domingo, 27 de setembro de 2009

Guerra e Cinema (Paul Virilio)


Trata-se do momento em que a principal finalidade da guerra passa a ser produzir um espetáculo, ou seja, busca-se menos abater o inimigo do que cativá-lo. A guerra subsiste na representação e as armas são mistificações psicológicas, isto é, além de ser instrumento de destruição, as armas são instrumentos de percepção: estimuladores que provocam fenômenos químicos e neurológicos sobre os órgãos dos sentidos e o sistema nervoso central, para afetar a própria identificação dos objetos percebidos. Os campos de batalha vão se tornando assim campos de percepção. Os ingleses, por volta de 1930, abandonaram os meios convencionais de defesa para se dedicar à pesquisa da percepção: início da cibernética, do radar, da goniometria, da microfotografia, do rádio – das telecomunicações. Trata-se da expansão do campo de percepção dos conflitos em que a radiolocalização (o radar) é um instrumento que informa a um observador afastado a presença dos objetos, com o aperfeiçoamento das imagens eletrônicas (imagem radar). Questiona-se, portanto, de que maneira os campos de batalha tornaram-se campos de percepção, cuja teatralização é captada por uma ‘câmera’, ora como um típico motor, ora vista como uma arma, tendo a propaganda um dos seus maiores expoentes, fazendo dos líderes políticos verdadeiros cineastas, em suma, superstars?

Na Segunda Guerra, as salas de comando e os gabinetes de guerra não se localizam mais próximos aos campos de batalha, mas em Berlim ou Londres. O desembarque de uma tropa militar passa a se assemelhar com um imenso set de filmagem – a paisagem é recoberta por instalações fictícias, construções com papelão, borracha e cabos. Toda uma miríade de técnicos e criadores imaginativos é convocada para a realização desse trabalho de desinformação visual: estúdios célebres, como o Shepperton em Londres, consagravam-se pela fabricação de falsos blindados e navios de desembarque. Outra ordenação do tempo, portanto, as imagens e os signos surgem em telas de controle, ‘telas de simulação’ de uma guerra que parece um cinema permanente, uma TV ligada ininterruptamente. O poder do diretor ou do militar não é imaginar apenas, mas prever, simular e memorizar simulações: as imagens podem ser desprovidas de tensões dramáticas, mas as montagens, associando-se disparatadamente, num ritmo vibrante de um grande acontecimento, a comentários específicos que se projetam sobre o espectador.

De modo amplo, o ‘teatro de operação’ está privado agora da extensão espacial real, portanto esses núcleos de interação reúnem uma infinidade de informações e mensagens, retransmitidas no sentido apropriado para o universo que lhe é próprio. De todo modo, a política é um teatro, conforme Thomas Morus, mas muitas vezes se representa no cadalfo. Teatralização trágica e antiga que se reproduz no plágio do mundo visível. As Repúblicas, as democracias não carecem de encantos, elas se tornam acúmulos heterogêneos de ‘ilusão de ótica’. A coisa que se descreve acaba sendo mais importante que o real, na medida em que a imprensa realiza um mercado paralelo da informação. Afirma-se que o realismo é uma ilusão. Desde o século XIX, o ilusionista inventa os objetos sintéticos (bi ou trimórficos) fazendo com que o espectador não veja tudo e que se instale num ambiente de síntese, onde o observador acaba por não ver nada. Transfere-se a ilusão para a realidade do campo de batalha: industrialização do não-olhar. Tende-se a colocar sobre o invisível a máscara do visível através de técnicas em que o nosso cegamento ou incapacidade visual fica no centro da comunicação. O século XX foi então não o da imagem como ótica, mas como ilusão de ótica.

A informação não é mais fixada numa fotografia, ela permite a interpretação do passado e do futuro. A fotografia de reconhecimento aéreo, por exemplo, já depende de uma leitura que possa ser capturada por um ato racionalizado de interpretação, na mesma esteira, a endoscopia e o scanner permitirão uma colagem instrumental e a evidência de órgãos escondidos. Tornar visível o invisível, numa experiência que examina exaustivamente uma determinada imagem atribuindo-lhe sentido ao que parece, em princípio, ser um caos de significações ou que avalia uma paisagem inimiga através da análise das destruições realizadas em elementos camuflados. O desenvolvimento simultâneo da visibilidade e invisibilidade paralelo à origem dessas armas invisíveis herdeiras dos radares, do sonar, das câmeras de alta definição, dos satélites de observação objetivando encontrar tudo além do horizonte, mas principalmente o que existe ou o que não existe. Ficção estratégica da desinformação amplamente utilizada na Alemanha nazista.

A espetacularização da política e seus efeitos de oposição aos governos instrumentalizam-se pelas objetivas das câmeras, arma e motor de um jogo de imagens. A câmera não serve só para produzir imagens, trata-se mais de manipular e falsear informações. Cria-se o onírico, a ‘alucinação visual’. A diferença principal entre o ‘motor-câmera’ e a fotografia está no ponto de vista móvel e não na estagnação do foco – produz-se a confusão com velocidades veiculares. Todo equipamento de filmagem se torna móvel, assim a velocidade surge tanto como grandeza primitiva da imagem quanto como origem da profundidade. Automobilidade cinética do ‘motor-câmera’, que funciona como se tudo não se passasse de um problema de velocidade. A ação dessas armas é subversiva, pois uma forma se dissolve diante de nossos olhos e logo surge outra que se reconstitui: no final do século XIX, um arsenal de armas foi experimentado, em 1874, o francês Jules Janssen criou o seu revólver astronômico para tirar fotografias em série; mais tarde foi Étienne-Jules Marey aperfeiçoou o fuzil cronofotográfico que focalizava e fotografava objetos em movimento; em diversas combinações, balões equipados com um telégrafo cartográfico aéreo sobrevoavam e observavam campos de batalhas; os russos já utilizavam, desde 1904, refletores na defesa noturna, acoplados às câmeras-metralhadoras. Era transpolítica em que o poder real se divide entre a logística das armas e a logística dos sons e imagens, entre gabinetes de guerra e escritórios de propaganda. Mussolini dizia que a propaganda era sua melhor arma.

Foi Hitler quem disse que a função da artilharia e da infantaria será assumida no futuro pela propaganda. Joseph Goebbels (ministro de propaganda de Hitler) era um mestre da desinformação ou da propagação de rumores contraditórios: na época do holocausto, os judeus eram capturados por uma implosão da informação que os impedia de compreender o que realmente acontecia, eles acabaram não acreditando em seu próprio extermínio, a transparência das fontes e documentos fotográficos desvalorizavam as informações verídicas. Na Segunda Guerra, Hitler e Goebbels (ministro da Propaganda e ‘patrono’ do cinema) criaram os precursores do intervalo comercial. Foi assim que Hitler, com seu extraordinário conhecimento técnico nos campos de direção teatral, trucagem, mecanismos de alçapão e cenas giratórias, acima de tudo, os usos possíveis de iluminação e refletores, além de ter sido um grande criador de logotipos, preocupava-se mais com a eficácia psicológica de uma arma do que com sua força operacional, aumentava o seu poder de sugestão hipnótica, com auxílio de cineastas e diretores de espetáculo, buscando transformar o povo alemão numa massa de visionários involuntários. Hitler declarou em 1938 que as massas necessitavam de ilusão, mas uma ilusão fora dos cinemas e teatros, uma ilusão no lado sério da vida. Portanto, em uma guerra, trata-se de apropriar bens materiais e territórios, mas, sobretudo de captar a imaterialidade e de manipular a percepção. Algo que envolve não mais a vigilância policial, mas acopla em uma só companhia a imagem, tática e roteiro, ou seja, coordena-se exército, propaganda e cinema.

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