quarta-feira, 30 de setembro de 2009

O Neoliberalismo: História e Implicações (David Harvey)


Como se instaurou a neoliberalização? Quem o fez? Em países como o Chile e a Argentina nos anos 1970 é uma resposta segura, simples e brutal, mas sob um golpe militar apoiado pelas classes altas tradicionais, assim como pelo governo norte-americano, seguida pela cruel repressão de todas as solidariedades criadas no âmbito de movimentos trabalhistas e sociais urbanos que ameaçavam o seu poder. A revolução neoliberal atribuída costumeiramente a Thatcher e Reagan a partir de 1979 tinha, entretanto, de ser instaurada por meios democráticos na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Uma mudança de tamanha magnitude como essa exigia que se construísse antes o consentimento político da população para que se ganhassem as eleições. Fortes influências ideológicas circularam nas corporações, nos meios de comunicação e nas numerosas instituições que constituem a sociedade civil [universidades, escolas, Igrejas, associações profissionais]. A ‘longa marcha’ das ideias neoliberais nessas instituições, que Hayek concebera já em 1947, sob a cooptação de certos setores dos meios de comunicação e a conversão de muitos intelectuais à maneira neoliberal de pensar, tudo isso criou um clima de opinião favorável ao neoliberalismo. Certamente o projeto declarado de restauração do poder econômico a uma pequena elite não teria muito apoio popular, mas um esforço de defesa da causa das liberdades individuais poderia constituir um apelo a base popular, disfarçando o trabalho de restauração do poder de classe. Qualquer resistência apelava-se para o uso da força, quer militar (como no Chile), quer financeira (como nas operações do FMI em Moçambique ou nas Filipinas): a coerção pode produzir uma aceitação fatalista e abjeta da ideia de que não há nem havia alternativa, como insistia Margaret Thatcher.

O Estado neoliberal favorece os direitos individuais à propriedade privada e o regime de direito, as instituições de mercados de livre funcionamento e do livre comércio: arranjos institucionais que garantam as liberdades individuais. Privatização e desregulação combinadas com competição tende a eliminar, segundo os neoliberais, os entraves burocráticos, aumentam a eficiência e a produtividade, melhoram a qualidade e reduzem os custos (mediante a redução da carga de impostos). O Estado, neste caso, tem de usar seu monopólio dos meios de violência para preservar, a todo custo, essas liberdades, em outras palavras, o Estado tem de usar seu poder para impor ou inventar sistemas de mercado: o Estado neoliberal deve buscar reorganizações internas e novos arranjos institucionais que melhorem sua posição competitiva diante de outros Estados no mercado global. Óbvio que a competição resulta em monopólio e oligopólios que expulsam outras empresas mais fracas. A livre mobilidade do capital entre setores, regiões e países é julgada crucial, mas há de se remover as barreiras (taxas, tarifas, impedimentos específicos a um dado lugar) ao livre movimento, exceto em áreas essenciais ao ‘interesse nacional’. A soberania do Estado com relação aos movimentos de mercadorias e de capital é, assim, entregue ao mercado global. Acordos internacionais entre países para garantir o regime de direito e as liberdades de comércio são, portanto, incorporados às normas da Organização Mundial do Comércio, e vitais para o avanço do projeto neoliberal no cenário global.

Cria-se um paradoxo em que se supõe que o Estado não seja intervencionista: o Estado neoliberal é forçado, entretanto a intervir, repressivamente, negando as próprias liberdades de que se supõe ser ele quem as garante. Intervenções especiais do Estado favorecem interesses comerciais específicos (por exemplo, negociação de armas), assim como créditos são oferecidos arbitrariamente oferecidos por um Estado a outro para obter acesso e influência políticos em regiões geopoliticamente sensíveis (como o Oriente Médio). A necessidade de se criar para os empreendimentos capitalistas um ‘clima favorável para os negócios e investimentos’ motiva o Estado, mas se não der certo? O Estado em questão recorre à persuasão, à propaganda, se necessário, à força bruta e ao poder de polícia para suprimir quaisquer obstáculos e oposição ao neoliberalismo. Para isso, os neoliberais impõem fortes limites à governança democrática, com apoio em instituições não-democráticas, que não prestam contas a ninguém (como o Banco Central norte-americano e o FMI), para tomar as decisões essenciais. Se os Estados neoliberais facilitam a difusão da influência das instituições financeiras por meio da desregulação, no plano internacional, os Estados neoliberais centrais deram ao FMI a ao Banco Mundial, em 1982, plena autoridade para negociar o alívio da dívida, o que significou proteger da ameaça de falência as principais instituições financeiras internacionais.

O complexo Wall Street-FMI-Tesouro dos Estados Unidos, designado por David Harvey a dominar a política econômica, principalmente a partir dos anos Clinton, conseguiu persuadir e forçar muitos países em desenvolvimento a seguir o caminho neoliberal, sob a sombra de uma política que ajudou a produzir o boom dos Estados Unidos na década de 1990. Mas o real sucesso dos EUA foi o fato de poder extrair altas taxas de retorno de suas operações financeiras e corporativas no resto do mundo, assim esse fluxo de tributos extraídos sustentou boa parte da afluência alcançada nos anos de 1990. De um lado, a difusão global da nova ortodoxia econômica neoliberal monetarista passou a exercer uma influência cada vez maior, já me 1982, a economia keynesiana fora expurgada dos corredores do FMI e do Banco Mundial, de outro lado, nos anos 1990, alcança-se o ápice, os norte-americanos pareciam ter a resposta e dava a impressão que suas políticas mereciam emulação, todavia geravam crises.

As crises eram endêmicas e contagiosas. A crise da dívida dos anos 1980 não se restringiu ao México, mas teve manifestações globais. Na década de 1990 houve dois conjuntos de crises inter-relacionadas que assinalaram uma característica da neoliberalização desigual, a ‘crise da tequila’ que atingiu o México em 1995 se espalhou com efeitos devastadores no Brasil e na Argentina, com reverberações no Chile, Filipinas, Tailândia e Polônia. Outra onda de crises financeiras começou na Tailândia em 1997, com a desvalorização da moeda local, na esteira do mercado imobiliário especulativo: contaminou a Indonésia, Malásia e Filipinas, depois Hong Kong, Taiwan, Cingapura e a Coreia do Sul. A Estônia e a Rússia foram também atingidas e pouco depois o Brasil desabou. Somente os EUA pareçam imunes. Em suma, todo o ‘regime leste-asiático’ de acumulação estava sendo posto à prova em 1997-98. David Harvey analisou todas essas crises, dentro do quadro que ele designa por desenvolvimentos geográficos desiguais sob a acumulação por espoliação (criação desenfreada de ‘capital fictício’).

Analisou-se, sobretudo o neoliberalismo ‘com características chinesas’, emulação ou não, em dezembro de 1978, na esteira da morte de Mao em 1976 e de vários anos de estagnação econômica, a liderança chinesa sob Deng Xiaoping anunciou um programa de reformas econômicas, chamado de ‘quatro modernizações’: na agricultura, na indústria, na educação e na ciência e defesa. Houve na China uma construção específica de economia de mercado, que incorporou elementos neoliberais entrelaçados com o controle central autoritário, afinal no Chile, Coreia do Sul, Taiwan e Cingapura a compatibilidade entre autoritarismo e mercado capitalista já havia sido estabelecida. Tratava-se, com efeito, de estimular a competição entre empresas estatais a fim de promover a inovação e o crescimento, sobretudo promovendo a abertura da China, ainda que sob a estrita supervisão do Estado, ao comércio e ao investimento externos, acabando com o isolamento chinês do mercado global. De todo modo, a espetacular emergência da China, como potência econômica global a partir de 1980, foi uma consequencia não pretendida da virada neoliberal no mundo capitalista avançado. Os Estados Unidos recorrem a amplos financiamentos via dívida de seu militarismo e seu consumismo, enquanto a China tem financiado via dívidas, empréstimos bancários de déficit de difícil recebimento, amplos investimentos em infra-estruturas e capital fixo. As duas máquinas econômicas que vêm alimentando, portanto o mundo desde a recessão global instaurada a partir de 2001 são os Estados Unidos e a China, a ironia é que esses dois países comportam-se como Estados keynesianos num mundo supostamente governado por regras neoliberais.

Por todo o globo (da China, Brasil, Argentina a Taiwan, da Coréia à África do Sul e ao Irã, da Índia ao Egito) há grupos e movimentos sociais que reivindicam reformas que exprimam valores democráticos, entretanto sob perspectivas mais nobres de liberdade que aquelas que o neoliberalismo prega: há um sistema mais valioso de governança a ser construído que aquele que o neoconservadorismo permite. Tudo isso se refrata às leis ‘antiterror’, ao abandono das Convenções de Genebra em Guantanamo e à qualificação de toda força de oposição como terrorista, que no final não deixam de ser ‘sinais de alerta’, esse cálculo catastrófico torna-se suicida por sobrepujar a capacidade da atual liderança norte-americana. Graças à doutrina do ‘ataque preventivo’ contra nações estrangeiras em meio a uma guerra global ao terror, a opinião pública norte-americana julga que o país luta para levar a liberdade e a democracia a todos os lugares, em particular ao Iraque, entretanto os EUA estão vivendo seus mais sombrios temores com relação a algum inimigo desconhecido e oculto que os ameaça. A hegemonia norte-americana está desabando, portanto desde que o país perdera seu domínio da produção global nas décadas de 1970 e de 1990, sua liderança tecnológica está sendo ameaçada e seu poderio militar tem sido sua única arma mais nítida de domínio global. Até porque o poder militar dos EUA está restrito ao que se pode fazer com um poder destrutivo de alta tecnologia a dez mil metros de altura: o Iraque tem demonstrado os limites dos Estados Unidos no solo.

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