sábado, 26 de setembro de 2009

Matéria e Memória: Ensaio sobre a Relação do Corpo com o Espírito (Henri Bergson)


Marcam-se respectivamente as diferenças entre as doutrinas idealistas e as realistas: recuar a extensão até a percepção tátil como sua propriedade exclusiva, ou lançar a extensão para fora e ainda mais longe da percepção. Entre estas doutrinas são definidas algumas dificuldades, que Bergson persegue na teoria da percepção, onde ambas constituem certo ‘postulado comum’: afirmar a descontinuidade das diversas qualidades sensíveis e a passagem da extensão ao que é inextenso. Um corpo, isto é, um objeto material independente, apresenta-se inicialmente a nós como um sistema de qualidades, em que a resistência e a cor – como dados da visão e do tato – ocupam o centro e mantêm suspensas, de certo modo, todas as outras. Os dados da visão e do tato são os que se estendem mais manifestamente no espaço, e o caráter essencial do espaço é a continuidade. Quando nós abrimos nossos olhos, nosso campo de visão simultaneamente vai se colorir por inteiro. Do mesmo modo que os sólidos são necessariamente contíguos uns aos outros, o nosso tato acompanha a superfície e as arestas dos objetos sem jamais encontrar interrupção verdadeira. Essa continuidade muda, contudo, de aspecto entre um momento a outro.

Percorrem no pensamento de Bergson alguns questionamentos, por exemplo: como explicar a gênese de um espaço visual correspondente a um espaço tátil, onde a visão não se torna apenas uma fração simbólica do tato e que não há tão-somente uma sugestão de percepções táteis na percepção e nas relações visuais? A forma visual e a distância visual tornam-se símbolos de percepções táteis, mas como este simbolismo tem êxito se há objetos que mudam de forma e se movem? A visão constata variações determinadas que a seguir o tato verifica. Há, portanto, uma correspondência entre a série tátil e a série visual que assegura esse paralelismo. O princípio desta ligação deve levar em consideração que todas as nossas sensações são extensivas em algum grau, não há sensação sem extensão ou extensidade. A verdade é que o espaço não está mais fora de nós do que em nós, e que ele não pertence a um grupo privilegiado de sensações. Todas as sensações participam da extensão; todas emitem na extensão raízes mais ou menos profundas.

A vida efetivamente existe entre a consciência e a ciência. O poder próprio às consciências individuais manifesta-se por atos, exigindo a formação de zonas materiais distintas que correspondem a corpos vivos. Meu próprio corpo e, analogamente com este, os outros corpos vivos são os que temos melhores condições de distinguir na continuidade do universo. Quando constituímos e distinguimos esse corpo, as necessidades experimentadas por ele o levam à distinção e a construção de outros corpos. O nosso corpo é um instrumento apenas de ação. Assim, há um espaço homogêneo posterior às coisas materiais e ao conhecimento que podemos ter delas, logicamente esse espaço, aqui, não é anterior. Como se a extensão precedesse o espaço, cujo espaço homogêneo referisse a ação somente, sendo como uma rede infinitamente dividida que estendemos abaixo da continuidade material para nos tornarmos senhores dela, para decompô-la na direção de nossas atividades e necessidades. Há, então, nessa continuidade um centro de ação real (nosso corpo) que age e influencia todas as partes da matéria em cada instante.

O corpo é um centro de ação, mas a lembrança vai conservar hábitos motores que desempenham de novo o passado, retomar atitudes e prolongar antigas percepções em que o passado se insere – fornecendo uma ligação entre à lembrança-virtual com a percepção-atual – consistindo na reconquista de uma influência perdida. A ação virtual das coisas sobre nosso corpo e de nosso corpo sobre as coisas é propriamente nossa percepção. Mas, como os estímulos que nosso corpo recebe dos corpos circundantes determinam constantemente, em sua substância, reações nascentes, e como os movimentos interiores da substância cerebral esboçam assim a todo o momento nossa ação possível sobre as coisas, o estado cerebral corresponde exatamente à percepção. Não é nem sua causa, nem seu efeito, nem, em nenhum sentido, sua duplicata: ele simplesmente a prolonga, a percepção sendo nossa ação virtual e o estado cerebral nossa ação começada.

A memória do corpo é uma memória praticamente instantânea em que a memória do passado serve de base, ou seja, a memória do corpo é uma ponta móvel investida pela memória do passado, há um mútuo apoio: o homem de ação convoca o auxílio de todas as lembranças relacionadas a uma situação dada, mas surgem as lembranças inúteis e indiferentes. Ao contrário do homem de ação, há dois tipos de homens inaptos para a ação: o homem impulsivo responde a uma excitação imediata e vivida no presente puro através de uma reação que se prolonga, e o homem sonhador que vive no passado por prazer, cujas lembranças não têm proveito para a situação atual.

A nossa percepção esboça a ação possível de nosso corpo sobre os outros corpos, mas nosso corpo tanto age sobre si como age sobre outros corpos. Perceber consiste em separar, do conjunto dos objetos, a ação possível de meu corpo sobre eles. Em nossa percepção entra algo de nosso corpo, todavia, são sobre os outros corpos circundantes e separados de nós por um espaço considerado, que vai haver o afastamento que mede as ações possíveis, promessas, ameaças que desenham apenas ações possíveis. Quanto mais a distância diminui mais a ação possível torna-se real.

Henri Bergson tenta explicar a irresistível tendência em se constituir um universo material descontínuo, com corpos de arestas bem recortadas, que mudam de lugar, ou seja, de relações entre si. Uma continuidade movente nos é dada, em que tudo muda e permanece ao mesmo tempo: como se explica que dissociemos esses dois termos, permanência e a mudança por movimentos homogêneos no espaço? Trata-se de uma ação recíproca de todos os pontos materiais uns sobre os outros, que a ciência tenta explicar sob a idéia da continuidade universal. A vida estabelecerá sobre a matéria (seja qual for sua natureza) uma primeira descontinuidade que exprime uma dualidade da necessidade e do que deve servir para satisfazê-la. Necessidades de sobrevivência como a de comer, que não é única, entre tantas outras que giram em torno dela; esta necessidade e todas as outras que gravitam a seu redor têm por objeto a conservação do indivíduo: “ora, cada uma dessas necessidades leva a distinguir, ao lado de nosso próprio corpo, corpos independentes dele, dos quais devemos aproximar ou fugir. Definem-se, pois, nossas necessidades como feixes luminosos que visam a continuidade das qualidades sensíveis que desenham aí corpos distintos. Estas necessidades só podem se satisfazer se moldarem nessa continuidade um corpo, e depois delimitarem, neste momento, outros corpos que entrarão em contato. Estabelecer essas relações muito particulares entre porções assim recortadas da realidade sensível é justamente o que chamamos de viver.

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