pertence à consciência, então o objeto é um não-ser. Portanto, o ser do objeto é um puro não-ser, o que se define como falta, aquilo que se esconde. As coisas se dão por aparições, cada uma remete a outras, cada uma é plenitude de ser uma presença. O objetivo não sai do subjetivo, nem o transcendente da imanência, tampouco o ser do não-ser. A transcendência é uma estrutura constitutiva da consciência, que nasce com o objetivo de um ser que ela não é. A subjetividade é, pois, a consciência de ter consciência.

A consciência deve ser produzida como revelação – revelada – de um ser que ela não é e que se dá como existente quando ela o revela. A consciência é um ser cuja essência implica a existência, ou seja, a aparência exige ser. Aplica-se à consciência a formulação que Heidegger reservou ao Dasein: um ser para o qual, em seu próprio ser, está em questão o seu ser. Complementa-se essa proposição do seguinte modo: a consciência é um ser para o qual, em seu próprio ser, está em questão o seu ser enquanto este implica outro ser que não si mesmo. O ser é si-mesmo. Em primeiro lugar, porque todo o juízo sobre o ser já implica o ser. Em segundo lugar, pois o fenômeno de ser revela-se à consciência. Em terceiro lugar, por isso exige-se uma elucidação a partir da revelação-revelado. Por fim, desvelam-se duas regiões do ser, o ser do cogito pré-reflexivo e o ser do fenômeno. Trata-se de uma concepção realista das relações entre o fenômeno e a consciência.

O homem é ativo e os meios que emprega são passivos. O ser não é ativo, o ser é si, não é relação a si. O ser é em si, é este si mesmo, não remete a si. O ser pode estar além do si, porque está pleno de si. O ser é o que é. O princípio contingente do ser-Em-si é ser o que se é –, o que se traduz como opacidade do ser-Em-si. O Em-si pode ser designado como uma síntese ‘de si consigo mesmo’. Se o ser está isolado em seu ser, é porque é o que é por si mesmo: desconhece a alteridade, não se coloca como outro. O ser-Em-si é. Ordenado de uma seguinte forma tem-se: O ser é. O ser é em si. O ser é o que é. De modo amplo, partiu-se das aparições para se estabelecer dois tipos de seres: o Em-si e o Para-si, ainda sob informações superficiais e por demais incompletas.

O ‘concreto’ é uma totalidade capaz de existência por si mesma, ou melhor, uma coisa espaço-temporal com todas as suas determinações. Refere-se a uma totalidade da qual consciência e fenômeno são apenas momentos. A relação entre as regiões do ser nasce de uma fonte primitiva, parte da estrutura dos seres. Interroga-se, pois a totalidade do homem no mundo, ‘ser-no-mundo’, a cada uma das condutas humanas como sendo condutas do homem no mundo, revelando o homem, o mundo e as relações que os une. Uma conduta privilegiada é a que se traduz sobre o homem que sou (apreendido num momento e no mundo), frente ao ser em atitude interrogativa. Toda interrogação presume um ser que interroga e outro interrogado. Decerto, interrogamos o ser interrogado sobre alguma coisa, mas interrogamos o ser principalmente sobre suas ‘maneiras de ser’ ou sobre seu ser. Para qualquer investigador existe a possibilidade de uma resposta negativa, obviamente não se sabe se a resposta vai ser negativa ou positiva. Parte-se, enfim, em busca do ser, do seu núcleo, através da série de nossas indagações. A possibilidade permanente do não-ser, fora de nós e em nós, condiciona nossas perguntas sobre o ser. O não-ser é o novo componente do real. A negação é uma qualidade do juízo, deste modo, o ‘nada’ tem sua origem nos juízos negativos.

O ser-Em-si interrogado sobre a negação remeteria ao juízo, enquanto o juízo (plena positividade psíquica) remeteria ao ser. A negação é o resultado por operações psíquicas concretas e está sustentada por elas. A negação é incapaz de existir por si, ela reside no seu percepi. A negação acha-se na origem do nada, mas o nada é uma estrutura real, que origina e fundamenta a negação. Ressalta-se a negação sobre seu fundo primitivo de uma relação entre o homem e o mundo. Igualmente, destaca-se uma revelação do ser que se possa emitir juízo. Se eu espero uma revelação ao ser é porque estou preparado para o eventual não-ser. A relação ‘não está’, ela é pensadamas é o juízo da negação que está sustentado pelo não-ser. As indagações são feitas por um homem a outros homens, nota-se que muitas condutas trazem sua compreensão imediata do não-ser sobre o fundo do ser. A destruição, por exemplo, afinal o homem é o único ser pelo qual pode realizar uma destruição. Para a destruição é necessário uma relação entre o homem e o ser (uma transcendência). Assim, a nadificação é um recorte limitativo de um ser no ser, observa-se com a seguinte proposição: o ser considerado é isso e, fora disso, nada. A negação é recusa de existência, por meio dela um ser é colocado e depois relegado ao nada. O ser é descoberto como frágil, sempre além de toda destruição possível. O exame da ‘conduta da destruição’ nos leva, portanto, aos mesmos resultados da ‘conduta interrogativa’.

A conduta da interrogação se converte em simples apresentação, oscilando entre o ser e o nada. Na pergunta interrogamos um ser sobre o seu ser ou modo de ser, assim fica sempre em aberto a revelação do nada como possível. Desvela-se a interrogação e a sua negatividade, que é introduzida no mundo. Reconhece-se um processo humano em que o homem torna-se um ser que faz surgir o nada no mundo. Observa-se um paralelismo entre as condutas humanas frente ao ser e as condutas que o homem tem frente ao nada. Hegel estudou na Lógica as relações entre o ser e o não-ser, em que o concreto é o existente, com sua essência. Assim, para Hegel, o ser se reduz a uma significação do existente, que está envolvido pela essência (seu fundamento e origem), bem como o ser é condição de todas as estruturas e momentos (fundamento em que se manifestam os caracteres do fenômeno). Nesta perspectiva o ‘ser puro’ é determinado pelo entendimento, que só encontra no ser aquilo que o ser é. Há forças recíprocas de expulsão que ser e não-ser exercem um sobre o outro, onde o real é a tensão resultante dessas forças antagônicas. Entrementes, Hegel observa que o ser e o nada são dois contrários – simples modos de pensar; então, Hegel faz passar o ser ao nada, por introduzir a negação na definição de ser: o nada supõe o ser para negá-lo.

Indagar a legitimidade da interrogação sobre o ser foi um dos problemas que se propôs Heidegger. Há numerosas atitudes da ‘realidade humana’ que implicam uma compreensão do nada. É próprio do Dasein encontrar-se frente ao nada. O Dasein está fora de si, no mundo, e é um ser das lonjuras, pois ele não é em si e nem lhe está próximo. A filosofia de Heidegger é compreendida, nessa perspectiva, sob o uso de termos positivos, que mascaram negações implícitas para se descrever o Dasein. Aqui tanto a negação se fundamenta no nada como o nada fundamenta a negação, que compreende o ‘não’ em sua estrutura. Assim, o nada é a origem do juízo negativo, porque é negação e fundamenta a negação como ato e como ser. Então, não poderia ser de outro modo, a realidade humana se apresenta como emergência do ser no não-ser – o mundo está suspenso no nada (transcendência do mundo): o Dasein capta, pois a contingência do mundo. Questiona-se tanto em Hegel como em Heidegger uma atividade negadora que se apresenta sem a preocupação de se fundamentar num ser negativo.

Afirma-se que as relações entre o homem e o mundo são indicadas pela negatividade. Que a aparição do homem a um meio [o meio do ser] faz-se descobrir um mundo. Em seguida, que o momento essencial dessa aparição é a negação, portanto o homem é o ser pelo qual o nada vem ao mundo. Busca-se definir o homem condicionado à aparição do nada, mas ser que nos aparece como liberdade. Trata-se de uma liberdade em conexão com o nada, na medida em que o condiciona em sua aparição. A condição para a realidade humana é negar o mundo e ao mesmo tempo é carregar em si o nada como quem separa seu presente e seu passado. A liberdade pode ser definida a partir do momento em que o ser humano passa a jogar o seu passado fora e, com efeito, quando passa a segregar seu próprio nada? Procura-se não só repelir com todas as forças a situação ameaçadora, mas projetar diante de si condutas futuras destinadas a afastar as ameaças do mundo: essas condutas são as nossas possibilidades? Angustiamo-nos porque nossas condutas são apenas possíveis, definidas por um conjunto de motivos que virtualmente repeleriam uma dada situação, mas de um modo ou de outro identificamos esses motivos como ineficazes. Se pudéssemos interrogar temporariamente essa obra, a partir de poucas frases, arriscaríamos: a consciência específica da liberdade é a angústia? Ou nós é que buscamos estabelecer a angústia como consciência de liberdade?

domingo, 1 de novembro de 2009

A Genealogia da Moral (Friedrich Nietzsche)


Há um aspecto no homem que lhe fatiga; essa fadiga é o niilismo: o homem fatiga-se do homem. O homem, animal mais valoroso e enfermiço, não repele a dor, antes a procura, contanto que lhe digam o porquê. Assim o ideal ascético apresenta sua finalidade e explica a dor ao fazer uma interpretação que traz uma dor nova e mais profunda, mais íntima, ao mesmo tempo diz que era o castigo de uma falta. No entanto, o homem já não era mais uma folha levada ao vento, fosse o que fosse: ‘estava salva a vontade’. A natureza desta direção asceta que se segue através do ódio a tudo quanto era humano (aos sentidos, ao desejo, animal, material, ao esforço), tudo isso significa uma ‘vontade de aniquilação’. O homem ‘livre’, senhor de vasta e indomável vontade, acha em sua posse uma ‘tábua de valores’. Para julgar, fundado em si mesmo, respeita ou despreza: venera os seus semelhantes (fortes, soberanos) e está disposto a dar um pontapé nos miseráveis: o homem soberano chama-se ‘consciência’. Onde quer que exista a justiça se vê um poder forte em frente de poderes fracos, que procura por um termo aos insensatos furores do ressentimento, não só arrancando-lhe com mãos vingadoras, mas declarando guerra aos inimigos da paz, da ordem e inventando compromissos que impõem a força de lei a certas equivalências dos prejuízos – a todo um sistema de obrigações morais. Por mais estranho que hoje isto possa parecer: ‘nada custou mais caro do que esta migalha de razão e de liberdade, que hoje nos envaidece’. Toda essa maquinação infernal chamada reflexão: a razão, a gravidade, o domínio das paixões... e todos os privilégios pomposos do homem, como custaram caro! Quanto sangue, quanta desonra se encontra no fundo de todas essas ‘coisas boas’! Cada passo que o homem deu sobre a terra custou-lhe muitos suplícios intelectuais e corporais – tudo pode ter passado adiante e atravessado todo o movimento, mas em troca teve-se inúmeros mártires.

Todas as raças nobres deixaram vestígios de barbárie à sua passagem. Esta audácia das raças nobres, audácia louca, absurda, espontânea; a sua indiferença e o seu desprezo do bem-estar, da vida; a alegria terrível e profunda em toda a destruição, os prazeres da vitória e da crueldade, tudo isso, na imaginação das vítimas se resumia na ideia de ‘bárbaro’, ‘maligno’, ‘vândalo’. Por isso, no fundo destas raças aristocráticas é impossível não reconhecer a fera – o bruto de louros cabelos em busca de presa – este fundo de bestialidade mostra-se de quando em quando: a aristocracia romana, árabe, germânica, japonesa ou os heróis homéricos, vikings escandinavos, todos são iguais a esse respeito. Por outro lado, qual é o sentido da palavra ‘bom’, segundo a etimologia, nas diversas línguas? Através das palavras e raízes que significam ‘bom’, transparece o matiz principal pelo qual os ‘nobres’ se tinham por homens de uma classe superior. Em toda a parte, a ideia de ‘distinção’ e de ‘nobreza’ é, no sentido de ordem social, a idéia-mãe donde nasce e se desenvolve a concepção de ‘nobreza’ como privilegiada quanto à alma. Este desenvolvimento foi paralelo à transformação das noções ‘vulgar’, ‘plebeu, ‘baixo’ na noção de ‘mau’. Um exemplo dessa metamorfose é a palavra alemã schlecht [mau] que é idêntica à palavra schlicht [simples], em cuja origem designava o homem simples, o homem plebeu. O latim malus pode designar o homem plebeu de cor morena e de cabelos pretos, o autóctone pré-ariano do solo itálico que se distinguia muito, pela sua cor, da raça dominadora e conquistadora dos loiros arianos. Ao menos o gaélico subministra-se indício semelhante: a palavra ‘fin’, por exemplo, ‘Fin gal’, é um termo distintivo da nobreza e que, em última análise, significa ‘o bom’, ‘o nobre’, ‘o puro’, que significava antigamente ‘o de cabelos loiros’ em oposição ao autônomo de cabelos negros. Crê-se poder interpretar o latim bonus por ‘o guerreiro’: levando-se bonus à sua forma antiga de duonus [comparado a bellum duellumduenlum, donde parece conservar duonus]. Com efeito, bonus seria o homem da disputa [duo], o guerreiro: eis o que constitui a bondade de um homem da Roma antiga. E a nossa palavra alemã gut [‘bom’] não significaria der Goettlich [‘o divino’], o homem de origem divina?

Os dois valores opostos ‘bom e mau’, ‘bem e mal’, mantiveram durante milhares de anos um combate largo e terrível e ainda que, há muito tempo que o segundo valor logrou vantagem, não faltam ainda hoje terrenos onde a luta continua com variado êxito. O símbolo desta luta: ‘Roma contra Judéia, Judéia contra Roma’. Roma via no judeu uma natureza oposta à sua: um antípoda monstruoso. Os romanos eram fortes e nobres, enquanto os judeus eram um povo levita e rancoroso por excelência. Qual dos povos venceu? Roma ou Judéia? Note-se que na mesma Roma e em metade do mundo ou em toda parte onde o homem está civilizado ou tende a sê-lo, a humanidade inclina-se diante de três judeus e uma judia: Jesus de Nazaré, Pedro, Paulo e Maria, mãe de Jesus. Este é um fato notável. Roma foi vencida. Jesus de Nazaré, encarnado de amor e ‘Salvador’, trouxe aos pobres, aos enfermos e aos pecadores a bem-aventurança e a vitória, não deixava de ser precisamente a sedução mais irresistível que havia de conduzir aos homens e adaptá-los aos valores judaicos. Que coisa mais sedutora não é este símbolo da ‘santa cruz’, esta crueldade louca de um Deus que se crucifixa ele mesmo ‘pela salvação’ da humanidade?

Tudo o que na Terra se fez contra os ‘nobres’ (poderosos, senhores, governantes) não se pode comparar com o que fizeram os ‘judeus’. Os judeus se vingaram dos seus dominadores por uma radical mudança dos valores morais, uma vingança essencialmente espiritual. Só um povo de sacerdotes podia obrar assim, com uma lógica formidável, atiraram por terra a aristocrática equação dos valores: bom, nobre, poderosos, amado por Deus. Com encarniçado ódio, os judeus afirmaram: ‘só os desgraçados são bons; os que sofrem e os enfermos, os necessitados, os pequenos são bons. Com os judeus começou a emancipação dos escravos da moral. Esclarece-se que o ‘mau’ do aristocrata e o ‘maligno’ do rancoroso apresentam um singular contraste: o primeiro é uma criação posterior, um acessório, complementar; o segundo é a ideia original, o começo – o ato por excelência na concepção de uma ‘moral dos escravos’. O juízo da aristocracia segue-se na guerra, nas aventuras, na caça, na dança, nos jogos e em exercícios físicos que implicam uma ação robusta, livre e alegre; enquanto os sacerdotes são inimigos mais malignos, porque são mais impotentes, o que faz crer um ódio monstruoso, sinistro, intelectual e venenoso. De um lado, toda amoral aristocrática nasce de uma triunfante afirmação de si mesma, a ‘moral dos escravos’ opõe um ‘não’ a tudo o que não é seu – ‘não’ que por si só é o seu ato criador. Essa mudança total está sob o ponto de vista do ódio: a moral dos escravos necessitou sempre de estimulantes externos para entrar em ação; a sua ação é uma reação. A rebelião dos escravos na moral começou quando o ódio começou a produzir valores.

O homem designa-se a si mesmo como ser que estima valores, que aprecia e avalia por excelência: a compra e a venda, os seus corolários psicológicos são anteriores às origens de toda a organização social e o sentimento que nasceu da troca (do contrato, da dívida, do direito, da obrigação, da compensação) transportou-se logo para os complexos sociais mais primitivos ou mais grosseiros no mesmo tempo que o hábito de comparar uma força com a outra, de as medir e calcular. Fixar preços, estimar valores, imaginar equivalência, cambiar, tudo isto preocupa o pensamento primitivo que, em certo sentido, é o pensamento mesmo. Por meio das relações entre credor e devedor, pela primeira vez, a pessoa opôs-se à pessoa e mede-se com ela. Através dessa relação contratual entre credor e devedor, tão antiga quanto a de ‘sujeição moral’, todos foram levados às formas primitivas da compra e venda, do câmbio. Nos modernos, as relações da comunidade com seus membros são as de um credor com seus devedores. O culpado não é senão um violador do compromisso; falta à sua palavra para com a comunidade que lhes assegurava tantas regalias. O culpado é um devedor que não só não paga as suas dividas como também ataca o credor. O credor, por seu turno, humanizou-se conforme foi se enriquecendo; como no fim, sua riqueza mede-se pelo número de prejuízos que pode suportar – até se concebe uma sociedade com tal consciência do seu poderio, que se permita o luxo de deixar impunes os que a ofendem. Consiste, entretanto, um ‘princípio de equivalência’ que se descreve: em lugar de um benefício que compensasse diretamente o dano causado, concede-se ao credor certa satisfação e gozo à maneira de compensação e pensamento, a satisfação de exercer impunemente o seu poderio com respeito a um ser reduzido à impotência, o deleite de fazer o mal pelo gosto de o fazer, a alegria de tiranizar. Como pode a dor compensar as dívidas? O ‘fazer’ sofrer causava um prazer imenso à parte ofendida: fazer sofrer! Isto era uma verdadeira ‘festa’! Tanto mais grata quanto mais era o contraste entre a posição social do credor e do devedor. Ver sofrer, alegra; fazer sofrer, alegra mais ainda: há nisto uma antiga verdade ‘humana’ – sem crueldade não há gozo, o castigo é uma festa. O castigo tem a propriedade de despertar no culpado o ‘sentimento da falta’, ou seja, o verdadeiro instrumento desta reação psíquica que denomina ‘remorso’, ‘má consciência’. Então veio ao mundo, a maior e mais perigosa de todas as doenças: a ‘má consciência’ e o ‘homem doente de si mesmo’.

O sacerdote ascético dever ser o salvador predestinado, o pastor e defensor do rebanho doente, sua prestigiosa missão histórica. Eis o papel, a arte e a maestria do sacerdote ascético: a ‘dominação sobre os doentes’. É preciso que o sacerdote seja também doente, para se entender com eles, mas é preciso que seja forte, a fim de possuir a confiança dos doentes e ser para eles um amparo, um escudo, um deus, um tirano. Não resta dúvida que o homem seja o animal mais doente, mais incerto e mais inconsciente: é o animal doente por excelência, mas donde lhe veio isto? Grande experimentador de si próprio, o insaciável, que luta para reinar sobre os animais e a Natureza, sobre os deuses, o indomável e de futuro esterno; como o homem não haveria de estar exposto a doenças mais largas e terríveis? Quem não percebe por todos os lados uma atmosfera de um manicômio e de um hospital em todas as partes do mundo civilizado, europeizado. Os doentes são o maior perigo da humanidade e não os maus, as ‘feras de rapina’. O asceta apareceu, contudo em todos os tempos e em todas as classes sociais. A vida ascética é uma guerra intestina, um flagrante de contradição, converte-se em alegria e em triunfo toda dor íntima: o ideal ascético combateu sempre debaixo desta bandeira – no símbolo da agonia achou a sua luz mais pura, a sua salvação, a sua vitória definitiva. Em uma só palavra; o sacerdote ascético é um homem que muda a direção do ressentimento. Os meios que se empregam contra a dor são os que reduzem a vida à sua expressão menor possível: nada de vontade, nada de desejo, nada de paixão, nada de sangue; não comer sal, não amar, não odiar; não se perturbar, não se vingar; não se enriquecer, não trabalhar, mendigar; nada de mulheres, ou o menos possível; quanto ao intelecto – bestializar-se. Resultado em linguagem moral: aniquilamento do eu, santificação; e em termos fisiológicos: hipnotizado, hibernação, mínimo de assimilação compatível com a vida. Então para arrancar da consciência a dor, é necessária uma paixão e um pretexto para a excitar: esta não deixa de ser uma maneira própria do doente e quanto mais esteja oculta a verdadeira causa de seu mal. “Eu sofro, alguém tem culpa”. Assim discorrem todas as ovelhas. E então o pastor lhes responde: “É verdade, minha ovelha; alguém tem culpa; mas és tu mesma; os teus pecados são a causa do teu mal”. Isto é atrevido e soa até muito falso, mas obtém-se com isso um fim: ‘mudar a direção do ressentimento’. Tudo isto é ascetismo em alto grau... é niilismo. Nota-se no observador um olhar triste, duro, resoluto (‘olha para o longe’). Não vê mais do que neve, não há vida; as gralhas dizem: “E para quê?” Em vão! “Nada!” Nada cresce; talvez a metafísica russa de Tolstoi?