A ‘ciência normal’ de Thomas Kuhn, o ‘conhecimento tácito’ de Michael Polanyi, a ‘ruptura epistemológica’ de Gaston Bachelard, os ‘três mundos’ de Karl Popper são concepções que, além de um sem-números de clássicos da filosofia, desfilam nessas proposições, mas este livro recorda um encontro que não aconteceu: entre Bruno Latour e Félix Guattari. Em primeiro lugar, trata-se de uma questão que põe em jogo uma relação diferente entre o sujeito e o objeto, a partir da distinção entre as ciências de campo e as ciências de laboratório, estas criam dispositivos experimentais que conferem ao cientista o poder de encenar a sua questão, de depurar o seu próprio fenômeno e depor a seu respeito. Os instrumentos do cientista de campo, ao contrário, abrem-lhe a possibilidade de reunir os indícios que o orientarão na tentativa de reconstituir uma situação concreta, de identificar relações, não de representar um fenômeno como uma função munida de suas variáveis independentes. Nem o indício nem o testemunho experimental podem ser considerados como neutros e independentes do autor, daquilo que se busca prever, pois um campo não vale por todos e não faz do autor um juiz. O que um campo permite afirmar, outro campo pode contradizer sem que por isso um dos testemunhos seja falso, ou sem que as duas situações possam ser julgadas intrinsecamente diferentes. Outras circunstâncias entraram em jogo. O campo pode ser considerado como uma “invenção” por causa de inúmeros procedimentos que o codifica e o decifra, mas ainda assim o campo preexiste como estabilidade à sua decifração e à sua análise. A questão é que o campo não autoriza os seus representantes a fazê-lo existir fora dos locais em que já existe, nem os autoriza a provar quaisquer relações (que permita descrevê-lo) sejam estáveis a uma mudança de circunstância ou sob a intrusão de um elemento novo.
Em segundo lugar, há uma incerteza que marca as ciências de campo, o que nem por isso as tornam inferiores. Esta incerteza acontece por causa de uma modificação das relações entre o sujeito e o objeto, entre aquele que formula as questões e aquilo que as responde: posto a serviço do saber, o ser interrogado não se deixa questionar sem que, incontroladamente, a questão científica tome igualmente sentido para ele. O ‘objeto’, aqui, olha, escuta e interpreta o ‘sujeito’. ‘Quem és tu para me formular esta questão?’ ‘Quem eu sou para formular estas questões?’. Sob esta relação modificada entre sujeito e objeto no campo, a paixão de ‘fazer existir’ assumirá outro sentido, pois o campo existe e preexiste a quem o descreve, distingue-se ‘fazer existir’ e ‘provar a existência de’. O imperativo ético e estético se revela já que nós não temos o direito de submeter, em nome da ciência, os seres humanos, e mesmo os seres vivos, a não importa a que tipo de exame. Até porque será o cientista quem vai ser posto sob questões de responsabilidade, pois ele não poderá fugir da ligação irredutível entre a produção de saber e a produção de existência: mais do que uma questão estritamente ética, trata-se, com efeito, daquilo que Félix Guattari chamou de ‘paradigma estético’, em que estética designa de preferência uma produção de existência que depende do poder de sentir, ser afetado pelo mundo de um modo que se submeta a uma dupla criação de sentidos, de si e do mundo. Processo de heterogênese, mas que nada tem a ver com universos de guetos; aproxima-se de um desafio onde cada qual se pronuncia sobre seu “quase-objeto” que todos criaram, que só pode ser representado numa associação heterogênea das práticas através das quais eles o criaram e os conectaram – o ‘Parlamento das Coisas’, de Bruno Latour. A produção de existência, no sentido científico, como também as exigências da nova utilização da razão por nós inventada, e que, sem dúvida, nos inventou irreversivelmente, nos envolveram numa história em que o processo de heterogênese encontrou seu registro político.
Não há necessidade de nos fixarmos na tarefa de criarmos vínculos entre as duas formas de se fazer política – a oficialmente dos humanos e aquela que nada tem a ver com a política. Esses vínculos sempre existiram, políticos e cientistas sempre se aliaram. Nós estamos sob o peso da invenção de outro modo de fazer política, que faz a integração do que a cidade havia separado: os assuntos humanos (práxis) e a gestão-produção das coisas (téchne). A invenção de uma nova prática de medida das coisas pelos seres humanos é um acontecimento que nós somos herdeiros e orienta a diferença entre “fato” e “ficção”. Todo povo se crê muito diferente dos outros, mas a nossa crença nos permite a um só tempo definir os outros como interessantes – nós inventamos a etnologia – e como condenados antecipadamente em nome da terrível diferenciação, da qual somos os vetores, entre aquilo que é da ordem das ciências e o que é da ordem da cultura. A perspectiva que este livro tenta descortinar é aquela que nós teríamos de nos tornar ainda mais diferentes, nós teríamos de inventar, com nossos próprios termos, um antídoto à crença que nos torna temíveis, aquela que define verdade e ficção em termos de oposição, em termos do poder de que uma dispõe para destruir a outra, crença mais antiga que a invenção das ciências modernas.
Esta perspectiva traz à luz um novo sentido ao enunciado sofista “o homem é a medida de todas as coisas”, que nos define como exigência, pois ser medida de todas as coisas define o ser humano como aquele que é capaz de vir a ser afetado por todas as coisas de um modo que privilegie a criação de sentido. Busca-se compreender a distinção clássica entre sujeito e objeto, porém sem supor mais poder a um sujeito que seria capaz de convocar o objeto ao tribunal onde sua causa será discutida. Desta forma trata-se de uma experimentação que afirmará gradativamente como prática singular, que cria tanto o sujeito e o objeto quanto as suas relações, onde nenhuma dessas relações não possa aspirar a uma validade geral, por mais exata que pareça. Definido por suas paixões, entretanto, o cientista e “o homem como medida de todas as coisas” são capazes de perceber que suas paixões mudam de sentido quando eles próprios mudam de meio. Uma das maiores invenções das ciências modernas exigiu um estilo de paixão do autor científico, espécie de oscilador entre o juiz e o poeta. De um lado, o cientista-juiz deve conseguir que se admita que a realidade que ele produziu é capaz de prestar testemunho fidedigno, isto é, que sua fabricação pode aspirar à condição de simples depuração, eliminação de parasitas, encenação prática das categorias segundo as quais convém interrogar o objeto. De outro lado, o cientista-poeta “cria” seu objeto, “fabrica” uma realidade que não existia tal e qual no mundo, mas que pertence antes à ordem da ficção. O artefato não pode ser reduzido a um simples artefato, e participando com paixão e humor astuto, ao transformar detalhes em diferenças que faria qualquer rival tropeçar, o “poeta-juiz” já anunciaria como um cientista-profeta dizendo “o que será” ou “o que deveria ser”. Um cientista oscila entre o poeta e o juiz, da criação de um artefato ao julgamento da verdade, trata-se do império da ficção: colocar em risco a verdade e desvinculá-la do poder é, ao mesmo tempo, criar multiplicidades de pensamentos.
Se verdade, realidade e conduta se envolvem mutuamente e criam relatos, ao invés de uma compreensão através de juízos, estes relatos ou narrativas são uma conduta arriscada por estarem sempre submetidos a criarem um artefato por meio da proliferação de indícios, que tanto podem alimentar como reduzir o poder da ficção. A história da Terra tende agora a ser posta sobre o signo da roteirização e não mais sobre o poder do julgamento; um roteiro é aqui sempre interdisciplinar como o é a simulação por computador, abarcando o poder dos heterogêneos (humanos e não-humanos articulados, quase-objetos). Trata-se de acompanhar a dinâmica do “fazer existir”, portanto não é fácil resistir sem referência a um passado que conviria lamentar, ainda mais que se trata de resistir a algo que define esse passado como obsoleto e o futuro como promessa, que desde já desqualifica o presente. Quando se trata de acompanhar o dinâmico processo de produção de saber e produção de existência, quer se trate de ciência ou de sociedade, a imagem do progresso é dominante, pois permite estruturar a história. Enfim, a ficção foi assimilada como um paradoxo onde a verdade da modernidade achou refúgio na própria ficção que combatia e na incerteza que exaspera o mundo real.
Em segundo lugar, há uma incerteza que marca as ciências de campo, o que nem por isso as tornam inferiores. Esta incerteza acontece por causa de uma modificação das relações entre o sujeito e o objeto, entre aquele que formula as questões e aquilo que as responde: posto a serviço do saber, o ser interrogado não se deixa questionar sem que, incontroladamente, a questão científica tome igualmente sentido para ele. O ‘objeto’, aqui, olha, escuta e interpreta o ‘sujeito’. ‘Quem és tu para me formular esta questão?’ ‘Quem eu sou para formular estas questões?’. Sob esta relação modificada entre sujeito e objeto no campo, a paixão de ‘fazer existir’ assumirá outro sentido, pois o campo existe e preexiste a quem o descreve, distingue-se ‘fazer existir’ e ‘provar a existência de’. O imperativo ético e estético se revela já que nós não temos o direito de submeter, em nome da ciência, os seres humanos, e mesmo os seres vivos, a não importa a que tipo de exame. Até porque será o cientista quem vai ser posto sob questões de responsabilidade, pois ele não poderá fugir da ligação irredutível entre a produção de saber e a produção de existência: mais do que uma questão estritamente ética, trata-se, com efeito, daquilo que Félix Guattari chamou de ‘paradigma estético’, em que estética designa de preferência uma produção de existência que depende do poder de sentir, ser afetado pelo mundo de um modo que se submeta a uma dupla criação de sentidos, de si e do mundo. Processo de heterogênese, mas que nada tem a ver com universos de guetos; aproxima-se de um desafio onde cada qual se pronuncia sobre seu “quase-objeto” que todos criaram, que só pode ser representado numa associação heterogênea das práticas através das quais eles o criaram e os conectaram – o ‘Parlamento das Coisas’, de Bruno Latour. A produção de existência, no sentido científico, como também as exigências da nova utilização da razão por nós inventada, e que, sem dúvida, nos inventou irreversivelmente, nos envolveram numa história em que o processo de heterogênese encontrou seu registro político.
Não há necessidade de nos fixarmos na tarefa de criarmos vínculos entre as duas formas de se fazer política – a oficialmente dos humanos e aquela que nada tem a ver com a política. Esses vínculos sempre existiram, políticos e cientistas sempre se aliaram. Nós estamos sob o peso da invenção de outro modo de fazer política, que faz a integração do que a cidade havia separado: os assuntos humanos (práxis) e a gestão-produção das coisas (téchne). A invenção de uma nova prática de medida das coisas pelos seres humanos é um acontecimento que nós somos herdeiros e orienta a diferença entre “fato” e “ficção”. Todo povo se crê muito diferente dos outros, mas a nossa crença nos permite a um só tempo definir os outros como interessantes – nós inventamos a etnologia – e como condenados antecipadamente em nome da terrível diferenciação, da qual somos os vetores, entre aquilo que é da ordem das ciências e o que é da ordem da cultura. A perspectiva que este livro tenta descortinar é aquela que nós teríamos de nos tornar ainda mais diferentes, nós teríamos de inventar, com nossos próprios termos, um antídoto à crença que nos torna temíveis, aquela que define verdade e ficção em termos de oposição, em termos do poder de que uma dispõe para destruir a outra, crença mais antiga que a invenção das ciências modernas.
Esta perspectiva traz à luz um novo sentido ao enunciado sofista “o homem é a medida de todas as coisas”, que nos define como exigência, pois ser medida de todas as coisas define o ser humano como aquele que é capaz de vir a ser afetado por todas as coisas de um modo que privilegie a criação de sentido. Busca-se compreender a distinção clássica entre sujeito e objeto, porém sem supor mais poder a um sujeito que seria capaz de convocar o objeto ao tribunal onde sua causa será discutida. Desta forma trata-se de uma experimentação que afirmará gradativamente como prática singular, que cria tanto o sujeito e o objeto quanto as suas relações, onde nenhuma dessas relações não possa aspirar a uma validade geral, por mais exata que pareça. Definido por suas paixões, entretanto, o cientista e “o homem como medida de todas as coisas” são capazes de perceber que suas paixões mudam de sentido quando eles próprios mudam de meio. Uma das maiores invenções das ciências modernas exigiu um estilo de paixão do autor científico, espécie de oscilador entre o juiz e o poeta. De um lado, o cientista-juiz deve conseguir que se admita que a realidade que ele produziu é capaz de prestar testemunho fidedigno, isto é, que sua fabricação pode aspirar à condição de simples depuração, eliminação de parasitas, encenação prática das categorias segundo as quais convém interrogar o objeto. De outro lado, o cientista-poeta “cria” seu objeto, “fabrica” uma realidade que não existia tal e qual no mundo, mas que pertence antes à ordem da ficção. O artefato não pode ser reduzido a um simples artefato, e participando com paixão e humor astuto, ao transformar detalhes em diferenças que faria qualquer rival tropeçar, o “poeta-juiz” já anunciaria como um cientista-profeta dizendo “o que será” ou “o que deveria ser”. Um cientista oscila entre o poeta e o juiz, da criação de um artefato ao julgamento da verdade, trata-se do império da ficção: colocar em risco a verdade e desvinculá-la do poder é, ao mesmo tempo, criar multiplicidades de pensamentos.
Se verdade, realidade e conduta se envolvem mutuamente e criam relatos, ao invés de uma compreensão através de juízos, estes relatos ou narrativas são uma conduta arriscada por estarem sempre submetidos a criarem um artefato por meio da proliferação de indícios, que tanto podem alimentar como reduzir o poder da ficção. A história da Terra tende agora a ser posta sobre o signo da roteirização e não mais sobre o poder do julgamento; um roteiro é aqui sempre interdisciplinar como o é a simulação por computador, abarcando o poder dos heterogêneos (humanos e não-humanos articulados, quase-objetos). Trata-se de acompanhar a dinâmica do “fazer existir”, portanto não é fácil resistir sem referência a um passado que conviria lamentar, ainda mais que se trata de resistir a algo que define esse passado como obsoleto e o futuro como promessa, que desde já desqualifica o presente. Quando se trata de acompanhar o dinâmico processo de produção de saber e produção de existência, quer se trate de ciência ou de sociedade, a imagem do progresso é dominante, pois permite estruturar a história. Enfim, a ficção foi assimilada como um paradoxo onde a verdade da modernidade achou refúgio na própria ficção que combatia e na incerteza que exaspera o mundo real.
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