domingo, 27 de setembro de 2009

Os Intelectuais na Idade Média (Jacques Le Goff)


No século XII existiu verdadeiramente uma forte corrente antimatrimonial: os sentimentos de Heloísa que primeiro se expressaram, numa carta surpreendente, em que ela incitava Abelardo a renunciar à ideia de casamento. Abelardo foi um lógico e, como todo filósofo, deixou um método. Esse lógico também foi um moralista, mas Abelardo contribui para subverter as condições acerca de um dos sacramentos essenciais: a penitência. O essencial na penitência era o pecado e, por isso, a punição. Abelardo exprimiu e fortaleceu a tendência para inverter essa atitude, a partir daí o importante tornou-se o pecador, sua intenção e o ato capital da penitência passou a ser a contrição, do coração, para que se faça desaparecer o desprezo a Deus ou o consentimento do mal, afinal a caridade divina é incompatível com o pecado. Abelardo foi o primeiro ‘professor’, bretão das redondezas de Nantes, nascido em Pallet em 1079, ele sente o fato de não ter mais adversários à sua altura, o que o levou a criticar um dos mais ilustres mestres parisienses, Guillaume de Champeaux. Abelardo nem por isso era um devasso, será que Heloísa foi uma conquista a acrescentar às conquistas da inteligência? Moça de 17 anos, bonita, culta, em cuja sabedoria tornou-se célebre em toda a França. Mulher perfeita para ele. O amor nascera e não acabaria mais, depois do drama, resistiria aos infortúnios.

E se fora um goliardo? Indubitavelmente Pedro Abelardo foi uma glória no meio parisiense. É que os goliardos acreditavam que o melhor modo de expressar sua superioridade frente aos feudais era se vangloriar dos favores de que gozavam junto às mulheres. Apesar de sua importância, os goliardos foram marginalizados no movimento intelectual, mas legaram aos séculos precedentes um punhado de ideias: de moral natural, libertinagem dos costumes e do espírito, em suma, da crítica da sociedade religiosa. Desapareceram no século XIII, as perseguições os atingiram, desertaram-se muitas vezes para viver vida fácil ou abandonar-se à vagabundagem. Clérigos errantes, sempre foram tratados como vagabundos, lascivos, jograis, bufões, vistos tanto com olhar de ternura quanto com olhar de desprezo, em geral, arruaceiros, porque eram desafiadores da Ordem, então não seriam pessoas perigosas? Mas há quem os vissem como uma espécie de ‘inteligência urbana’, um meio revolucionário, aberto a todas as formas de oposição declarada ao feudalismo. Mas constituíram o corpo daquilo que se denominou por ‘vagabundagem escolar’, que caracterizava o século XII.Enfim, de origem urbana, os goliardos eram representantes típicos de uma época em que o desenvolvimento demográfico, o despertar do comércio, a construção das cidades levaram à implosão do regime feudal.

O intelectual do século XII, colocando-se no centro do canteiro urbano, observava o universo à imagem desse mesmo canteiro: uma usina onde não para de zumbir o ruído dos ofícios, como se a metáfora estóica, do mundo-fábrica, fosse retomada cada vez mais dinâmica. Nesse canteiro o homem se afirmava como um ‘artesão’ que transformava e criava, ou seja, trata-se da redescoberta do ‘homo faber’, cooperador da criação com Deus e com a natureza. O intelectual urbano do século XII se sentia como um artífice e a sua função era o estudo e o ensino das ‘artes liberais’, arte no sentido de técnica, tanto na especificidade do professor como na do carpinteiro ou do ferreiro. Uma ‘arte’ como qualquer atividade racional e justa do espírito aplicada à fabricação dos instrumentos materiais e intelectuais. No meio de todas as ciências [artes liberais], o intelectual era um artesão, em meio a função da construção [gramática], dos silogismos [dialética], do discurso [retórica], dos números [aritmética], das medidas [geometria], das melodias [música], do cálculo dos cursos dos astros [astronomia]. Homem de ofício, o intelectual reconhecia que a ciência deveria ser entesourada, onde as escolas eram oficinas, que exportavam as idéias, como eram as mercadorias. Nessas escolas ou corporações de mestres e estudantes estiveram incorporadas ao sentido urbano, em sentido estrito da palavra, as universidades: a obra do século XII.

O século XII foi o século das universidades porque foi também, ora o século das corporações, afinal em cada cidade em que existia um ofício agrupando um número de membros, que se organizavam para a defesa de seus interesses, instaurava-se um monopólio de defesa que os beneficiassem. É fato, as origens das corporações universitárias nos são tão obscuras como os são a dos outros corpos de ofício, mas elas se organizaram lentamente, por causa de conquistas sucessivas, ao sabor de acasos e ocasiões. As universidades só adquiriram sua autonomia numa luta contra os poderes leigos e eclesiásticos, já que os primeiros universitários foram clérigos, embora com a ocasião da primeira grande greve de 1229-1231, a Universidade deixa de pertencer à jurisdição do bispo, assim como contra os poderes leigos e contra o poder real, ela resistiu a extensão do poder dos soberanos que percebiam o quanto trazia riqueza e prestígio a seu reino.

No início foram, contudo, as cidades, ou seja, o intelectual da Idade Média nasceu com elas, no Ocidente. Com o desenvolvimento industrial e comercial urbano, ou melhor, diz-se modestamente, artesanal. Onde os clérigos eram camponeses, porque cultivavam a terra, mas eram juízes, soldados, administradores, proprietários, enfim, tudo isso ao mesmo tempo. Por isso afirma-se: por trás da razão, a Idade Média soube ver a paixão do justo, por trás da crítica, a busca do melhor, por trás da ciência, a sede da verdade.

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