quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Nascimento da Biopolítica (Michel Foucault)


Trata-se de um período em que o que está em questão é um mercado cada vez mais extenso, no limite, trata-se da própria totalidade do que pode ser posto no mercado, no mundo: a uma mundialização a que somos convidados, com o enriquecimento coletivo da Europa, através da própria concorrência que se estabelece entre os Estados, deve-se tomar um caminho do próprio progresso econômico ilimitado? Pelo menos, foi a primeira vez que a Europa apareceu como devendo ter o mundo como mercado infinito.

Questiona-se o funcionamento da razão de Estado nos séculos XVII-XVIII ou o objetivo interior sobre o qual vai se exercer o governo segundo essa razão (Estado polícia) que é, sobretudo ilimitado. Há, entretanto, um número de mecanismos de compensação, de posições a partir das quais se vai procurar estabelecer uma linha de demarcação para esse objetivo ilimitado prescrito ao Estado de polícia pela razão de Estado: o direito é o princípio de limitação da razão de Estado naquela época. Quando se desenvolveu essa racionalidade governamental, entre os séculos XVI-XVII, o direito vai servir, ao contrário, como ponto de apoio para toda a pessoa que quiser limitar essa extensão indefinida de uma razão de Estado que toma corpo num Estado de polícia. Tratam-se, pois de leis fundamentais do reino, as quais os juristas objetam à razão de Estado, dizendo que nenhuma prática governamental e nenhuma razão de Estado podem justificar o seu questionamento: o direito constituído por essas leis fundamentais aparece assim fora da razão de Estado e como princípio dessa limitação. As instituições judiciárias e o direito, que haviam sido intrínsecos ao desenvolvimento do poder real, tornam-se exteriores e exorbitantes em relação ao exercício de um governo segundo a razão de Estado. O direito objetar-se-á, portanto, a razão de Estado quando ela houver ultrapassado esses limites do direito (que vem de Deus ou que foram estabelecidos em uma espécie de origem, numa história remota), assim poder-se-á definir um governo como ilegítimo, por suas usurpações, no limite, liberar seus súditos do seu dever de obediência.

Caracteriza, pois a razão governamental moderna uma transformação que consiste na instauração de um princípio de limitação da arte de governar que já não lhe seja mais extrínseco como era o direito no século XVII, isto é, que seja intrínseco a ela. Regulação interna da racionalidade governamental, uma limitação de fato: o governo que desconhecer essa limitação será simplesmente um governo inábil, inadequado, que não faz o que convém. Toda a razão governamental gira em torno de como não governar demais, assim a ‘economia política’, expressão que se vê entre 1750 e 1810-1820 pode tanto significar certa análise da produção e da circulação de riqueza quanto todo método de governo capaz de assegurar a prosperidade de uma nação. Ela se propõe como objetivo o crescimento do Estado e simultaneamente o crescimento ajustado da população, de um lado, e o dos meios de subsistência, de outro. O aparecimento da economia política e o problema do governo mínimo eram duas coisas interligadas. Não se podia pensar a economia política (a liberdade de mercado) sem levantar ao mesmo tempo o problema do direito público – a limitação do poder público: sobre a separação entre governo e administração, sobre a constituição de um direito administrativo, sobre a necessidade ou não de tribunais administrativos específicos. O problema fundamental do direito público era, portanto, como impor limites para o exercício de um poder público. A lei é concebida, neste sentido, ou como a expressão de uma vontade coletiva que manifesta a parte de direito que os indivíduos aceitaram ceder e a parte que eles querem reservar, ou a lei será concebida como efeito de uma transação que colocará a esfera de intervenção do poder público em oposição a esfera de independência dos indivíduos. Duas concepções da lei, duas noções de liberdades, como dois caminhos para constituir em direito a regulação do poder público: ambiguidade que caracteriza o liberalismo europeu nos séculos XIX-XX.

A palavra ‘liberal’ é usada não porque essa pratica governamental se contenta em respeitar esta ou aquela liberdade, mas porque ela é consumidora de liberdade, na medida em que só pode funcionar se existir certo número de liberdades: se se consomem liberdades, obriga-se, pois a consumi-las. Produzir liberdades é necessário, mas estabelecem limitações, coerções, obrigações, etc. A liberdade se fabrica a cada instante, o liberalismo propõe a fabricá-las: a liberdade de comportamento no regime liberal (arte liberal de governar) serve-se como reguladora, para tanto é necessário produzi-la e organizá-la. Tanto os liberais alemães da Escola de Friburgo, a partir de 1927-30, quanto os americanos atuais, instalaram mecanismos de intervenção econômica para evitar esse ‘a menos’ de liberdade que se acarreta pela passagem ao socialismo, ao fascismo, ao nacional-socialismo, com seu inimigo comum: Keynes.

O curioso paralelismo entre a Escola de Frankfurt e seus vizinhos, a Escola de Friburgo, ou os ordoliberais, embora ambas as escolas tenham partido da problemática dominante na Alemanha do início do século XX, grosso modo, chamada de weberianismo, ou seja, se Marx procurou analisar a lógica contraditória do capitalismo, Max Weber procurou definir o problema da racionalidade irracional da sociedade capitalista. Enquanto o problema da Escola de Frankfurt era determinar qual poderia ser a nova racionalidade social que poderia ser definida para anular a irracionalidade econômica, o problema da Escola de Friburgo era redefinir a racionalidade econômica que permita anular a irracionalidade social do capitalismo. Os ordoliberais adotam a liberdade de mercado como princípio organizador e regulador do Estado, desde o início de sua existência até a última forma de suas intervenções. Inverte-se a fórmula: um Estado sob a vigilância do mercado em vez de um mercado sob a vigilância do Estado. A questão será saber se uma economia de mercado pode servir de princípio, de forma e de modelo para um Estado. Se para os liberais do século XVIII o mercado era definido e descrito a partir da troca livre entre dois parceiros, que estabelecem assim a equivalência entre dois valores, para os ordoliberais, o essencial do mercado está na concorrência. Não há por que intervir diretamente no processo econômico, afinal esse processo traz em si uma estrutura reguladora que nunca se desregulará: a concorrência. Trata-se da Gesellschaftspolitik que deve anular os mecanismos anticoncorrenciais que em alguma sociedade possa suscitar. Há ações reguladoras necessárias, mas que não intervém nos mecanismos da economia de mercado; intervém-se nas condições do mercado, ou seja, nas três tendências (à redução de custos, à redução do lucro da empresa, provisória) que as ações reguladoras devem levar em conta.

Destaca-se principalmente o anarcoliberalismo da Escola de Chicago, por volta de 1939, a propósito do problema jurídico, quando se afirmou que o liberalismo não deriva apenas de uma ordem natural espontânea, como declaravam diversos autores dos ‘Códigos da Natureza’, no século XVIII; a vida econômica se desenrola num quadro jurídico que estabelece: o regime de propriedade, dos contratos, das patentes, da falência, do estatuto das associações profissionais, coisas que não são criações da natureza, mas criações contingentes do legislador. Deve-se falar de uma ordem econômico-jurídica, o jurídico enforma o econômico, que no fundo, refere-se a invenção de um novo capitalismo, onde as leis do mercado sejam o princípio de regulação econômica geral: aplica-se à economia o que na tradição alemã chama-se ‘Rechtsstaat’ e que os ingleses chamam de ‘Rules of Law’, ‘Estado de Direito’, pois, ou reinado da lei – em oposição ao Despotismo e ao Estado de polícia. Lei e ordem, afinal bem além do liberalismo, quer dizer o seguinte, o Estado, o poder público nunca intervirá na ordem econômica a não ser na forma da lei, assim o poder público se limita a essas intervenções legais, de modo a aparecer uma ordem econômica, efeito e princípio da sua própria regulação. Na concepção neoliberal americana destacam-se a teoria do ‘capital humano’ e a análise da ‘criminalidade e delinquencia’, principalmente porque a economia torna-se a ciência do comportamento humano, com base estratégica da atividade dos indivíduos. A Vitalpolitik dos ordoliberais, como política da vida em que se generaliza e multiplica-se as formas empresas no interior do corpo social constitui o escopo do neoliberalismo, que foi amplamente difundidas nos EUA, a partir de uma conduta racional (como objeto econômico) e a partir de técnicas comportamentais que moldam os indivíduos em uma ‘sociedade empresarial’.

Só após compreendermos o que é esse regime governamental chamado liberalismo é que poderemos apreender o que vem a ser biopolítica. A intenção de Michel Foucault, neste curso proferido no Collège de France, entre 1978-79, era a de falar sobre biopolítica, mas acabou se alongando sobre o neoliberalismo, em especial na sua forma alemã, mas não para reconstruir um suporte histórico ou teórico sobre a democracia-cristã alemã. Tratava-se apenas de atribuir um conteúdo concreto às análises das relações de poder. O poder designa um campo de relações que deve ser analisado por inteiro, o que se justifica por ‘governamentalidade’, ou seja, o que significa uma maneira de se conduzir a conduta dos homens. Deste modo, deter-se aos problemas do neoliberalismo não deixa de ser uma razão da ‘moralidade cristã’.

O Neoliberalismo: História e Implicações (David Harvey)


Como se instaurou a neoliberalização? Quem o fez? Em países como o Chile e a Argentina nos anos 1970 é uma resposta segura, simples e brutal, mas sob um golpe militar apoiado pelas classes altas tradicionais, assim como pelo governo norte-americano, seguida pela cruel repressão de todas as solidariedades criadas no âmbito de movimentos trabalhistas e sociais urbanos que ameaçavam o seu poder. A revolução neoliberal atribuída costumeiramente a Thatcher e Reagan a partir de 1979 tinha, entretanto, de ser instaurada por meios democráticos na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Uma mudança de tamanha magnitude como essa exigia que se construísse antes o consentimento político da população para que se ganhassem as eleições. Fortes influências ideológicas circularam nas corporações, nos meios de comunicação e nas numerosas instituições que constituem a sociedade civil [universidades, escolas, Igrejas, associações profissionais]. A ‘longa marcha’ das ideias neoliberais nessas instituições, que Hayek concebera já em 1947, sob a cooptação de certos setores dos meios de comunicação e a conversão de muitos intelectuais à maneira neoliberal de pensar, tudo isso criou um clima de opinião favorável ao neoliberalismo. Certamente o projeto declarado de restauração do poder econômico a uma pequena elite não teria muito apoio popular, mas um esforço de defesa da causa das liberdades individuais poderia constituir um apelo a base popular, disfarçando o trabalho de restauração do poder de classe. Qualquer resistência apelava-se para o uso da força, quer militar (como no Chile), quer financeira (como nas operações do FMI em Moçambique ou nas Filipinas): a coerção pode produzir uma aceitação fatalista e abjeta da ideia de que não há nem havia alternativa, como insistia Margaret Thatcher.

O Estado neoliberal favorece os direitos individuais à propriedade privada e o regime de direito, as instituições de mercados de livre funcionamento e do livre comércio: arranjos institucionais que garantam as liberdades individuais. Privatização e desregulação combinadas com competição tende a eliminar, segundo os neoliberais, os entraves burocráticos, aumentam a eficiência e a produtividade, melhoram a qualidade e reduzem os custos (mediante a redução da carga de impostos). O Estado, neste caso, tem de usar seu monopólio dos meios de violência para preservar, a todo custo, essas liberdades, em outras palavras, o Estado tem de usar seu poder para impor ou inventar sistemas de mercado: o Estado neoliberal deve buscar reorganizações internas e novos arranjos institucionais que melhorem sua posição competitiva diante de outros Estados no mercado global. Óbvio que a competição resulta em monopólio e oligopólios que expulsam outras empresas mais fracas. A livre mobilidade do capital entre setores, regiões e países é julgada crucial, mas há de se remover as barreiras (taxas, tarifas, impedimentos específicos a um dado lugar) ao livre movimento, exceto em áreas essenciais ao ‘interesse nacional’. A soberania do Estado com relação aos movimentos de mercadorias e de capital é, assim, entregue ao mercado global. Acordos internacionais entre países para garantir o regime de direito e as liberdades de comércio são, portanto, incorporados às normas da Organização Mundial do Comércio, e vitais para o avanço do projeto neoliberal no cenário global.

Cria-se um paradoxo em que se supõe que o Estado não seja intervencionista: o Estado neoliberal é forçado, entretanto a intervir, repressivamente, negando as próprias liberdades de que se supõe ser ele quem as garante. Intervenções especiais do Estado favorecem interesses comerciais específicos (por exemplo, negociação de armas), assim como créditos são oferecidos arbitrariamente oferecidos por um Estado a outro para obter acesso e influência políticos em regiões geopoliticamente sensíveis (como o Oriente Médio). A necessidade de se criar para os empreendimentos capitalistas um ‘clima favorável para os negócios e investimentos’ motiva o Estado, mas se não der certo? O Estado em questão recorre à persuasão, à propaganda, se necessário, à força bruta e ao poder de polícia para suprimir quaisquer obstáculos e oposição ao neoliberalismo. Para isso, os neoliberais impõem fortes limites à governança democrática, com apoio em instituições não-democráticas, que não prestam contas a ninguém (como o Banco Central norte-americano e o FMI), para tomar as decisões essenciais. Se os Estados neoliberais facilitam a difusão da influência das instituições financeiras por meio da desregulação, no plano internacional, os Estados neoliberais centrais deram ao FMI a ao Banco Mundial, em 1982, plena autoridade para negociar o alívio da dívida, o que significou proteger da ameaça de falência as principais instituições financeiras internacionais.

O complexo Wall Street-FMI-Tesouro dos Estados Unidos, designado por David Harvey a dominar a política econômica, principalmente a partir dos anos Clinton, conseguiu persuadir e forçar muitos países em desenvolvimento a seguir o caminho neoliberal, sob a sombra de uma política que ajudou a produzir o boom dos Estados Unidos na década de 1990. Mas o real sucesso dos EUA foi o fato de poder extrair altas taxas de retorno de suas operações financeiras e corporativas no resto do mundo, assim esse fluxo de tributos extraídos sustentou boa parte da afluência alcançada nos anos de 1990. De um lado, a difusão global da nova ortodoxia econômica neoliberal monetarista passou a exercer uma influência cada vez maior, já me 1982, a economia keynesiana fora expurgada dos corredores do FMI e do Banco Mundial, de outro lado, nos anos 1990, alcança-se o ápice, os norte-americanos pareciam ter a resposta e dava a impressão que suas políticas mereciam emulação, todavia geravam crises.

As crises eram endêmicas e contagiosas. A crise da dívida dos anos 1980 não se restringiu ao México, mas teve manifestações globais. Na década de 1990 houve dois conjuntos de crises inter-relacionadas que assinalaram uma característica da neoliberalização desigual, a ‘crise da tequila’ que atingiu o México em 1995 se espalhou com efeitos devastadores no Brasil e na Argentina, com reverberações no Chile, Filipinas, Tailândia e Polônia. Outra onda de crises financeiras começou na Tailândia em 1997, com a desvalorização da moeda local, na esteira do mercado imobiliário especulativo: contaminou a Indonésia, Malásia e Filipinas, depois Hong Kong, Taiwan, Cingapura e a Coreia do Sul. A Estônia e a Rússia foram também atingidas e pouco depois o Brasil desabou. Somente os EUA pareçam imunes. Em suma, todo o ‘regime leste-asiático’ de acumulação estava sendo posto à prova em 1997-98. David Harvey analisou todas essas crises, dentro do quadro que ele designa por desenvolvimentos geográficos desiguais sob a acumulação por espoliação (criação desenfreada de ‘capital fictício’).

Analisou-se, sobretudo o neoliberalismo ‘com características chinesas’, emulação ou não, em dezembro de 1978, na esteira da morte de Mao em 1976 e de vários anos de estagnação econômica, a liderança chinesa sob Deng Xiaoping anunciou um programa de reformas econômicas, chamado de ‘quatro modernizações’: na agricultura, na indústria, na educação e na ciência e defesa. Houve na China uma construção específica de economia de mercado, que incorporou elementos neoliberais entrelaçados com o controle central autoritário, afinal no Chile, Coreia do Sul, Taiwan e Cingapura a compatibilidade entre autoritarismo e mercado capitalista já havia sido estabelecida. Tratava-se, com efeito, de estimular a competição entre empresas estatais a fim de promover a inovação e o crescimento, sobretudo promovendo a abertura da China, ainda que sob a estrita supervisão do Estado, ao comércio e ao investimento externos, acabando com o isolamento chinês do mercado global. De todo modo, a espetacular emergência da China, como potência econômica global a partir de 1980, foi uma consequencia não pretendida da virada neoliberal no mundo capitalista avançado. Os Estados Unidos recorrem a amplos financiamentos via dívida de seu militarismo e seu consumismo, enquanto a China tem financiado via dívidas, empréstimos bancários de déficit de difícil recebimento, amplos investimentos em infra-estruturas e capital fixo. As duas máquinas econômicas que vêm alimentando, portanto o mundo desde a recessão global instaurada a partir de 2001 são os Estados Unidos e a China, a ironia é que esses dois países comportam-se como Estados keynesianos num mundo supostamente governado por regras neoliberais.

Por todo o globo (da China, Brasil, Argentina a Taiwan, da Coréia à África do Sul e ao Irã, da Índia ao Egito) há grupos e movimentos sociais que reivindicam reformas que exprimam valores democráticos, entretanto sob perspectivas mais nobres de liberdade que aquelas que o neoliberalismo prega: há um sistema mais valioso de governança a ser construído que aquele que o neoconservadorismo permite. Tudo isso se refrata às leis ‘antiterror’, ao abandono das Convenções de Genebra em Guantanamo e à qualificação de toda força de oposição como terrorista, que no final não deixam de ser ‘sinais de alerta’, esse cálculo catastrófico torna-se suicida por sobrepujar a capacidade da atual liderança norte-americana. Graças à doutrina do ‘ataque preventivo’ contra nações estrangeiras em meio a uma guerra global ao terror, a opinião pública norte-americana julga que o país luta para levar a liberdade e a democracia a todos os lugares, em particular ao Iraque, entretanto os EUA estão vivendo seus mais sombrios temores com relação a algum inimigo desconhecido e oculto que os ameaça. A hegemonia norte-americana está desabando, portanto desde que o país perdera seu domínio da produção global nas décadas de 1970 e de 1990, sua liderança tecnológica está sendo ameaçada e seu poderio militar tem sido sua única arma mais nítida de domínio global. Até porque o poder militar dos EUA está restrito ao que se pode fazer com um poder destrutivo de alta tecnologia a dez mil metros de altura: o Iraque tem demonstrado os limites dos Estados Unidos no solo.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

5 Lições sobre Império (Antonio Negri)


Após os ataques de 11 de setembro, pouca coisa mudou sobre o poder soberano, desde que o entendamos sob a égide de uma soberania limitada e nunca absoluta. Acontece que após os atentados contra Washington e Nova York, o governo estadunidense integrou-se finalmente ao sistema global de relações que definem a atual forma de soberania, deixando de lado seu modo bizantino de soberania. Como compreender o Império após 11 de setembro? De que modo não confundir o Império com os Estados Unidos? Historicamente, o Império não deixa de ser tomado sob uma reflexão liberal numa relação complexa de aspectos internos e externos ao Estado. Em outros termos, trata-se de uma reflexão histórica concernente ao nascimento do liberalismo, cujo termo biopolítica implicaria uma análise da racionalidade política e funcional do governo, em cujo exercício corre-se o risco de se governar em demasia, ou seja, governamentalidade redutível a uma análise jurídica, como mecanismo de produção e interpretação de normas. Para tanto, torna-se necessário, de início, definir três teses sobre o Império: a] não há globalização sem regulamentação, mesmo que sejam regulamentações privadas, que tendem de alguma forma substituir as regulamentações estatais; b] a soberania do Estado-nação está em crise, ela se transfere do Estado-nação e vai para algum lugar, ou seja, a soberania imperial se encontra em um ‘não-lugar’, afinal trata-se da incapacidade do Estado-nação de manter o controle sobre a totalidade do território e sobre as forças antagônicas que se movimentam dentro desse território; c] a luta e a escansão social, que constituem qualquer realidade política, assumem esses fenômenos (globalização sem regulamentação e soberania antinacionalista) na relação de capital. Com base nessas teses, a seguir enumeram-se as cinco lições sobre o Império:

Lição 1 – se o Estado-nação pôde ser concebido incapaz de controlar os mecanismos de reprodução da sociedade, do ponto de vista do capital, isso ocorreu porque as lutas (operárias, antiimperialistas, anticoloniais) impediram-no de ser um ponto de equilíbrio e garantia da soberania do desenvolvimento capitalista. A historiografia colonial escondia os elementos que não interessavam ao colonialismo europeu e excluía a reação na construção imperial, sob o fato de que o Estado colonial foi construído em resposta às lutas. A soberania é o controle da reprodução do capital e o comando sobre as forças que o constitui, percebe-se que na modernidade, a soberania reside no Estado-nação, mas no pós-moderno, ela reside noutro lugar. Uma primeira ruptura interveio no nível do Estado-nação dos países capitalistas desenvolvidos, que obrigou a soberania a situar-se em outro lugar: ruptura que ocorreu após 1968, ou melhor, que se define nos anos de 1971, com o fim da paridade dólar/ouro, e de 1973, com a crise do petróleo e a paz nuclear, com o tratado ABM, de 1972. Período em que se percebeu a impossibilidade de garantia do desenvolvimento capitalista por meio de instrumentos da regulação soberana interna – controle da relação de capital dentro do espaço-nação. Se os grandes Estados-nação europeus se desenvolveram pela expansão imperialista, nos de 1960-70, houve um desequilíbrio colonial-imperialista que se estabeleceu numa extraordinária amplitude, isso determinou a impossibilidade de o Estado-nação estender suas relações de força com fins expansionistas. Além disso, com desequilíbrios internos, os Estados-nação centrais empurravam os problemas de controle e da reprodução capitalista para outros lugares: denomina-se ‘Império’, pois exatamente este ‘não-lugar’ sobre o qual passou a se concentrar a soberania, que garantiu o desenvolvimento capitalista no cenário global. Deste modo, divide-se o período da ‘grande indústria’ em duas fases: a que vai de 1870 até a Primeira Guerra Mundial, da Comuna de Paris à Revolução Russa; e a que vai do fim da Primeira Guerra Mundial a 1968. Distinguem-se esses dois períodos do ponto de vista dos processos laborais, das normas de consumo e de reprodução social, a partir de modelos de regulação econômica e política, sob a perspectiva da transformação da composição política de classe.

Lição 2 – precisa-se desenvolver uma ontologia do trabalho imaterial, do ser imaterial, mas por ‘trabalho imaterial’ compreende-se o conjunto das atividades intelectuais, comunicativas e afetivas expressas por sujeitos e movimentos sociais, que conduzem à produção. Já que a força produtiva nasce dos sujeitos e se organiza na cooperação, destaca-se o ‘General Intellect’ como força de trabalho intelectualizada ou desmaterializada que se expande como epidemia, por uma cooperação produtiva que não é imposta pelo capital, mas pelo trabalho mental tão cooperativo como o trabalho linguístico. Definir o corpo do ‘General Intellect’ é afirmar a potência dos sujeitos que o habitam, assim, o sujeito da organização de uma nova vida.

Lição 3 – o conceito de multidão nasce na obra de Espinosa, na metade do século XVII, com esse termo, entende-se uma multiplicidade de singularidades que se situam em alguma ordem, de todo modo, assume-se um sentido próprio porque falta uma ideia de causalidade externa. Define-se, então, a multidão como nome de uma imanência (conjunto de singularidades), como conceito de classe (sempre produtiva e em movimento) e de uma potência que quer expandir-se e conquistar um corpo (a carne da multidão quer transformar-se no corpo do General Intellect). A carne é o primeiro material da multidão, na qual o corpo e o intelecto são indiferenciados. Assim, quando a multidão se apresenta como conjunto de singularidades produtivas e proliferantes, um lugar de choque se mostra como problema, qual seja ele: enquanto a multidão é limite do Estado, o Estado é apenas um obstáculo para a multidão. Mas quando não mais existe um lugar de choque, pois o choque está em todo lugar – o Império não possui lugar, assim a multidão também não tem lugar. Considera-se, pois que a multidão produz e reproduz o mundo, ela é potência e sua consistência é constituinte. Por isso há um parentesco inseparável entre multidão e poder constituinte. O poder constituinte é a dinâmica organizacional da multidão, o seu fazer-se.

Lição 4 – a forma do biopoder imperial é uma guerra que contém controle e disciplina, desde que compreendamos a guerra como o modo essencial no qual se formam as políticas. A guerra não é poder destrutivo unicamente, mas um poder de ordenamento, constituinte, e inscrito no espaço como atividade seletiva, hierarquizante: a guerra desenha espaços e confins. A ordem nasce propondo disciplina e controle mediante uma promoção contínua de guerra, como forma de biopoder, o tema da definição do inimigo será central numa guerra. Inimigo como perigo público, ou seja, sintoma de uma desordem a ser ordenada, uma ameaça que a própria multidão erige, por isso ela deve ser disciplinada e controlada. A guerra só poderá ser bloqueada por meio da força constitutiva da multidão, em um mundo que não tem mais o fora, a guerra passa a ser interna e sempre menos guerra e cada vez mais polícia. Na condição de multidão, que pode ser definida como limite do poder, ora cada sujeito pode ser um perigo público, ora cada sujeito pode ser inimigo do Império. A resistência dos corpos potencializa-se como biopolítica: apostam-se na possibilidade de resistência e em tecnologias de resistência que se tornem absolutas. Trata-se, enfim, do antipoder, que se relaciona com três coisas: a resistência contra o velho poder, de insurreição e de potência constituinte de um novo poder, ou seja, resistência, insurreição e poder constituinte como trindade do antipoder.

Lição 5 – a relação entre movimentos sociais e modificações institucionais se dá com a transformação da própria natureza dos movimentos, portanto, torna-se fundamental a passagem da hegemonia do trabalho material ao trabalho imaterial. As lutas se desenvolvem sempre ao redor da intenção de libertar o trabalho. Partir de baixo para definir o tema central que consolida a cooperação, portanto somente a afirmação do ‘comum’ nos permite orientar de dentro os fluxos da produção e separar os capitalistas, alienantes, dos que recompõem a liberdade e o saber. Trata-se de conseguir conceber a multidão como o ‘comum’ e a diferença como singularidade: na singularidade enriquecemos os conteúdos das diferenças e no ‘comum’ conseguimos juntá-las, como num novo horizonte de atividade, ou seja, o ‘comum’ como uma perspectiva sob a qual sempre nos movemos. Fazer crescer, enfim, o desejo subversivo do ‘comum’ que perpassa a multidão, colocando-o contra a guerra, transformando-o em potência constituinte.

Método que age no biopolítico, onde a produção se manifesta como expressão produtiva do ‘comum’. Neste sentido, a exploração se evidencia como destruição do ‘comum’ e expropriação da cooperação, o que nos leva a compreender o que significa dizer exploração biopolítica e divisão do trabalho no biopoder: o pós-fordismo e o pós-modernismo produziram a exploração do comum - esta é a nova forma da lei da mais-valia. Paralelamente, esforça-se de múltiplas maneiras, portanto, para distinguir biopolítica [a vida inteiramente investida de atos e condições artificiais de reprodução, quando a própria natureza socializou-se e tornou-se máquina produtiva] e biopoder [quando o Estado expressa comando sobre a vida por meio de suas tecnologias e dispositivos de poder].

Segurança, Território, População (Michel Foucault)


Trata-se da transcrição de um curso realizado no Collège de France, entre 1977-1978, quando Michel Foucault estudava uma nova proposição sobre a análise dos mecanismos de poder: o biopoder. Primeiramente, a soberania se inscreve e funciona sobre um território, mas o seu exercício se desenrola no cotidiano e indica uma multiplicidade de sujeitos, sob a imagem de um povo. Neste caso, o Estado deve ser composto por três elementos: os camponeses [fundações do território], os artesãos [partes comuns do território] e a capital [terceira ordem]. A soberania se exerce nos limites de um território, a disciplina sobre o corpo dos indivíduos, por fim, a segurança se exerce sobre o conjunto da população. Mas de que modo pode-se traçar uma história das tecnologias de segurança, até o ponto em que se pode falar de uma ‘sociedade de segurança’? Destaca-se, então, a emergência de ‘tecnologias de segurança’ no interior de mecanismos de controle social [penalidade] e de mecanismos que funcionam para modificar algo no destino das espécies. Esses dispositivos de segurança podem ser caracterizados, em geral, por seus ‘espaços de segurança’, por seu ‘tratamento do aleatório’, por sua forma específica de ‘normalização’. Deste modo, correlacionam-se a técnica de ‘segurança’ e a ‘população’ através de um ‘meio’.

A segurança vai buscar criar um ambiente em função de uma ‘série de acontecimentos possíveis’, que deverá ser regularizada num contexto multivalente e transformável, o que remete ao temporal e ao aleatório, com efeito, ‘espaço da segurança’ que talvez seja o que se chama de meio. Meio é algo necessário para explicar a ação à distância de um corpo sobre o outro, também compreendido apenas como suporte e elemento de circulação de uma ação, porque o problema da circulação e da causalidade está em questão nessa noção de meio. Enfim, tudo isso se revela como se os dispositivos de segurança criassem, organizassem e planejassem um meio: conjunto de dados naturais [rios, morros, pântanos, etc.], ao mesmo tempo conjunto de dados artificiais [aglomerações de indivíduos, de casas, etc.], ou seja, certos efeitos de massa que agem um sobre os outros, ou melhor, sobre todos que aí residem. Enfim, o meio será compreendido como um campo de intervenção em que se vai procurar atingir precisamente uma população, em vez de indivíduos como sujeitos de direitos ou corpos como organismos requeridos pela disciplina. Assim, o que se procura atingir por esse meio é o ponto de uma série de acontecimentos, onde as populações interferem com acontecimentos quase naturais, que se produzem ao redor delas mesmas. A população é, de um lado, a espécie humana e, de outro, o que se chama de público: considerado do ponto de vista das opiniões da população, das suas maneiras de fazer, dos seus comportamentos, hábitos, temores, preconceitos, exigências, o que age por meio da educação, das campanhas, dos ‘convencimentos’. Portanto, percebe-se uma série mecanismos de segurança-população-governo, ou seja, campo que se abre no século XVIII para se chamar de política.

Há três tipos de governos, para Michel Foucault, que pertencem cada um a uma forma de ciência e reflexão particular: o governo de si mesmo, que pertence à moral; a arte de governar, semelhante a ‘uma família como convém’, que pertence à economia; e uma ‘ciência de bem governar’ o Estado, que pertence à política. Se a doutrina do príncipe [teoria jurídica do soberano] procura sempre deixar assinalada a descontinuidade entre o seu poder e qualquer outra forma de poder que se manifeste, como compreender as ‘artes de governar’? Será preciso identificar certa continuidade descendente e ascendente das formas de poder. Percebe-se que a pedagogia do príncipe assegura uma continuidade ascendente das formas de governo, assinala-se toda uma assimilação do Príncipe de Maquiavel nesse contexto, mas identifica-se a polícia, por sua continuidade descendente: quando um Estado é bem governado, os pais acabam por saber governar suas famílias, riquezas, propriedade, assim se destaca uma linha descendente que repercute do Estado até as condutas dos indivíduos ou na gestão das famílias, o que começou a ser chamado, nesta época, propriamente de ‘polícia’. O governo da família tornou-se o elemento central tanto na pedagogia do príncipe quanto na ‘polícia’, ressalta-se a introdução da economia no cerne do exercício político, afinal a palavra economia designa originariamente ‘o sábio governo da casa para o bem comum de toda família’, traços do verbete que reconheceríamos como ‘economia política’. Quesnay definiu a ‘arte de governar’ como a arte de exercer o poder na segundo o modelo da economia. Governo como disposições das coisas, mas governar e ser governado evoluiu com as acepções de ‘economia’, que variaram do século XVI, como uma simples forma de governo, ao século XVIII, como um nível de realidade, campo de intervenções para o governo, através de uma série de processos complexos absolutamente capitais para nossa história.

A ‘governamentalização do Estado’, descoberta no século XVIII, assume um caminho tortuoso, devido as táticas de governo que permitiram definir o que deve e o que não deve estar no âmbito do Estado. Em primeiro lugar, o ‘Estado de Justiça’ nascido numa territorialidade feudal que corresponde a uma sociedade da lei, sob um jogo de compromissos e litígios; o ‘Estado Administrativo’, nascido numa territorialidade fronteiriça, nos séculos XV-XVI, corresponde a uma sociedade de regulamentos e disciplinas; por fim, um ‘Estado de Governo’, que não é só definido por uma territorialidade ocupada, mas por uma massa [da população]. A partir daí, Michel Foucault procurou demonstrar como essa ‘governamentalidade’ nasceu, de três modos: a] de um modelo arcaico, a pastoral cristã; b] adquiriu as suas dimensões que atualmente possuem graças a um instrumento específico, a ‘polícia’; c] de uma técnica diplomático-militar .

a) Pastorado – a Igreja se desenvolveu por meio de um dispositivo de poder que se aperfeiçoou durante quinze séculos, do século II depois de Cristo até o século XVIII. ‘Poder da Pastoral’, que certamente se transformou ao longo desses séculos, mas a profundidade da sua implantação se mede por intensas agitações e múltiplas revoltas, descontentamentos, lutas e batalhas travadas no mundo cristão, guerras sangrentas em torno desse poder e contra ele. De um lado, ressalta-se que o pastorado se estendeu através do saber, das instituições e das práticas médicas: a medicina foi uma das grandes potências hereditárias do pastorado. De outro, enfatiza-se a ascese, como um exercício de si para si, numa espécie de corpo a corpo que o indivíduo trava consigo mesmo, onde o olhar de outrem não é necessário. De todo modo, o pastorado consistiu numa embriaguez dos comportamentos religiosos que o Oriente Médio exemplificou nos séculos II-IV, bem como os exemplos irrefutáveis de certas seitas gnósticas que nos dão testemunho. Acontece que o ‘pastorado’ não coincide nem com uma política, nem com uma pedagogia, nem com uma retórica, ele é uma ‘arte de governar’ os homens, mas essa governamentalidade entra na política no final do século XVI e nos séculos XVII-XVIII, assinalando o limiar do Estado Moderno. Trata-se de ‘revoltas das condutas’, das quais a de Lutero foi a mais conhecida no Ocidente, essas lutas sempre estiveram ligadas a outros conflitos: na Idade Média, às lutas da burguesia contra o feudalismo; no século XII, ao movimento da Nonnenmystik renana, em conventos femininos, que envolvera o ‘estatuto das mulheres’. De outra forma, o recrutamento militar dava lugar a todo tipo de resistência, recusas, deserções, práticas que se tornaram correntes em todos os exércitos do século XVII-XVIII. Desde que a guerra se transformou para todo cidadão, não só numa profissão ou numa lei geral, mas em uma ética, a partir do momento em que ser um soldado tornou-se uma conduta moral e política, um sacrifício, uma dedicação à causa comum e à salvação, sob a direção de uma autoridade e consciência públicas, no âmbito de uma disciplina precisa, assim ser soldado passou a se uma conduta, compatível com a ‘deserção-insubmissão’.

b) Polícia – do século XV ao XVI a palavra ‘polícia’ designava uma forma de comunidade ou associação que seria regida por uma autoridade pública, um poder político; assim, ‘polícia e regimento’ significavam uma associação de uma maneira de reger e de um modo de governar, cuja polícia seria um resultado positivo e valorizado de um bom governo. A partir do século XVII a ‘polícia’ passou a ser designada pelo conjunto dos meios possíveis de se fazer as forças do Estado crescerem: a polícia vai ser o cálculo e a técnica possíveis de estabelecer uma relação móvel e controlável entre a ordem interna do estado e o crescimento de suas forças, em poucas palavras, o Polizeistaat dos alemães, o ‘Estado de Polícia’, institucionalizado por um conjunto de práticas específicas na Alemanha do século XVII. A polícia ocupar-se-á com o número de habitantes, com as necessidades imediatas que a vida e o nascimento lhes deram, ela cuidará das estradas, da navegabilidade dos rios – o ‘espaço da circulação’ tornar-se-á um objeto privilegiado para a polícia.

c) Diplomático-militar – as novas técnicas diplomático-militares foram constituídas como mecanismo de segurança ao fim da Guerra de Trinta Anos e comportava instrumentos que visavam o objetivo de equilíbrio da Europa. Quando diplomatas, embaixadores negociaram o tratado de Vestfália, eles recebiam instruções de seu governo para agir de acordo com os novos traçados das fronteiras, as novas relações entre os Estados alemães e o Império, as zonas de influência da França, Suécia, Áustria, mas que tudo isso fosse feito em função de um princípio: manter o equilíbrio entre os diferentes Estados da Europa. Tem-se uma guerra que funciona de outra maneira, nem a guerra do direito nem a guerra do Estado. Já que a política funciona para manter o equilíbrio entre os Estados, ela ordenará que se entre em guerra sem que o equilíbrio seja comprometido. O sistema de segurança européia, do equilíbrio europeu, baseia-se no princípio: ‘a guerra é a continuação da política por outros meios’.

domingo, 27 de setembro de 2009

Guerra e Cinema (Paul Virilio)


Trata-se do momento em que a principal finalidade da guerra passa a ser produzir um espetáculo, ou seja, busca-se menos abater o inimigo do que cativá-lo. A guerra subsiste na representação e as armas são mistificações psicológicas, isto é, além de ser instrumento de destruição, as armas são instrumentos de percepção: estimuladores que provocam fenômenos químicos e neurológicos sobre os órgãos dos sentidos e o sistema nervoso central, para afetar a própria identificação dos objetos percebidos. Os campos de batalha vão se tornando assim campos de percepção. Os ingleses, por volta de 1930, abandonaram os meios convencionais de defesa para se dedicar à pesquisa da percepção: início da cibernética, do radar, da goniometria, da microfotografia, do rádio – das telecomunicações. Trata-se da expansão do campo de percepção dos conflitos em que a radiolocalização (o radar) é um instrumento que informa a um observador afastado a presença dos objetos, com o aperfeiçoamento das imagens eletrônicas (imagem radar). Questiona-se, portanto, de que maneira os campos de batalha tornaram-se campos de percepção, cuja teatralização é captada por uma ‘câmera’, ora como um típico motor, ora vista como uma arma, tendo a propaganda um dos seus maiores expoentes, fazendo dos líderes políticos verdadeiros cineastas, em suma, superstars?

Na Segunda Guerra, as salas de comando e os gabinetes de guerra não se localizam mais próximos aos campos de batalha, mas em Berlim ou Londres. O desembarque de uma tropa militar passa a se assemelhar com um imenso set de filmagem – a paisagem é recoberta por instalações fictícias, construções com papelão, borracha e cabos. Toda uma miríade de técnicos e criadores imaginativos é convocada para a realização desse trabalho de desinformação visual: estúdios célebres, como o Shepperton em Londres, consagravam-se pela fabricação de falsos blindados e navios de desembarque. Outra ordenação do tempo, portanto, as imagens e os signos surgem em telas de controle, ‘telas de simulação’ de uma guerra que parece um cinema permanente, uma TV ligada ininterruptamente. O poder do diretor ou do militar não é imaginar apenas, mas prever, simular e memorizar simulações: as imagens podem ser desprovidas de tensões dramáticas, mas as montagens, associando-se disparatadamente, num ritmo vibrante de um grande acontecimento, a comentários específicos que se projetam sobre o espectador.

De modo amplo, o ‘teatro de operação’ está privado agora da extensão espacial real, portanto esses núcleos de interação reúnem uma infinidade de informações e mensagens, retransmitidas no sentido apropriado para o universo que lhe é próprio. De todo modo, a política é um teatro, conforme Thomas Morus, mas muitas vezes se representa no cadalfo. Teatralização trágica e antiga que se reproduz no plágio do mundo visível. As Repúblicas, as democracias não carecem de encantos, elas se tornam acúmulos heterogêneos de ‘ilusão de ótica’. A coisa que se descreve acaba sendo mais importante que o real, na medida em que a imprensa realiza um mercado paralelo da informação. Afirma-se que o realismo é uma ilusão. Desde o século XIX, o ilusionista inventa os objetos sintéticos (bi ou trimórficos) fazendo com que o espectador não veja tudo e que se instale num ambiente de síntese, onde o observador acaba por não ver nada. Transfere-se a ilusão para a realidade do campo de batalha: industrialização do não-olhar. Tende-se a colocar sobre o invisível a máscara do visível através de técnicas em que o nosso cegamento ou incapacidade visual fica no centro da comunicação. O século XX foi então não o da imagem como ótica, mas como ilusão de ótica.

A informação não é mais fixada numa fotografia, ela permite a interpretação do passado e do futuro. A fotografia de reconhecimento aéreo, por exemplo, já depende de uma leitura que possa ser capturada por um ato racionalizado de interpretação, na mesma esteira, a endoscopia e o scanner permitirão uma colagem instrumental e a evidência de órgãos escondidos. Tornar visível o invisível, numa experiência que examina exaustivamente uma determinada imagem atribuindo-lhe sentido ao que parece, em princípio, ser um caos de significações ou que avalia uma paisagem inimiga através da análise das destruições realizadas em elementos camuflados. O desenvolvimento simultâneo da visibilidade e invisibilidade paralelo à origem dessas armas invisíveis herdeiras dos radares, do sonar, das câmeras de alta definição, dos satélites de observação objetivando encontrar tudo além do horizonte, mas principalmente o que existe ou o que não existe. Ficção estratégica da desinformação amplamente utilizada na Alemanha nazista.

A espetacularização da política e seus efeitos de oposição aos governos instrumentalizam-se pelas objetivas das câmeras, arma e motor de um jogo de imagens. A câmera não serve só para produzir imagens, trata-se mais de manipular e falsear informações. Cria-se o onírico, a ‘alucinação visual’. A diferença principal entre o ‘motor-câmera’ e a fotografia está no ponto de vista móvel e não na estagnação do foco – produz-se a confusão com velocidades veiculares. Todo equipamento de filmagem se torna móvel, assim a velocidade surge tanto como grandeza primitiva da imagem quanto como origem da profundidade. Automobilidade cinética do ‘motor-câmera’, que funciona como se tudo não se passasse de um problema de velocidade. A ação dessas armas é subversiva, pois uma forma se dissolve diante de nossos olhos e logo surge outra que se reconstitui: no final do século XIX, um arsenal de armas foi experimentado, em 1874, o francês Jules Janssen criou o seu revólver astronômico para tirar fotografias em série; mais tarde foi Étienne-Jules Marey aperfeiçoou o fuzil cronofotográfico que focalizava e fotografava objetos em movimento; em diversas combinações, balões equipados com um telégrafo cartográfico aéreo sobrevoavam e observavam campos de batalhas; os russos já utilizavam, desde 1904, refletores na defesa noturna, acoplados às câmeras-metralhadoras. Era transpolítica em que o poder real se divide entre a logística das armas e a logística dos sons e imagens, entre gabinetes de guerra e escritórios de propaganda. Mussolini dizia que a propaganda era sua melhor arma.

Foi Hitler quem disse que a função da artilharia e da infantaria será assumida no futuro pela propaganda. Joseph Goebbels (ministro de propaganda de Hitler) era um mestre da desinformação ou da propagação de rumores contraditórios: na época do holocausto, os judeus eram capturados por uma implosão da informação que os impedia de compreender o que realmente acontecia, eles acabaram não acreditando em seu próprio extermínio, a transparência das fontes e documentos fotográficos desvalorizavam as informações verídicas. Na Segunda Guerra, Hitler e Goebbels (ministro da Propaganda e ‘patrono’ do cinema) criaram os precursores do intervalo comercial. Foi assim que Hitler, com seu extraordinário conhecimento técnico nos campos de direção teatral, trucagem, mecanismos de alçapão e cenas giratórias, acima de tudo, os usos possíveis de iluminação e refletores, além de ter sido um grande criador de logotipos, preocupava-se mais com a eficácia psicológica de uma arma do que com sua força operacional, aumentava o seu poder de sugestão hipnótica, com auxílio de cineastas e diretores de espetáculo, buscando transformar o povo alemão numa massa de visionários involuntários. Hitler declarou em 1938 que as massas necessitavam de ilusão, mas uma ilusão fora dos cinemas e teatros, uma ilusão no lado sério da vida. Portanto, em uma guerra, trata-se de apropriar bens materiais e territórios, mas, sobretudo de captar a imaterialidade e de manipular a percepção. Algo que envolve não mais a vigilância policial, mas acopla em uma só companhia a imagem, tática e roteiro, ou seja, coordena-se exército, propaganda e cinema.

Profanações (Giorgio Agamben)


Sancho Pança entra num cinema. Está procurando Dom Quixote e o encontra sentado isolado, fixando o telão. A sala está quase cheia; a galeria está totalmente ocupada por crianças barulhentas. Após algumas inúteis tentativas de chegar a Dom Quixote, Sancho senta-se de má vontade na platéia, ao lado de uma menina, Dulcinéia, que lhe oferece um lambe-lambe. A projeção começou: é um filme de época; sobre o telão correm cavaleiros armados, e num certo momento aparece uma mulher em perigo. De repente, Dom Quixote se ergue em pé, desembainha sua espada, se precipita contra o telão e os seus golpes começam a cortar o tecido. No telão aparecem ainda a mulher e os cavaleiros, mas o corte preto aberto pela espada de Dom Quixote se alarga cada vez mais, devorando as imagens. O público indignado abandona a sala, mas na galeria só as crianças encorajam fanaticamente Dom Quixote. Só a menina na plateia o fixa com reprovação – OS SEIS MINUTOS MAIS BELOS DA HISTÓRIA DO CINEMA.

Do final. Esta obra, publicada em 2004, reúne uma dezena de textos de formatos diferentes e escritos entre momentos anteriores ou posteriores a outros livros do autor: são ensaios, são prosas, ora quase fragmentos, ora quase aforismos. Mas trata-se de um livro de ação política, embora haja quem o define pronto quando o irracional ousa apresentar-se como racional. Mas o defino como um livro de ação política sim, mas sob a égide de uma ‘ontologia do gesto’, o que o articula uma ética no mundo das acepções com uma metafísica imbricada nas coisas. Destacam-se, pois: ‘O AUTOR COMO GESTO’ [em 22 de fevereiro de 1969, Michel Foucault proferiu sua conferência ‘O que é um autor?’, quando ele citou a formulação de Beckett ‘o que importa quem fala, alguém disse, o que importa quem fala?’] e ‘O DIA DO JUÍZO’ [a relação secreta entre o gesto e a fotografia, a foto pode mostrar um rosto, um objeto, um acontecimento qualquer, entretanto no Hades, as sombras dos mortos repetem ao infinito o mesmo gesto, a eterna repetição é aqui a chave secreta de uma infinita recapitulação de uma existência].

ELOGIO DA PROFANAÇÃO – mais uma vez, antes, o ‘capitalismo como religião’ é um dos fragmentos póstumos de Walter Benjamim, em que o capitalismo representa um fenômeno religioso parasitário a partir do cristianismo. Os profetas da modernidade conspiram ou são solidários, de algum modo, com a religião do desespero: o ethos que define Nietzsche, o homem é o super-homem, o primeiro homem que começa conscientemente a realizar a religião capitalista, assim como em Freud, o inferno do inconsciente paga os juros, e em Marx, os juros, como função da culpa, transforma-se imediatamente em socialismo. Walter Benjamim não se cansou, assim criou o conceito de ‘valor de exposição’. Acontece que o sonho capitalista da produção torna-se improfanável. Trata-se da pornografia, quando os pornostars, no momento em que executam suas carícias mais íntimas, olham resolutamente para a objetiva, mostrando maior interesse pelo espectador do que pelos seus partners: mesmo sabendo perfeitamente estar exposta ao olhar, não tem com eles sequer a mínima cumplicidade – não dar a ver nada mais que um dar a ver.

O SER ESPECIAL – a espécie de cada coisa é sua visibilidade, a sua inteligibilidade, mas especial é o ser que coincide com o fato de se tornar visível, com a própria revelação. O espelho é o lugar que descobrimos que temos uma imagem. A tal ponto que os filósofos medievais estavam fascinados pelos espelhos, interrogavam-lhes sobre a natureza das imagens que neles comparecem.

DESEJAR – é a coisa mais simples e humana que há. Não podemos trazer à linguagem nossos desejos porque imaginamos. O corpo dos desejos é uma imagem. E o que é inconfessável no desejo é a imagem que dele fizemos. PARÓDIA – o termo paródia apresenta-se na Ilha de Arturo, uma meditação de Elsa Morante, que se traduz sobre a busca de Arturo ao encontrar um significado de paródia como a imitação do verso de outrem, na qual o que em outro é sério passa a ser ridículo, cômico, grotesco. Essa acepção do termo paródia é moderna, o mundo clássico conheceu outra acepção ligada a técnica musical, que indicava a separação entre canto e palavra, entre melos e logos, já que na música grega, originalmente a melodia tinha que corresponder ao ritmo da palavra; quando tal nexo foi desfeito, na recitação dos poemas homéricos, esse modo particular de recitar provocava risadas nos atenienses. Uma caça: a ontologia é a relação entre linguagem e mundo, mas a paródia, como para-ontologia, expressa a impossibilidade da língua de alcançar a coisa, e da coisa de encontrar seu nome – o espaço é o da literatura, marcado pelo luto e pelo ‘gesto de escárnio’, como o da lógica é marcado pelo silêncio.

OS AJUDANTES – Kafka, em seus romances, depara com criaturas [crepusculares e incompletas] que se definem como ‘ajudantes’, entretanto incapazes de proporcionar ajuda: não entendem de nada, só aprontam bobagens e infantilidade, de tão semelhantes só se distinguem pelo nome, mas são observadores atentos, ágeis. Nelas há algo, um ‘gesto inconcluído’, uma agilidade aérea dos membros e das palavras, que testemunha seu pertencimento a um mundo complementar, que remete a uma cidadezinha perdida. Se a criança é um ser incompleto, a literatura infantil está cheia de ajudantes, pequenos ou grandes demais: gnomos, larvas, gênios, fadas, grilos, caracóis. Pinóquio é o exemplo perfeito de ajudante, o boneco que Gepeto fabricou para si a fim de fazer uma volta ao mundo com ele: nem morto nem vivo, metade golem metade robô. Entre as coisas também aparecem ajudantes, certos objetos inúteis que conservamos, metade lembrança metade talismã.

MAGIA E FELICIDADE – o nome secreto é o ‘gesto’ com o qual a criatura é restituída ao inexpresso, a magia é um gesto, como desvio em relação ao nome. A essência da magia ‘chama’, como ciência dos nomes secretos, isto é, cada coisa, cada ser, além de seu nome manifesto, possui um nome escondido, de todo modo, ser um mago significa conhecer e evocar esse arquinome. Magia significa que ninguém pode ser digno de felicidade, assim somente com a magia podemos alcançar a felicidade. A primeira experiência que a criança possui do mundo é a da incapacidade de magia dos adultos, não a de que eles são mais fortes, de acordo com Walter Benjamim. Só existe sobre a terra uma possibilidade de felicidade: crê no divino sem precisar alcançá-lo, no sentido do ‘não para nós’, ou seja, que a felicidade só nos cabe no ponto em que não estava destinada, não era para nós. As crianças sabem perfeitamente que, para serem felizes, precisam conquistar o apoio do gênio da garrafa, guardar em casa a galinha dos ovos de ouro.

GENIUS – sob uma etimologia transparente, visível na língua italiana entre genius [gênio] e generare [gerar]. Os latinos chamavam Genius ao deus a que todo homem é confiado sob tutela na hora do nascimento. A relação entre Genius e gerar é evidente para os latinos, pois o objeto genial por excelência sempre foi a cama, genialis lectus, afinal nela se realiza o ato da geração.

Sexo & Poder em Roma (Paul Veyne)


Até à Revolução Francesa, Roma permaneceu como um ideal, mas nunca um ideal de organização política, afinal os períodos de anarquia foram tão marcantes quanto os de estabilidade. Trata-se, então, de um ideal de poder, de imperialismo e civilização. Constata-se que a civilização romana, não foi senão uma civilização grega que falava língua latina, depois romano-cristão, acabou por ser uma civilização ‘mundial’. Durante esse período de hegemonia política, a civilização romana, apenas existe. Evoca-se, entretanto, uma civilização, que é helenística, mas que lhe foi acrescentada complementos romanos: a medicina, a filosofia, as matemáticas, a retórica, de origem grega, mas os monumentos, os jogos circenses e o direito, romanos. Enfoca-se, pois uma civilização Greco-romana, tanto que se nota que no oriente do império falava-se grego e no ocidente, latim. De todo modo, todos os povos do império reuniam-se em torno do cristianismo, padres, fiéis, igrejas, era isso o império romano. Os cristãos é quem estavam no poder, assim Roma assumia com toda naturalidade a função de capital política e capital religiosa. Deu-se um conjunto de mudanças quando o mundo Greco-romano de pagão tornou-se cristão: regime de partido único, centralismo democrático, ou seja, de modo tal que a Igreja substituiu a ‘livre imprensa’ do paganismo, quando cada um fundava o templo que quisesse e pregava o deus de sua invenção. Em contrapelo a esta cristianização; desenrolam-se algumas práticas de ligadas ao sexo e ao poder, que tanto profanaram a civilização romana destacam-se: a homofilia; as práticas de aborto e de infanticídio; a promiscuidade; os duelos.

As lutas dos gladiadores surgiram em Roma, nos últimos séculos antes de nossa era. Como desvio de um costume funerário comum a muitos povos, quando alguém importante morria, acontecia de haver gente arrancando os cabelos, ferindo-se ou homens que se batiam junto do túmulo, para mostrarem seu desespero. As lutas dos gladiadores em Roma são a transformação em puro espetáculo desses duelos organizados por ocasião dos enterros. A mudança parece ter começado pelos próprios duelistas que, como carpideiras iam de funeral em funeral, a política fez o resto. Naquela época, toda a população local assistia ao enterro de um nobre, cujo herdeiro oferecia um banquete e um combate de gladiadores: o que passou a ser uma manobra eleitoral, em que um candidato em uma eleição usava como pretexto a morte de um de seus amigos para organizar jogos de gladiadores, assim agradava o público e angariava votos. O duelo mortal, entretanto, tornou-se coisa muito séria, as raras testemunhas estão presentes para garantir a lealdade do combate, mesmo o combate sendo um espetáculo, os que assistiam aos duelos tinham o prazer de ver os homens se matarem. Os gladiadores lutavam com equipamentos como escudos, couraças, protetores das pernas, capacetes. O momento final não era um hábil golpe de espada, mas a decisão soberana do público: a lógica do duela era acuar um infeliz até que ele mesmo se declarasse quebrado, pondo-se a sua existência nas mãos de um público, sentindo-se onipresente nesse instante em que um homem esperava sua sentença. O ponto mais apaixonante era ver o rosto desse homem que esperava e, depois, ver esse rosto quando o homem era enforcado.

Como muitas sociedades da época, Roma não deixava de ser uma sociedade machista. Não só por causa das práticas dos duelos de gladiadores, mas pelo modo em que definiram as práticas sexuais de sua época. Destaca-se, pois como os pagãos viam a homossexualidade: com indulgência? Como um problema a parte? Os antigos, caso reprovaram a homofilia, não a censuravam no que diz respeito à homossexualidade ativa. Entre os romanos, sodomizar seu escravo era tido como um ato inocente, nem mesmos os mais severos não se preocupavam com questão tão subalterna. O importante continuava sendo respeitar as mulheres casadas, as virgens e os adolescentes nascidos livres. Reprimir legalmente a homossexualidade visava, na realidade, impedir que um cidadão fosse tratado como um escravo. O sexo não chegou a ser um ‘caso legal’, o que valia era não ser escravo nem ser passivo. Por isso o que era monstruoso por parte de um cidadão era ter prazeres passivos. Um pederasta, entretanto, não era um monstro, simplesmente era considerado um libertino, que se movia pelo instinto universal do prazer, enfim, não havia o horror sagrado ao pederasta. Se Roma foi uma sociedade escravagista foi por isso que a homofilia espalhou-se tanto? A homofilia está presente por toda parte nos textos romanos: Virgílio tinha gosto exclusivo pelos rapazes; o imperador Cláudio, o das mulheres; Horácio repetia que gostava dos dois sexos. A classificação não se fazia pelas condutas de acordo com o sexo, mas fazia-se pelo fato de ser ativo ou ser passivo, afinal, a mulher é passiva por definição, a menos que seja um monstro, desse modo a homofilia feminina era categoricamente rejeitada, para os romanos antigos, uma mulher que assumia o papel de homem era a inversão do mundo. Havia, entretanto, uma conduta sexual absolutamente rejeitada e vergonhosa: a felação, desde que seja compreendida como um ato que assume passivamente o prazer ao dá-lo a outrem, sem recusar a outrem a posse de uma parte do seu corpo.

No momento em que acaba a Antiguidade pagã e uma moral pré-cristã começa a receber a sanção do aparelho de Estado, ou seja, até o final do século II da nossa era, o aborto, por exemplo, não era nem crime nem delito, o direito penal o ignorava. Mas um enorme obstáculo se impunha: os perigos mortais a que o aborto expunha a mulher, àquela que recorria a poções mágicas ineficazes. Certamente, o aborto era menos difundido do que entre nós, já que desempenha hoje o papel de última instância da contracepção, porque entre os romanos, o que cumpria essa última instância de contracepção era o ‘infanticídio’ (para os filhos de escravos) e o abandono de bebês (para os filhos de homens livres). O infanticídio dos pequenos escravos era coisa rotineira, quando uma escrava ficava grávida de seu dono, perguntava-se se deixaria o filho viver ou se o mataria. Quanto ao abandono dos filhos, praticava-se tanto pelos ricos quanto pelos pobres. Os pobres expunham [abandonavam] os filhos que não podiam alimentar, os ricos expunham seu filho quando já se tinham aprontado as disposições testamentárias ou quando se tinham dúvidas sobre a fidelidade das esposas. Ao contrário das mulheres gregas, que não podiam sair sozinhas, as romanas não ficavam confinadas em casa. A prostituta era uma figura familiar nas ruas romanas. Roma deve sua fundação a uma loba – imagem insólita do animal selvagem dando de mamar a Rômulo e Remo que se tornou um símbolo nacional. Assim, para os romanos, a prostituta é uma ‘loba’ espreitando sua presa de seu antro, lupanar. Acreditava-se que esse rebanho vivia em promiscuidade sexual, com exceção de um grupo de escravos de confiança, que tinham uniões duradouras com uma concubina exclusiva, recebida, em geral, das mãos do próprio dono. De fato, não se sabe muita coisa quanto aos costumes dessa gente dos primeiros séculos de nossa era, romanos que, de todo modo, uma coisa é possível se garantir: o casamento lhe era proibido e assim permaneceu até o século III.

Os Intelectuais na Idade Média (Jacques Le Goff)


No século XII existiu verdadeiramente uma forte corrente antimatrimonial: os sentimentos de Heloísa que primeiro se expressaram, numa carta surpreendente, em que ela incitava Abelardo a renunciar à ideia de casamento. Abelardo foi um lógico e, como todo filósofo, deixou um método. Esse lógico também foi um moralista, mas Abelardo contribui para subverter as condições acerca de um dos sacramentos essenciais: a penitência. O essencial na penitência era o pecado e, por isso, a punição. Abelardo exprimiu e fortaleceu a tendência para inverter essa atitude, a partir daí o importante tornou-se o pecador, sua intenção e o ato capital da penitência passou a ser a contrição, do coração, para que se faça desaparecer o desprezo a Deus ou o consentimento do mal, afinal a caridade divina é incompatível com o pecado. Abelardo foi o primeiro ‘professor’, bretão das redondezas de Nantes, nascido em Pallet em 1079, ele sente o fato de não ter mais adversários à sua altura, o que o levou a criticar um dos mais ilustres mestres parisienses, Guillaume de Champeaux. Abelardo nem por isso era um devasso, será que Heloísa foi uma conquista a acrescentar às conquistas da inteligência? Moça de 17 anos, bonita, culta, em cuja sabedoria tornou-se célebre em toda a França. Mulher perfeita para ele. O amor nascera e não acabaria mais, depois do drama, resistiria aos infortúnios.

E se fora um goliardo? Indubitavelmente Pedro Abelardo foi uma glória no meio parisiense. É que os goliardos acreditavam que o melhor modo de expressar sua superioridade frente aos feudais era se vangloriar dos favores de que gozavam junto às mulheres. Apesar de sua importância, os goliardos foram marginalizados no movimento intelectual, mas legaram aos séculos precedentes um punhado de ideias: de moral natural, libertinagem dos costumes e do espírito, em suma, da crítica da sociedade religiosa. Desapareceram no século XIII, as perseguições os atingiram, desertaram-se muitas vezes para viver vida fácil ou abandonar-se à vagabundagem. Clérigos errantes, sempre foram tratados como vagabundos, lascivos, jograis, bufões, vistos tanto com olhar de ternura quanto com olhar de desprezo, em geral, arruaceiros, porque eram desafiadores da Ordem, então não seriam pessoas perigosas? Mas há quem os vissem como uma espécie de ‘inteligência urbana’, um meio revolucionário, aberto a todas as formas de oposição declarada ao feudalismo. Mas constituíram o corpo daquilo que se denominou por ‘vagabundagem escolar’, que caracterizava o século XII.Enfim, de origem urbana, os goliardos eram representantes típicos de uma época em que o desenvolvimento demográfico, o despertar do comércio, a construção das cidades levaram à implosão do regime feudal.

O intelectual do século XII, colocando-se no centro do canteiro urbano, observava o universo à imagem desse mesmo canteiro: uma usina onde não para de zumbir o ruído dos ofícios, como se a metáfora estóica, do mundo-fábrica, fosse retomada cada vez mais dinâmica. Nesse canteiro o homem se afirmava como um ‘artesão’ que transformava e criava, ou seja, trata-se da redescoberta do ‘homo faber’, cooperador da criação com Deus e com a natureza. O intelectual urbano do século XII se sentia como um artífice e a sua função era o estudo e o ensino das ‘artes liberais’, arte no sentido de técnica, tanto na especificidade do professor como na do carpinteiro ou do ferreiro. Uma ‘arte’ como qualquer atividade racional e justa do espírito aplicada à fabricação dos instrumentos materiais e intelectuais. No meio de todas as ciências [artes liberais], o intelectual era um artesão, em meio a função da construção [gramática], dos silogismos [dialética], do discurso [retórica], dos números [aritmética], das medidas [geometria], das melodias [música], do cálculo dos cursos dos astros [astronomia]. Homem de ofício, o intelectual reconhecia que a ciência deveria ser entesourada, onde as escolas eram oficinas, que exportavam as idéias, como eram as mercadorias. Nessas escolas ou corporações de mestres e estudantes estiveram incorporadas ao sentido urbano, em sentido estrito da palavra, as universidades: a obra do século XII.

O século XII foi o século das universidades porque foi também, ora o século das corporações, afinal em cada cidade em que existia um ofício agrupando um número de membros, que se organizavam para a defesa de seus interesses, instaurava-se um monopólio de defesa que os beneficiassem. É fato, as origens das corporações universitárias nos são tão obscuras como os são a dos outros corpos de ofício, mas elas se organizaram lentamente, por causa de conquistas sucessivas, ao sabor de acasos e ocasiões. As universidades só adquiriram sua autonomia numa luta contra os poderes leigos e eclesiásticos, já que os primeiros universitários foram clérigos, embora com a ocasião da primeira grande greve de 1229-1231, a Universidade deixa de pertencer à jurisdição do bispo, assim como contra os poderes leigos e contra o poder real, ela resistiu a extensão do poder dos soberanos que percebiam o quanto trazia riqueza e prestígio a seu reino.

No início foram, contudo, as cidades, ou seja, o intelectual da Idade Média nasceu com elas, no Ocidente. Com o desenvolvimento industrial e comercial urbano, ou melhor, diz-se modestamente, artesanal. Onde os clérigos eram camponeses, porque cultivavam a terra, mas eram juízes, soldados, administradores, proprietários, enfim, tudo isso ao mesmo tempo. Por isso afirma-se: por trás da razão, a Idade Média soube ver a paixão do justo, por trás da crítica, a busca do melhor, por trás da ciência, a sede da verdade.

A Verdade e as Formas Jurídicas (Michel Foucault)


Composto por cinco conferências pronunciadas na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro entre 21 e 25 de maio de 1973, percebe-se neste livro a demonstração do vínculo entre os sistemas de verdade e as práticas sociais e políticas, a partir de suas intervenções e seus investimentos, onde se destaca a produção de verdade no Ocidente, a partir de uma hipótese ternária, em que ‘prova’ e ‘inquérito’ projetam-se nas ciências naturais e o ‘exame’ imbrica-se nas ciências humanas. Resultado de um amplo questionamento que gira em torno de como se puderam formar domínios de saber a partir de práticas sociais? O que acaba desnudando uma história do próprio sujeito de conhecimento, na relação entre sujeito e objeto, a própria verdade possui uma história.

Para essa empresa realizar-se, destaca-se, primeiramente, que as ciências humanas, no século XIX, ‘saber do homem’ que se origina de práticas de controle e vigilância, ou seja, saber que criou um novo sujeito de conhecimento, ou seja, não se trata de pensar a partir de um sujeito (formas de conhecimento) dado previamente e definitivamente. Em seguida, ressalta-se um primeiro eixo que recobre os ‘domínios históricos de saber’ em relação com as práticas sociais, para poder excluir a concepção de um sujeito dado previamente; um segundo eixo como jogo estratégico, a ‘análise de discurso’, para considerar fatos de discurso numa trama estratégica (jogo de ação e reação, dominação e esquiva, de lutas) que reconhece, num nível, um conjunto regular de fatos lingüísticos, noutro, polêmico e estratégico; e, um terceiro eixo como reformulação da teoria do sujeito, ou seja, com o objetivo de constituir um sujeito no interior da história e em cada momento refundado nela, não dado definitivamente.

Para tanto, compreende-se a possibilidade de uma história da constituição de um sujeito através de discursos tomados como conjunto estratégico de práticas sociais, dentre as quais, destacam-se as práticas jurídicas. Especificam-se, entretanto duas histórias da verdade: interna – história da verdade por meio da história das ciências, onde há correção através de princípios de regulação; externa – a verdade se forma em vários lugares onde regras estratégicas são definidas. A forma judiciária é vista sob o modo em que a sociedade pôde definir tipos de subjetividade ou formas de saber, que põem o homem e a verdade em relações, assim as práticas judiciárias tornou-se o modo pelo qual os homens puderam ser julgados. Destacam-se duas formas de verdades, o inquérito (séc. XV-XVIII) e o exame (séc. XIX): 1] o Inquérito é uma forma característica da verdade praticada principalmente por filósofos, mas também por geógrafos, botânicos, zoólogos e economistas. Com efeito, foi no meado da Idade Média que o inquérito surgiu como forma de pesquisa da verdade no interior da ordem jurídica, com o objetivo de saber quem fez o quê [?], em que condições e em que momento, o Ocidente elaborou complexas técnicas de inquérito que foram utilizadas, mais tarde, tanto na ordem filosófica quanto na ordem científica; 2] o exame compreende formas de análises que originaram a sociologia, a psicologia, criminologia, a psicopatologia, a psicanálise, mas a sua origem remonta a certas práticas de controle político e social.

Discorre-se uma trajetória nesse fragmento da história dos sistemas de pensamento. Primeiramente, na medida mesmo em que, desde o episódio curioso de Édipo, torna-se um ponto marcante, em geral, na história do próprio saber e, em especial, do inquérito: não resta dúvida que o que está em questão em Édipo é o saber e o não-saber (resolver o enigma da esfinge e consultar o oráculo de Delfos), que resume a história do direito grego entre a testemunha (Políbio, por exemplo), o direito do povo (destituição da realeza) e a prova como demonstração do inquérito (a perda do poder para Creonte é a prova derradeira de que Édipo não era rei). Segundo, descola-se para Idade Média, quando a concepção da ‘prova’ está intimamente ligada à efetuação do ‘inquérito’. Terceiro, o exame relacionado à formação social do século XIX, como um dos meios de estabilização da sociedade capitalista. Em quarto lugar, enfim, sobre as reflexões metodológicas, cita-se Nietzsche, sob um discurso que se faz uma análise histórica da própria formação do sujeito, mas sem jamais admitir a preexistência de um sujeito de conhecimento. Deste modo, reprovando as análises sobre religião de Schopenhauer, Nietzsche condenou-lhe por cometer o erro de procurar a origem [Ursprung] da religião num sentimento metafísico que estaria presente em todos os homens. Nietzsche afirmava que, em um determinado lugar e em um determinado ponto do tempo, animais inteligentes inventaram o conhecimento. Invenção [Erfindung], uma ruptura e um pequeno ponto de pequeno começo, isto, percebem-se duas rupturas de Nietzsche, a ruptura entre o conhecimento e as coisas a ser conhecidas, e a ruptura do conhecimento e dos instintos, por relações de poder e dominação. Afinal, rir, deplorar e detestar revela que são os instintos que nos colocam em posição de ódio e de desprezo ao objeto ou coisas ameaçadoras a ser conhecidas. Somente nas relações de poder, portanto, no modo em que nas coisas e nos homens entre si (a partir das lutas que procuram dominar uns aos outros) é que nós podemos compreender o conhecimento. Enfim, por trás de um campo de forças, resta a invenção [Erfindung], que para Nietzsche restabelece o conhecimento, como algo que foi inventado, não tem origem.

A Invenção das Ciências Modernas (Isabelle Stengers)


A ‘ciência normal’ de Thomas Kuhn, o ‘conhecimento tácito’ de Michael Polanyi, a ‘ruptura epistemológica’ de Gaston Bachelard, os ‘três mundos’ de Karl Popper são concepções que, além de um sem-números de clássicos da filosofia, desfilam nessas proposições, mas este livro recorda um encontro que não aconteceu: entre Bruno Latour e Félix Guattari. Em primeiro lugar, trata-se de uma questão que põe em jogo uma relação diferente entre o sujeito e o objeto, a partir da distinção entre as ciências de campo e as ciências de laboratório, estas criam dispositivos experimentais que conferem ao cientista o poder de encenar a sua questão, de depurar o seu próprio fenômeno e depor a seu respeito. Os instrumentos do cientista de campo, ao contrário, abrem-lhe a possibilidade de reunir os indícios que o orientarão na tentativa de reconstituir uma situação concreta, de identificar relações, não de representar um fenômeno como uma função munida de suas variáveis independentes. Nem o indício nem o testemunho experimental podem ser considerados como neutros e independentes do autor, daquilo que se busca prever, pois um campo não vale por todos e não faz do autor um juiz. O que um campo permite afirmar, outro campo pode contradizer sem que por isso um dos testemunhos seja falso, ou sem que as duas situações possam ser julgadas intrinsecamente diferentes. Outras circunstâncias entraram em jogo. O campo pode ser considerado como uma “invenção” por causa de inúmeros procedimentos que o codifica e o decifra, mas ainda assim o campo preexiste como estabilidade à sua decifração e à sua análise. A questão é que o campo não autoriza os seus representantes a fazê-lo existir fora dos locais em que já existe, nem os autoriza a provar quaisquer relações (que permita descrevê-lo) sejam estáveis a uma mudança de circunstância ou sob a intrusão de um elemento novo.

Em segundo lugar, há uma incerteza que marca as ciências de campo, o que nem por isso as tornam inferiores. Esta incerteza acontece por causa de uma modificação das relações entre o sujeito e o objeto, entre aquele que formula as questões e aquilo que as responde: posto a serviço do saber, o ser interrogado não se deixa questionar sem que, incontroladamente, a questão científica tome igualmente sentido para ele. O ‘objeto’, aqui, olha, escuta e interpreta o ‘sujeito’. ‘Quem és tu para me formular esta questão?’ ‘Quem eu sou para formular estas questões?’. Sob esta relação modificada entre sujeito e objeto no campo, a paixão de ‘fazer existir’ assumirá outro sentido, pois o campo existe e preexiste a quem o descreve, distingue-se ‘fazer existir’ e ‘provar a existência de’. O imperativo ético e estético se revela já que nós não temos o direito de submeter, em nome da ciência, os seres humanos, e mesmo os seres vivos, a não importa a que tipo de exame. Até porque será o cientista quem vai ser posto sob questões de responsabilidade, pois ele não poderá fugir da ligação irredutível entre a produção de saber e a produção de existência: mais do que uma questão estritamente ética, trata-se, com efeito, daquilo que Félix Guattari chamou de ‘paradigma estético’, em que estética designa de preferência uma produção de existência que depende do poder de sentir, ser afetado pelo mundo de um modo que se submeta a uma dupla criação de sentidos, de si e do mundo. Processo de heterogênese, mas que nada tem a ver com universos de guetos; aproxima-se de um desafio onde cada qual se pronuncia sobre seu “quase-objeto” que todos criaram, que só pode ser representado numa associação heterogênea das práticas através das quais eles o criaram e os conectaram – o ‘Parlamento das Coisas’, de Bruno Latour. A produção de existência, no sentido científico, como também as exigências da nova utilização da razão por nós inventada, e que, sem dúvida, nos inventou irreversivelmente, nos envolveram numa história em que o processo de heterogênese encontrou seu registro político.

Não há necessidade de nos fixarmos na tarefa de criarmos vínculos entre as duas formas de se fazer política – a oficialmente dos humanos e aquela que nada tem a ver com a política. Esses vínculos sempre existiram, políticos e cientistas sempre se aliaram. Nós estamos sob o peso da invenção de outro modo de fazer política, que faz a integração do que a cidade havia separado: os assuntos humanos (práxis) e a gestão-produção das coisas (téchne). A invenção de uma nova prática de medida das coisas pelos seres humanos é um acontecimento que nós somos herdeiros e orienta a diferença entre “fato” e “ficção”. Todo povo se crê muito diferente dos outros, mas a nossa crença nos permite a um só tempo definir os outros como interessantes – nós inventamos a etnologia – e como condenados antecipadamente em nome da terrível diferenciação, da qual somos os vetores, entre aquilo que é da ordem das ciências e o que é da ordem da cultura. A perspectiva que este livro tenta descortinar é aquela que nós teríamos de nos tornar ainda mais diferentes, nós teríamos de inventar, com nossos próprios termos, um antídoto à crença que nos torna temíveis, aquela que define verdade e ficção em termos de oposição, em termos do poder de que uma dispõe para destruir a outra, crença mais antiga que a invenção das ciências modernas.

Esta perspectiva traz à luz um novo sentido ao enunciado sofista “o homem é a medida de todas as coisas”, que nos define como exigência, pois ser medida de todas as coisas define o ser humano como aquele que é capaz de vir a ser afetado por todas as coisas de um modo que privilegie a criação de sentido. Busca-se compreender a distinção clássica entre sujeito e objeto, porém sem supor mais poder a um sujeito que seria capaz de convocar o objeto ao tribunal onde sua causa será discutida. Desta forma trata-se de uma experimentação que afirmará gradativamente como prática singular, que cria tanto o sujeito e o objeto quanto as suas relações, onde nenhuma dessas relações não possa aspirar a uma validade geral, por mais exata que pareça. Definido por suas paixões, entretanto, o cientista e “o homem como medida de todas as coisas” são capazes de perceber que suas paixões mudam de sentido quando eles próprios mudam de meio. Uma das maiores invenções das ciências modernas exigiu um estilo de paixão do autor científico, espécie de oscilador entre o juiz e o poeta. De um lado, o cientista-juiz deve conseguir que se admita que a realidade que ele produziu é capaz de prestar testemunho fidedigno, isto é, que sua fabricação pode aspirar à condição de simples depuração, eliminação de parasitas, encenação prática das categorias segundo as quais convém interrogar o objeto. De outro lado, o cientista-poeta “cria” seu objeto, “fabrica” uma realidade que não existia tal e qual no mundo, mas que pertence antes à ordem da ficção. O artefato não pode ser reduzido a um simples artefato, e participando com paixão e humor astuto, ao transformar detalhes em diferenças que faria qualquer rival tropeçar, o “poeta-juiz” já anunciaria como um cientista-profeta dizendo “o que será” ou “o que deveria ser”. Um cientista oscila entre o poeta e o juiz, da criação de um artefato ao julgamento da verdade, trata-se do império da ficção: colocar em risco a verdade e desvinculá-la do poder é, ao mesmo tempo, criar multiplicidades de pensamentos.

Se verdade, realidade e conduta se envolvem mutuamente e criam relatos, ao invés de uma compreensão através de juízos, estes relatos ou narrativas são uma conduta arriscada por estarem sempre submetidos a criarem um artefato por meio da proliferação de indícios, que tanto podem alimentar como reduzir o poder da ficção. A história da Terra tende agora a ser posta sobre o signo da roteirização e não mais sobre o poder do julgamento; um roteiro é aqui sempre interdisciplinar como o é a simulação por computador, abarcando o poder dos heterogêneos (humanos e não-humanos articulados, quase-objetos). Trata-se de acompanhar a dinâmica do “fazer existir”, portanto não é fácil resistir sem referência a um passado que conviria lamentar, ainda mais que se trata de resistir a algo que define esse passado como obsoleto e o futuro como promessa, que desde já desqualifica o presente. Quando se trata de acompanhar o dinâmico processo de produção de saber e produção de existência, quer se trate de ciência ou de sociedade, a imagem do progresso é dominante, pois permite estruturar a história. Enfim, a ficção foi assimilada como um paradoxo onde a verdade da modernidade achou refúgio na própria ficção que combatia e na incerteza que exaspera o mundo real.

sábado, 26 de setembro de 2009

O Fim das Certezas (Ilya Prigogine)


Se Einstein afirmou que o ‘tempo é ilusão’, como poderia a flecha do tempo emergir de um mundo que a física atribui uma simetria temporal? O paradoxo do tempo foi identificado no século XIX, pelo físico vienense Ludwig Boltzmann, em cuja tentativa teve como efeito por em equivalência a contradição entre as leis da física newtoniana, baseadas na equivalência e numa distinção essencial entre passado e futuro. Se as leis afirmavam a equivalência entre passado e futuro, toda tentativa de conferir uma significação fundamental à flecha do tempo aparecia como ameaça a esse ideal. A partir de Boltzmann houve um desenvolvimento espetacular da física do não-equilíbrio e da dinâmica dos sistemas dinâmicos instáveis associados à ideia de caos, que nos força a revisar a noção de tempo como foi formulada desde Galileu.

A física do não-equilíbrio estuda os processos dissipativos, caracterizados por um tempo unidirecional, o que confere nova significação à irreversibilidade. A irreversibilidade está na base de um sem-número de fenômenos como a formação de turbilhões, de oscilações químicas ou da radiação laser. Todos esses fenômenos ilustram o papel fundamental da constituição da flecha do tempo. A irreversibilidade é uma condição essencial de comportamentos coerentes em populações de bilhões de bilhões de moléculas. A tese de que a flecha do tempo é apenas subjetiva ou fenomenológica vai se tornando absurda, na medida em que somos seus filhos: sem a coerência dos processos irreversíveis de não-equilíbrio, o aparecimento da vida na Terra seria inconcebível. Através dos sistemas dinâmicos instáveis, reconhece-se a função primordial das flutuações e da instabilidade, associadas a essas noções aparecem as escolhas múltiplas e os horizontes de previsibilidade limitada. Os sistemas dinâmicos instáveis levam também a uma extensão da dinâmica clássica e da física quântica e, a partir daí, a uma formulação nova das leis fundamentais da física. Tanto na dinâmica clássica quanto na física quântica, as leis fundamentais exprimem agora possibilidades e não certezas. Temos leis, mas também eventos que não são dedutíveis das leis, que atualizam as suas possibilidades.

As leis enunciadas pela física não têm como objetivo negar o devir em nome do ser, elas visam a descrever mudanças, os movimentos caracterizados por uma velocidade que varia ao longo do tempo, no entanto, seu enunciado constitui um triunfo do ser sobre o devir. O exemplo por excelência da lei de Newton que liga a força à aceleração: se conhecemos as condições iniciais de um sistema submetido a essa lei, seu estado num instante qualquer, calcula-se todos os estados seguintes, bem como todos os estados precedentes. Sabe-se que a física newtoniana foi destronada no século XX pela mecânica quântica e pela relatividade, embora sobrevivam os traços fundamentais da lei de Newton (seu determinismo, sua simetria temporal). A mecânica quântica não descreve trajetórias, mas funções de onda, cuja equação de base, a de Schrödinger, também é de determinista e de tempo reversível. Representam-se as leis da natureza, então, uma vez que as condições iniciais são dadas, tudo será determinado. Mas a concepção de uma natureza passiva, submetida a leis deterministas é uma especificidade do Ocidente. Enfim, enquanto os processos reversíveis são descritos por equações de evolução invariantes à inversão do tempo, como a equação de Newton na dinâmica clássica e a de Schrödinger na mecânica quântica, os processos irreversíveis implicam uma quebra da simetria temporal.

A natureza apresenta-nos tanto processos irreversíveis quanto processos reversíveis, mas os primeiros são a regra e os segundos, exceção. Se a radiação solar é resultado de processos nucleares irreversíveis, nenhuma descrição da ecosfera seria possível sem os inúmeros processos irreversíveis que nela se desenrolam. Os processos reversíveis correspondem, em compensação, sempre a idealizações. A distinção entre processos reversíveis e irreversíveis foi introduzida na termodinâmica através do conceito de entropia, que Clausius, em 1865, estabeleceu que a entropia permaneça constante nos processos reversíveis, mas a entropia é produzida nos processos irreversíveis. O crescimento da entropia, pois designa a direção do futuro. Nas situações próximas do equilíbrio, o estado estacionário corresponde a um mínimo da produção de entropia. No equilíbrio, a produção de entropia é nula. Esta propriedade garante a regressão das flutuações. Longe do equilíbrio, a matéria adquire novas propriedades em que as flutuações, as instabilidades desempenham um papel essencial: a matéria torna-se mais ativa.

As reações químicas são, em geral, não lineares. Suponhamos uma reação em que [x] é um conjunto de dados iniciais, [y] um conjunto de produtos intermediários e [z] um conjunto de produtos finais. Para cada valor dado de [x] e de [y], existem muitas soluções possíveis para a concentração dos produtos intermediários de [z]. Dentre essas soluções, apenas uma corresponde ao estado de equilíbrio termodinâmico e à entropia máxima. Essa solução pode ser prolongada no domínio do não-equilíbrio. O resultado inesperado é, entretanto, que os estados estacionários se tornam, em geral, instáveis a partir de uma distância crítica do equilíbrio. Para além do primeiro ponto de bifurcação produz-se um conjunto de fenômenos novos, que podem ser reações químicas oscilantes, estruturas espaciais de não-equilíbrio, ondas químicas. Chama-se ‘estruturas dissipativas’ essas novas organizações espaço-temporais, que aumentam geralmente a entropia: o que se pode chamar de ‘auto-organização’, mesmo conhecendo o estado inicial do sistema, não podemos prever qual dos regimes de atividade ele irá escolher. Examinando de perto o efeito das flutuações, percebe-se que perto do equilíbrio elas são irrelevantes, ao passo que longe do equilíbrio desempenham papel central. As flutuações são essenciais nos pontos de bifurcação, se as suprimissem, o sistema se manteria estável. As bifurcações são, enfim, uma fonte de quebra de simetria, do espaço, do tempo ou do espaço e do tempo simultaneamente.

O universo é um sistema termodinâmico gigante, desde o começo mostra-se como um sistema longe do equilíbrio. Em todos os níveis, encontram-se instabilidades e bifurcações. Fala-se de ‘sensibilidade às condições iniciais’, tal como a ilustra a famosa parábola do ‘efeito borboleta’, fala-se com frequência em ‘caos determinista’, de fato, as equações caóticas são deterministas, como o são as leis de Newton, no entanto, elas geram comportamentos de aspecto aleatórios, porque as ‘leis do caos’ associadas a uma descrição regular e preditiva dos sistemas caóticos se situam no nível estatístico, ou seja, trata-se de uma formulação da dinâmica que não tem equivalentes em termos de trajetórias. Descrição não-local, onde a simetria em relação ao tempo é quebrada, pois o passado e o futuro desempenham papéis diferentes. Os fenômenos irreversíveis não param com a criação do universo. As reações nucleares continuam no interior do Sol, a vida continua na Terra. Os fenômenos irreversíveis devem achar sua explicação na física clássica ou quântica de hoje, ainda que seu ponto de partida seja cosmológico. Vincula-se a irreversibilidade a uma nova formulação, probabilista, da natureza. O futuro não é dado. Vivemos o fim das certezas.

O Declínio do Poder Americano (Immanuel Wallerstein)


A economia-mundo capitalista está em crise na sua condição de sistema social histórico. Os sistemas que estão em crise entram em um período caótico, do qual emerge eventualmente uma nova ordem. As suas trajetórias bifurcam-se e é intrinsecamente impossível prever que ramo prevalecerá. Isto significa que pequenas pressões em uma ou noutra direção podem ser decisivas, pois o sistema está longe do equilíbrio, quando a luta social está extremamente acentuada. Em outros termos, no meio de um período de crise, ou seja, caótico, onde ocorre uma bifurcação, não resta dúvida, que nos próximos cinquenta anos, em nosso caso, o sistema atual deixará de existir e um novo existirá. Neste sentido, discute-se a diferença entre a retórica e a realidade que rodeia as principais palavras de ordem no nosso discurso político contemporâneo: globalização, racismo, Islã, democracia, os ‘outros’.

Ressalta-se que a tese central que se apresenta está redimensionada no fato de que os Estados Unidos são uma potência em hegemônica em declínio, em que o 11 de setembro foi mais uma das evidências disso. O 11 de setembro de 2001 foi um momento dramático na história americana, mas foi apenas um evento em uma trajetória que começou muito antes e que parece continuar ainda por décadas, o que se pode chamar de período do declínio da hegemonia norte-americana. O 11 de setembro trouxe para primeiro plano cinco realidades sobre os Estados Unidos: 1] os limites de seu poder militar (mesmo sendo a maior potência militar do mundo, um bando de ‘crentes fanáticos’, com pouco dinheiro relativamente e ainda menos equipamentos militares, conseguiu lançar um ataque grave no território dos EUA) ; 2] a aprofundamento do sentimento antiamericano no mundo (esse sentimento não é novo, difundido desde que os EUA tornaram-se potência hegemonia do sistema-mundo, após 1945); 3] a ‘ressaca’ dos excessos econômicos da década de 1990 (fase extraordinariamente boa em termos econômicos, com elevada produtividade, bolsas de valores em alta, reduzida taxa de desemprego, baixa inflação, etc.); 4] as pressões contraditórias do nacionalismo norte-americano (a instabilidade do nacionalismo americano pode causar estragos porque assumiu duas formas diferentes, isolacionismo, retirada para dentro da ‘fortaleza América’, e o expansionismo, próprio da potência que visa conquistas militares); 5] a fragilidade da tradição de liberdades civis (em relação as repetidas ações ilegais levadas a cabo pelas agências federais como a CIA e o FBI, além de agências locais).

A ascensão dos Estados Unidos à hegemonia no sistema-mundo começou por volta de 1870, com o início do declínio do Reino Unido. Os EUA e a Alemanha competiram entre si como concorrentes a essa sucessão da Grã-Bretanha. Ambos expandiram sua base industrial entre 1870 e 1914, ultrapassando a Grã-Bretanha. Mas os Estados Unidos enfraqueceram como potência global desde a década de 1970, cuja reação a ataques terroristas acelerou esse declínio. Assim, percebe-se que os fatores econômicos, políticos e militares que contribuíram para a hegemonia dos EUA são os mesmos fatores que produzirão o seu iminente declínio. O sucesso dos Estados Unidos como potência no pós-guerra criou as condições para que sua própria hegemonia fosse minada, processo que pode ser captado por quatro símbolos: a] a guerra do Vietnã (os vietnamitas combateram os franceses, os japoneses, os norte-americanos e no fim venceram, com o seu esforço de estabelecer o seu próprio Estado, o que foi um forte golpe aos EUA de continuarem a ser a potência hegemônica econômica e política do globo); b] as revoluções de 1968 (as consequências políticas diretas das revoluções mundiais de 1968 devem ser articuladas as repercussões geopolíticas e intelectuais que causaram, cuja posição ideológica oficial dos EUA – antifascista, anticomunista, anticolonialista – começou a parecer débil); c] a queda do Muro de Berlim em 1989 (o colapso do comunismo significava, com efeito, o próprio colapso do liberalismo, ao eliminar a única justificativa ideológica para a hegemonia dos EUA); d] os ataques terroristas de setembro de 2001 (contra as organizações terroristas islâmicas, os EUA invadiram o Afeganistão e o Iraque com um súbito objetivo de ‘democratizá-los’, mas uma vez forçados a se retirarem, parecem ainda mais ineficazes).

A ‘equação da democracia-racismo’ torna-se cada vez mais uma sombra na escalada ao precipício dessa hegemonia. Por um lado, a democracia busca tratar todas as pessoas igualmente, em termos de poder, distribuição, oportunidades de realização pessoal. Mas, por outro lado, o racismo não deixa de ser um modo primário de distinguir entre aqueles que têm direitos e os outros, os que não têm direitos ou têm menos direitos, ao mesmo tempo em que define os grupos. O racismo está, pois, disseminado por todo o sistema-mundo, infelizmente, nenhum canto do planeta está livre dele. Portanto, o racismo não tem por objetivo excluir ou exterminar as pessoas, em primeiro lugar, busca manter as pessoas dentro do sistema, mas como inferiores, assim elas podem ser exploradas economicamente ou usadas como bode expiatórios políticos, o que aconteceu com o nazismo, segundo Immanuel Wallerstein, foi um disparate, uma derrapagem, perda de controle.