Trata-se da transcrição de um curso realizado no Collège de France, entre 1977-1978, quando Michel Foucault estudava uma nova proposição sobre a análise dos mecanismos de poder: o biopoder. Primeiramente, a soberania se inscreve e funciona sobre um território, mas o seu exercício se desenrola no cotidiano e indica uma multiplicidade de sujeitos, sob a imagem de um povo. Neste caso, o Estado deve ser composto por três elementos: os camponeses [fundações do território], os artesãos [partes comuns do território] e a capital [terceira ordem]. A soberania se exerce nos limites de um território, a disciplina sobre o corpo dos indivíduos, por fim, a segurança se exerce sobre o conjunto da população. Mas de que modo pode-se traçar uma história das tecnologias de segurança, até o ponto em que se pode falar de uma ‘sociedade de segurança’? Destaca-se, então, a emergência de ‘tecnologias de segurança’ no interior de mecanismos de controle social [penalidade] e de mecanismos que funcionam para modificar algo no destino das espécies. Esses dispositivos de segurança podem ser caracterizados, em geral, por seus ‘espaços de segurança’, por seu ‘tratamento do aleatório’, por sua forma específica de ‘normalização’. Deste modo, correlacionam-se a técnica de ‘segurança’ e a ‘população’ através de um ‘meio’.
A segurança vai buscar criar um ambiente em função de uma ‘série de acontecimentos possíveis’, que deverá ser regularizada num contexto multivalente e transformável, o que remete ao temporal e ao aleatório, com efeito, ‘espaço da segurança’ que talvez seja o que se chama de meio. Meio é algo necessário para explicar a ação à distância de um corpo sobre o outro, também compreendido apenas como suporte e elemento de circulação de uma ação, porque o problema da circulação e da causalidade está em questão nessa noção de meio. Enfim, tudo isso se revela como se os dispositivos de segurança criassem, organizassem e planejassem um meio: conjunto de dados naturais [rios, morros, pântanos, etc.], ao mesmo tempo conjunto de dados artificiais [aglomerações de indivíduos, de casas, etc.], ou seja, certos efeitos de massa que agem um sobre os outros, ou melhor, sobre todos que aí residem. Enfim, o meio será compreendido como um campo de intervenção em que se vai procurar atingir precisamente uma população, em vez de indivíduos como sujeitos de direitos ou corpos como organismos requeridos pela disciplina. Assim, o que se procura atingir por esse meio é o ponto de uma série de acontecimentos, onde as populações interferem com acontecimentos quase naturais, que se produzem ao redor delas mesmas. A população é, de um lado, a espécie humana e, de outro, o que se chama de público: considerado do ponto de vista das opiniões da população, das suas maneiras de fazer, dos seus comportamentos, hábitos, temores, preconceitos, exigências, o que age por meio da educação, das campanhas, dos ‘convencimentos’. Portanto, percebe-se uma série mecanismos de segurança-população-governo, ou seja, campo que se abre no século XVIII para se chamar de política.
Há três tipos de governos, para Michel Foucault, que pertencem cada um a uma forma de ciência e reflexão particular: o governo de si mesmo, que pertence à moral; a arte de governar, semelhante a ‘uma família como convém’, que pertence à economia; e uma ‘ciência de bem governar’ o Estado, que pertence à política. Se a doutrina do príncipe [teoria jurídica do soberano] procura sempre deixar assinalada a descontinuidade entre o seu poder e qualquer outra forma de poder que se manifeste, como compreender as ‘artes de governar’? Será preciso identificar certa continuidade descendente e ascendente das formas de poder. Percebe-se que a pedagogia do príncipe assegura uma continuidade ascendente das formas de governo, assinala-se toda uma assimilação do Príncipe de Maquiavel nesse contexto, mas identifica-se a polícia, por sua continuidade descendente: quando um Estado é bem governado, os pais acabam por saber governar suas famílias, riquezas, propriedade, assim se destaca uma linha descendente que repercute do Estado até as condutas dos indivíduos ou na gestão das famílias, o que começou a ser chamado, nesta época, propriamente de ‘polícia’. O governo da família tornou-se o elemento central tanto na pedagogia do príncipe quanto na ‘polícia’, ressalta-se a introdução da economia no cerne do exercício político, afinal a palavra economia designa originariamente ‘o sábio governo da casa para o bem comum de toda família’, traços do verbete que reconheceríamos como ‘economia política’. Quesnay definiu a ‘arte de governar’ como a arte de exercer o poder na segundo o modelo da economia. Governo como disposições das coisas, mas governar e ser governado evoluiu com as acepções de ‘economia’, que variaram do século XVI, como uma simples forma de governo, ao século XVIII, como um nível de realidade, campo de intervenções para o governo, através de uma série de processos complexos absolutamente capitais para nossa história.
A ‘governamentalização do Estado’, descoberta no século XVIII, assume um caminho tortuoso, devido as táticas de governo que permitiram definir o que deve e o que não deve estar no âmbito do Estado. Em primeiro lugar, o ‘Estado de Justiça’ nascido numa territorialidade feudal que corresponde a uma sociedade da lei, sob um jogo de compromissos e litígios; o ‘Estado Administrativo’, nascido numa territorialidade fronteiriça, nos séculos XV-XVI, corresponde a uma sociedade de regulamentos e disciplinas; por fim, um ‘Estado de Governo’, que não é só definido por uma territorialidade ocupada, mas por uma massa [da população]. A partir daí, Michel Foucault procurou demonstrar como essa ‘governamentalidade’ nasceu, de três modos: a] de um modelo arcaico, a pastoral cristã; b] adquiriu as suas dimensões que atualmente possuem graças a um instrumento específico, a ‘polícia’; c] de uma técnica diplomático-militar .
a) Pastorado – a Igreja se desenvolveu por meio de um dispositivo de poder que se aperfeiçoou durante quinze séculos, do século II depois de Cristo até o século XVIII. ‘Poder da Pastoral’, que certamente se transformou ao longo desses séculos, mas a profundidade da sua implantação se mede por intensas agitações e múltiplas revoltas, descontentamentos, lutas e batalhas travadas no mundo cristão, guerras sangrentas em torno desse poder e contra ele. De um lado, ressalta-se que o pastorado se estendeu através do saber, das instituições e das práticas médicas: a medicina foi uma das grandes potências hereditárias do pastorado. De outro, enfatiza-se a ascese, como um exercício de si para si, numa espécie de corpo a corpo que o indivíduo trava consigo mesmo, onde o olhar de outrem não é necessário. De todo modo, o pastorado consistiu numa embriaguez dos comportamentos religiosos que o Oriente Médio exemplificou nos séculos II-IV, bem como os exemplos irrefutáveis de certas seitas gnósticas que nos dão testemunho. Acontece que o ‘pastorado’ não coincide nem com uma política, nem com uma pedagogia, nem com uma retórica, ele é uma ‘arte de governar’ os homens, mas essa governamentalidade entra na política no final do século XVI e nos séculos XVII-XVIII, assinalando o limiar do Estado Moderno. Trata-se de ‘revoltas das condutas’, das quais a de Lutero foi a mais conhecida no Ocidente, essas lutas sempre estiveram ligadas a outros conflitos: na Idade Média, às lutas da burguesia contra o feudalismo; no século XII, ao movimento da Nonnenmystik renana, em conventos femininos, que envolvera o ‘estatuto das mulheres’. De outra forma, o recrutamento militar dava lugar a todo tipo de resistência, recusas, deserções, práticas que se tornaram correntes em todos os exércitos do século XVII-XVIII. Desde que a guerra se transformou para todo cidadão, não só numa profissão ou numa lei geral, mas em uma ética, a partir do momento em que ser um soldado tornou-se uma conduta moral e política, um sacrifício, uma dedicação à causa comum e à salvação, sob a direção de uma autoridade e consciência públicas, no âmbito de uma disciplina precisa, assim ser soldado passou a se uma conduta, compatível com a ‘deserção-insubmissão’.
b) Polícia – do século XV ao XVI a palavra ‘polícia’ designava uma forma de comunidade ou associação que seria regida por uma autoridade pública, um poder político; assim, ‘polícia e regimento’ significavam uma associação de uma maneira de reger e de um modo de governar, cuja polícia seria um resultado positivo e valorizado de um bom governo. A partir do século XVII a ‘polícia’ passou a ser designada pelo conjunto dos meios possíveis de se fazer as forças do Estado crescerem: a polícia vai ser o cálculo e a técnica possíveis de estabelecer uma relação móvel e controlável entre a ordem interna do estado e o crescimento de suas forças, em poucas palavras, o Polizeistaat dos alemães, o ‘Estado de Polícia’, institucionalizado por um conjunto de práticas específicas na Alemanha do século XVII. A polícia ocupar-se-á com o número de habitantes, com as necessidades imediatas que a vida e o nascimento lhes deram, ela cuidará das estradas, da navegabilidade dos rios – o ‘espaço da circulação’ tornar-se-á um objeto privilegiado para a polícia.
c) Diplomático-militar – as novas técnicas diplomático-militares foram constituídas como mecanismo de segurança ao fim da Guerra de Trinta Anos e comportava instrumentos que visavam o objetivo de equilíbrio da Europa. Quando diplomatas, embaixadores negociaram o tratado de Vestfália, eles recebiam instruções de seu governo para agir de acordo com os novos traçados das fronteiras, as novas relações entre os Estados alemães e o Império, as zonas de influência da França, Suécia, Áustria, mas que tudo isso fosse feito em função de um princípio: manter o equilíbrio entre os diferentes Estados da Europa. Tem-se uma guerra que funciona de outra maneira, nem a guerra do direito nem a guerra do Estado. Já que a política funciona para manter o equilíbrio entre os Estados, ela ordenará que se entre em guerra sem que o equilíbrio seja comprometido. O sistema de segurança européia, do equilíbrio europeu, baseia-se no princípio: ‘a guerra é a continuação da política por outros meios’.
A segurança vai buscar criar um ambiente em função de uma ‘série de acontecimentos possíveis’, que deverá ser regularizada num contexto multivalente e transformável, o que remete ao temporal e ao aleatório, com efeito, ‘espaço da segurança’ que talvez seja o que se chama de meio. Meio é algo necessário para explicar a ação à distância de um corpo sobre o outro, também compreendido apenas como suporte e elemento de circulação de uma ação, porque o problema da circulação e da causalidade está em questão nessa noção de meio. Enfim, tudo isso se revela como se os dispositivos de segurança criassem, organizassem e planejassem um meio: conjunto de dados naturais [rios, morros, pântanos, etc.], ao mesmo tempo conjunto de dados artificiais [aglomerações de indivíduos, de casas, etc.], ou seja, certos efeitos de massa que agem um sobre os outros, ou melhor, sobre todos que aí residem. Enfim, o meio será compreendido como um campo de intervenção em que se vai procurar atingir precisamente uma população, em vez de indivíduos como sujeitos de direitos ou corpos como organismos requeridos pela disciplina. Assim, o que se procura atingir por esse meio é o ponto de uma série de acontecimentos, onde as populações interferem com acontecimentos quase naturais, que se produzem ao redor delas mesmas. A população é, de um lado, a espécie humana e, de outro, o que se chama de público: considerado do ponto de vista das opiniões da população, das suas maneiras de fazer, dos seus comportamentos, hábitos, temores, preconceitos, exigências, o que age por meio da educação, das campanhas, dos ‘convencimentos’. Portanto, percebe-se uma série mecanismos de segurança-população-governo, ou seja, campo que se abre no século XVIII para se chamar de política.
Há três tipos de governos, para Michel Foucault, que pertencem cada um a uma forma de ciência e reflexão particular: o governo de si mesmo, que pertence à moral; a arte de governar, semelhante a ‘uma família como convém’, que pertence à economia; e uma ‘ciência de bem governar’ o Estado, que pertence à política. Se a doutrina do príncipe [teoria jurídica do soberano] procura sempre deixar assinalada a descontinuidade entre o seu poder e qualquer outra forma de poder que se manifeste, como compreender as ‘artes de governar’? Será preciso identificar certa continuidade descendente e ascendente das formas de poder. Percebe-se que a pedagogia do príncipe assegura uma continuidade ascendente das formas de governo, assinala-se toda uma assimilação do Príncipe de Maquiavel nesse contexto, mas identifica-se a polícia, por sua continuidade descendente: quando um Estado é bem governado, os pais acabam por saber governar suas famílias, riquezas, propriedade, assim se destaca uma linha descendente que repercute do Estado até as condutas dos indivíduos ou na gestão das famílias, o que começou a ser chamado, nesta época, propriamente de ‘polícia’. O governo da família tornou-se o elemento central tanto na pedagogia do príncipe quanto na ‘polícia’, ressalta-se a introdução da economia no cerne do exercício político, afinal a palavra economia designa originariamente ‘o sábio governo da casa para o bem comum de toda família’, traços do verbete que reconheceríamos como ‘economia política’. Quesnay definiu a ‘arte de governar’ como a arte de exercer o poder na segundo o modelo da economia. Governo como disposições das coisas, mas governar e ser governado evoluiu com as acepções de ‘economia’, que variaram do século XVI, como uma simples forma de governo, ao século XVIII, como um nível de realidade, campo de intervenções para o governo, através de uma série de processos complexos absolutamente capitais para nossa história.
A ‘governamentalização do Estado’, descoberta no século XVIII, assume um caminho tortuoso, devido as táticas de governo que permitiram definir o que deve e o que não deve estar no âmbito do Estado. Em primeiro lugar, o ‘Estado de Justiça’ nascido numa territorialidade feudal que corresponde a uma sociedade da lei, sob um jogo de compromissos e litígios; o ‘Estado Administrativo’, nascido numa territorialidade fronteiriça, nos séculos XV-XVI, corresponde a uma sociedade de regulamentos e disciplinas; por fim, um ‘Estado de Governo’, que não é só definido por uma territorialidade ocupada, mas por uma massa [da população]. A partir daí, Michel Foucault procurou demonstrar como essa ‘governamentalidade’ nasceu, de três modos: a] de um modelo arcaico, a pastoral cristã; b] adquiriu as suas dimensões que atualmente possuem graças a um instrumento específico, a ‘polícia’; c] de uma técnica diplomático-militar .
a) Pastorado – a Igreja se desenvolveu por meio de um dispositivo de poder que se aperfeiçoou durante quinze séculos, do século II depois de Cristo até o século XVIII. ‘Poder da Pastoral’, que certamente se transformou ao longo desses séculos, mas a profundidade da sua implantação se mede por intensas agitações e múltiplas revoltas, descontentamentos, lutas e batalhas travadas no mundo cristão, guerras sangrentas em torno desse poder e contra ele. De um lado, ressalta-se que o pastorado se estendeu através do saber, das instituições e das práticas médicas: a medicina foi uma das grandes potências hereditárias do pastorado. De outro, enfatiza-se a ascese, como um exercício de si para si, numa espécie de corpo a corpo que o indivíduo trava consigo mesmo, onde o olhar de outrem não é necessário. De todo modo, o pastorado consistiu numa embriaguez dos comportamentos religiosos que o Oriente Médio exemplificou nos séculos II-IV, bem como os exemplos irrefutáveis de certas seitas gnósticas que nos dão testemunho. Acontece que o ‘pastorado’ não coincide nem com uma política, nem com uma pedagogia, nem com uma retórica, ele é uma ‘arte de governar’ os homens, mas essa governamentalidade entra na política no final do século XVI e nos séculos XVII-XVIII, assinalando o limiar do Estado Moderno. Trata-se de ‘revoltas das condutas’, das quais a de Lutero foi a mais conhecida no Ocidente, essas lutas sempre estiveram ligadas a outros conflitos: na Idade Média, às lutas da burguesia contra o feudalismo; no século XII, ao movimento da Nonnenmystik renana, em conventos femininos, que envolvera o ‘estatuto das mulheres’. De outra forma, o recrutamento militar dava lugar a todo tipo de resistência, recusas, deserções, práticas que se tornaram correntes em todos os exércitos do século XVII-XVIII. Desde que a guerra se transformou para todo cidadão, não só numa profissão ou numa lei geral, mas em uma ética, a partir do momento em que ser um soldado tornou-se uma conduta moral e política, um sacrifício, uma dedicação à causa comum e à salvação, sob a direção de uma autoridade e consciência públicas, no âmbito de uma disciplina precisa, assim ser soldado passou a se uma conduta, compatível com a ‘deserção-insubmissão’.
b) Polícia – do século XV ao XVI a palavra ‘polícia’ designava uma forma de comunidade ou associação que seria regida por uma autoridade pública, um poder político; assim, ‘polícia e regimento’ significavam uma associação de uma maneira de reger e de um modo de governar, cuja polícia seria um resultado positivo e valorizado de um bom governo. A partir do século XVII a ‘polícia’ passou a ser designada pelo conjunto dos meios possíveis de se fazer as forças do Estado crescerem: a polícia vai ser o cálculo e a técnica possíveis de estabelecer uma relação móvel e controlável entre a ordem interna do estado e o crescimento de suas forças, em poucas palavras, o Polizeistaat dos alemães, o ‘Estado de Polícia’, institucionalizado por um conjunto de práticas específicas na Alemanha do século XVII. A polícia ocupar-se-á com o número de habitantes, com as necessidades imediatas que a vida e o nascimento lhes deram, ela cuidará das estradas, da navegabilidade dos rios – o ‘espaço da circulação’ tornar-se-á um objeto privilegiado para a polícia.
c) Diplomático-militar – as novas técnicas diplomático-militares foram constituídas como mecanismo de segurança ao fim da Guerra de Trinta Anos e comportava instrumentos que visavam o objetivo de equilíbrio da Europa. Quando diplomatas, embaixadores negociaram o tratado de Vestfália, eles recebiam instruções de seu governo para agir de acordo com os novos traçados das fronteiras, as novas relações entre os Estados alemães e o Império, as zonas de influência da França, Suécia, Áustria, mas que tudo isso fosse feito em função de um princípio: manter o equilíbrio entre os diferentes Estados da Europa. Tem-se uma guerra que funciona de outra maneira, nem a guerra do direito nem a guerra do Estado. Já que a política funciona para manter o equilíbrio entre os Estados, ela ordenará que se entre em guerra sem que o equilíbrio seja comprometido. O sistema de segurança européia, do equilíbrio europeu, baseia-se no princípio: ‘a guerra é a continuação da política por outros meios’.
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