quinta-feira, 27 de novembro de 2008

A Estrutura do Comportamento (Maurice Merleau-Ponty)


Para compreender as relações entre a consciência e a natureza, torna-se preciso entender a natureza como uma multiplicidade de acontecimentos exteriores ligados por relações de causalidade. Na França, a filosofia do século XX faz da natureza uma unidade objetiva e justaposta, diante da consciência e da ciência, que tratam o organismo e a consciência como duas ordens de realidades em relação recíproca como causas e efeitos. Inicialmente o comportamento está em oposição aos dados da ‘consciência ingênua’. A luz é vista em nós e envolve um movimento vibratório. A luz fenomênica é uma aparência qualitativa, mas a luz real é apenas um movimento vibratório.

Da teoria clássica do reflexo retiram-se algumas concepções, tais como a decomposição da excitação e a reação em multiplicidade de processos parciais: resposta correlaciona órgãos receptores e músculos efetores. O reflexo (fenômeno longitudinal) é uma operação de um agente definido sobre um receptor que provoca uma resposta definida. Percebo porque meu corpo respondeu a isso por reflexos adaptados. O comportamento parece intencional, por ser regrado por trajetos nervosos que obtém a satisfação. A cada parte do estímulo corresponde uma parte da reação. Seqüências elementares que deveriam constituir todos os reflexos. O comportamento é a causa principal de todos os estímulos, ele é um efeito do meio. Os movimentos do organismo são condicionados por influências externas. As propriedades do objeto e as intenções do sujeito se misturam e constituem algo novo. Entre os estímulos e as reações, o comportamento é mediatizado pelas relações fisiológicas e psíquicas. Os comportamentos têm suas raízes e efeitos no meio geográfico. O meio geográfico pertence também ao universo físico e seus efeitos também pertencem a ele. Coloca-se o corpo humano no meio de um mundo físico que seria a ‘causa’ de suas reações. O organismo se oferece ao exterior encontrando em torno de si agentes químicos e físicos. O organismo age, com seus receptores e centros nervosos, segundo os movimentos dos órgãos, escolhe os estímulos aos quais será sensível no mundo físico. Existem apenas efeitos no mundo dos reflexos. Na ordem dos reflexos observam-se as conexões da superfície sensível aos músculos efetores.

A definição de ordem é tal que o que acontece em cada ponto é determinado pelo que acontece em todos os outros. Cada efeito local depende da função que desempenha no conjunto, de seu valor e significado em relação à estrutura que o sistema tende a realizar. Assim, quantidade, ordem e significado estão presentes em todo o universo das formas, ou seja, os caracteres dominantes na matéria, vida e espírito. Matéria, vida e espírito participam de modo desigual na natureza da forma. A teoria da forma procura solucionar os problemas entre alma e o corpo. Os sistemas físicos apresentam autonomia às influencias externas. A autonomia que os organismos possuem é relativa às condições físicas e a que o comportamento simbólico tem em relação à sua infra-estrutura fisiológica. O conhecimento perceptivo e os processos nervosos têm a mesma forma psíquica e são homogêneos às estruturas físicas. Matéria, vida e espírito são três ordens de significados.

A forma de um sistema físico é o conjunto de forças em estado de equilíbrio ou mudança constante. Cada vetor é determinado em grandeza e direção por todos os outros. A circulação interior é o sistema como realidade física. A mudança local é uma forma através de uma redistribuição de forças que assegura a constância de sua relação. A forma física é um indivíduo, uma unidade interior inscrita num fragmento de espaço e resistente a deformação das influências externas.

A estrutura geral do comportamento se expressa pelas constantes das condutas, dos patamares sensíveis e motores. Um comportamento privilegiado permite a ação mais simples e mais adaptada. As estruturas inorgânicas se exprimem por leis, mas as estruturas orgânicas se exprimem por normas (ação transitiva que caracteriza o indivíduo) nas relações dialéticas entre indivíduo orgânico e meio. A dialética do organismo e do meio pode ser interrompida por comportamentos catastróficos, casos patológicos e fenômenos de laboratório.

Fenomenologia da Percepção (Maurice Merleau-Ponty)


A fenomenologia é um estudo das essências, ou seja, repõe as essências na existência. É uma ambição filosófica de torna-se uma ‘ciência exata’, mas é também um relato do espaço, do tempo e do mundo vividos. A fenomenologia se deixa praticar e reconhecer como a maneira ou como o estilo; ela existe como movimento. Não se apreende nada como existente se primeiramente eu não me experimentar existente no ato de apreendê-la. O mundo está ali, antes de qualquer análise que eu possa fazer. O real deve ser descrito. A reflexão arrebata-se a si mesma e se recoloca numa subjetividade para aquém do ser e do tempo. O homem está no mundo. O mundo é o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções. A percepção é o fundo sobre o qual todos os atos se destacam e ela é pressuposta por eles. O ‘cogito’ é o pensamento de fato e ser no mundo. O verdadeiro ‘cogito’ reconhece meu próprio pensamento como um fato e me revela como ‘ser no mundo’. As essências trazem consigo todas as relações vivas da experiência. O mundo é o que vivo, não o que eu penso. O mundo é inesgotável, mas comunico-me com ele. O pensador pensa sempre a partir daquilo que ele é.

As coisas são transcendentes na medida em que eu ignoro aquilo que elas são e em que afirmo sua existência nua. Imaginamos o espaço em si com o qual o sujeito que percebe coincide. Descreve-se o conhecimento que o sujeito obtém, situado em seu mundo, e ele constrói este mesmo mundo. O sujeito faz as coisas em torno de si, ele as faz existir para si mesmo, as dispõe em torno de si e as extrai de si mesmo. Eu reconstituo o ‘cogito’ histórico. Eu não pensaria no ‘cogito’ se não tivesse em mim tudo que é preciso para inventá-lo. Sou eu que retomo como meta ao meu pensamento retomar o movimento do ‘cogito’. Todo pensamento de algo é consciência de si. Consciência de si é o próprio ser do espírito em exercício. O modo de existência, seja a existência como consciência, ato espiritual que apreende à distância e contraia em si mesmo tudo o que visa. Eu penso que seja por si mesmo – Eu sou. Eternidade que define a subjetividade. O ‘cogito’ me revela um novo modo de existência.

A localização dos objetos no espaço é uma operação espiritual e utiliza a motricidade do corpo. O sujeito da geometria é um sujeito motor. Há um movimento gerador do espaço que é o nosso movimento intencional, distinto do movimento do espaço que é o das coisas e de nosso corpo passivo. O movimento do corpo desempenha um papel na percepção do mundo como uma intencionalidade original (maneira de se relacionar ao objeto, distinta do conhecimento). O movimento gerador do corpo desdobra a trajetória de um aqui em direção a um ali. Efetuo a síntese por meio do corpo que me insere no espaço, cujo movimento me permite alcançar uma visão global do espaço. Nosso corpo se move a si mesmo, ele é inseparável de uma visão do mundo realizada como condição de possibilidade de todas as operações expressivas e de todas as aquisições que constituem o mundo cultural.

O corpo próprio está no mundo e forma com ele um sistema. Se para mim existe e se posso alcançar um objeto é porque pela experiência perceptiva eu me afundo na espessura do mundo. A coisa e o mundo me são dados com as partes de meu corpo em uma conexão viva, idêntica à que existe entre as partes do meu corpo. Trata-se de despertar a experiência do mundo tal como ele nos aparece enquanto estamos no mundo por nosso corpo. Estamos no mundo e condenados ao sentido. O mundo fenomenológico não é o ser puro, mas o sentido, a experiência, a subjetividade e a intersubjetividade. Ser burguês ou ser operário é se valorizar como tais por um projeto implícito ou existencial que se confunde com o modo de pôr em forma o mundo e de coexistir com os outros. O logos que preexiste é o próprio mundo.

O Espaço Crítico (Paul Virilio)


Atenta-se para um redimensionamento do espaço físico cibernético, este espaço tecnológico artificial que apresenta outras formas, outras estruturas e outras funções em relação às habituais. O global e o local são efeitos deste espaço de realidade virtual, cujas imagens provenientes de quaisquer lugares podem ser velozmente teletransportadas, instantaneamente veiculadas para quaisquer pontos do planeta, desde que estejam conectados às redes de informação. Primeiramente identificam-se alguns aspectos preliminares acerca do ciberespaço, para posteriormente definir os seus aspetos de ordem física e geométrica, isto é, suas propriedades (dimensões e formas). Aspectos preliminares que identificam a origem da cibernética, a velocidade da informação e o ciberespaço, questões sobre a imagem mental e a imagética de síntese (percepção do espaço); o ambiente psicogeográfico (implicações sobre o IN/OUT, dentro/fora); o “microspace” e a janela catódica (Windows, tela televisiva); e as videoperformances (observação direta).

As propriedades físicas explorarão, nessas análises, as noções dos grãos Pixels (grão fotográfico, unidade de medida e representação); o Punctum (Quanta, a forma do Pixel); noções sobre os fractais de Mandelbrot. As representações teóricas na escala microscópica (as partículas atômicas) resultam do quantum de ação, de energia, grão de matéria ou de luz (neutron, elétron, fóton...) e da incerteza de sua posição ou velocidade, num meio provavelmente incerto, aspectos fundamentais da mecânica quântica. A representação prática na escala macroscópica (humana) é efeito de uma espécie de mecânica puntica (alfa-numérica) que sacrifica a representação por coordenadas cartesianas e repousa as videoperformances do punctum de ação, dos pixels (pontos luminosos da óptica eletrônica). A forma-imagem sintética, a interface ou a interação entre observador/observado; a noção de espaço-velocidade; e as telecomunicações à distância, as teleconferências... Por fim questionar-se-á a desqualificação do mundo real em proveito da realidade virtual, considerando a função do espaço (localização) num mundo midiatizado pelo Global Positionning System (o GPS).

De volta aos aspectos preliminares e a origem da cibernética. Originária de uma tentativa de se simular a organização da realidade sobre as “Máquinas Inteligentes” (título da obra de Alan Turing, 1947), a cibernética é uma síntese da informação, da teoria dos jogos, da teoria do sinal e da neurobiologia. A cibernética, quando se uniu aos meios de telecomunicações em “tempo real”, foi capaz de deslocar a lógica da informação e sua barreira logística, isto aconteceu no final da década de 1950, com o projeto de defesa antiaéreo dos Estados Unidos, assegurando a cobertura por radar de todo o espaço norte-americano. A Força Aérea americana e o laboratório Lincoln do MIT pesquisaram um sistema de alerta (a rede SAGE – Semi Automatic Group Environment).

O espaço-tempo cibernético surgiu dessa concepção, cuja informação só tem valor pela sua rapidez de difusão, isto é, a informação é a própria velocidade! Nesse fenômeno da percepção, idéia compartilhada por Husserl, de que o espaço é limitado em relação ao mundo da experiência sensível, não havendo, então, nenhum mundo além deste, mas somente uma “profundidade de tempo”. Deste modo, enquanto o mundo se fecha sobre si mesmo e se torna um espaço finito, segundo Merleau-Ponty, a necessidade de superá-lo torna-se iminente. Entre as antípodas de nosso planeta (habitantes em pontos opostos do globo) instaurou-se um horizonte transparente através das técnicas audiovisuais. O limite que surge é de uma nova fronteira menos geográfica do que infográfica: de uma imagem mental das distâncias a uma imagética instrumental (de computador) gerando um além virtual. Superando os limites de um espaço planetário finito, com base na velocidade dos cálculos dos circuitos integrados do ciberespaço.

As noções tradicionais de entrada e saída, dentro e fora, IN e OUT, perderam a sua conotação espacial e ambiental tornando-se “a diferença das diferenças”. Não se deduz mais a diferença entre o ser e seu ambiente pelas noções habituais de interior e exterior, dentro e fora... O Imperium Psicogeográfico coloniza o espaço não mais pelas caravelas ou hélices... Mas pela retroação, retroatividade de quem faz vir a si o horizonte de um ambiente, como quem faz vir a si um cão pelo assobio. O espaço cibernético foi capaz de matar a viagem e fez vir até a nós o país que se queria visitar, através da ciência, da física quântica e de seus avanços micrológicos.

A Máquina de Visão (Paul Virilio)


A máquina de visão tem sua origem nas técnicas policiais e judiciárias, isto é, a evolução das técnicas picturiais, arquitetônicas, fotográficas, videográficas, cinematográficas e informáticas (à distância). Todas estas revoluções técnicas são frutos da modernidade, às voltas com o terror revolucionário (séc. XVIII-XIX), no momento em que a polícia carregava o “olho” como símbolo, mas ela mesma era uma polícia invisível, signo do próprio espião: investigar os espaços privados iluminando-os como eram iluminados os espaços públicos. O enunciado bem conhecido “tudo o que você disser pode ser utilizado contra você” retrata o perigo da comunicação numa investigação policial.

A datiloscopia proporcionará o declínio de todo tipo de inventário (das narrativas, testemunhas e descrição modelada), os interrogatórios que eram a base de tantos textos romanescos dos séculos anteriores serão refutados ao serem introduzidas as técnicas de datiloscopia como prova na instituição policial. A tiragem fotográfica servirá de técnica acessória importantíssima para as indubitáveis e imutáveis impressões digitais. A fotografia como instrumento de justiça servirá também com instrumento para o exército e a medicina: aplicabilidade útil para o criminoso, o soldado e o doente. A fotografia assume para a justiça uma função que não se sujeita às fraquezas do indivíduo e se atenta aos detalhes, testemunha objetiva. Na medicina as técnicas óticas são capazes de fazer ver aquilo que realmente não era visto: os microscópios, os telescópios, a radiografia.

No início do século XX, o caso particular de Edward Steichen foi notável quando encarregara de operacionalizar o reconhecimento fotográfico aéreo da expedição norte-americana na França, sob as ordens do general Patrick. Pode-se pensar desde então, a partir das fotografias aéreas, sobre o papel do especialista. O trabalho destes profissionais militares (comparado ao trabalho dos espiões, cineastas e fotógrafos civis) dependia de um isolamento nas zonas do exército. Enquanto o poder de demonstrar subjacentemente a guerra ao pessoal de retaguarda estaria sob a responsabilidade dos pintores-fotógrafos, desenhistas e gravadores nos jornais, almanaques e revistas ilustradas, inundados de documentos de ficção, de clichês habitualmente retocados.

O Ministério da Informação inglês julgava necessário, em 1940, o fim da difusão na imprensa de uma produção fotográfica militar estática, para poder compactuar com a mobilização de milhares de pessoas freqüentadoras das salas de cinema. O Ministério convenceu os diretores de cinema a incluir curtas-metragens (de 5 a 7 minutos) – precursores dos intervalos comerciais e inspirados em Hitler, quando declarou que a função da artilharia e da infantaria será assumida no futuro pela propaganda. A característica do cinema assumiu para Natasha Kinsk uma televigilância das suas metamorfoses artísticas. O cinema-espetáculo foi um outro meio resultante da continuação da guerra mundial, restituindo a história dos combates. Meio pelo qual a imagem acidental dos noticiários cinematográficos veiculou seqüências subliminares de montagens dos bombardeios, naufrágios, fotos de combates, etc.

O acontecimento que desviou o papel do fotógrafo do campo de guerra pode ser avaliado pelas ações de John Olson: quando expunha os pedaços de cadáveres sob a objetiva, os soldados alucinados pelas drogas, as mutilações das crianças e dos civis, por exemplo, a “guerra suja” no Vietnã foi fotografada. A guerra psicológica e terrorista põe em circulação este poder, o domínio sobre as mídias. As imagens fotográficas, videográficas e também a televisão, como meios de comunicação assumem a dupla função de comunicar e guerrear. Fala-se sobre um “arsenal de armas de comunicação”. Mas a relação entre guerrear e comunicar é recíproca, entendendo-se por isto tanto comunicar guerreando quanto guerrear comunicando. Numa sociedade de consumo em que se vive, a publicidade assalta nossos olhos e hábitos. A publicidade satura todas as esferas do poder indistintamente: um bombardeio ostensivo sobre a população mundial de 1.500 emissões publicitárias por dia, tanto as subliminares quanto as disfarçadas.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Velocidade e Política (Paul Virilio)


Para entender a importância dos avanços tecnológicos referentes à velocidade, embora constitua uma face independente nos avanços técnicos, ela também está ligada à veiculação da imagem. Investiga-se sobre a guerra e a velocidade, então, os avanços armamentistas e de transportes. Mas o que se objetiva é integrar nos assuntos geopolíticos os detalhes técnicos da guerra, porque acabam promovendo novas tecnologias incorporadas no nosso dia-a-dia, mas graças quase sempre a muitos conflitos. Dividem-se categoricamente dois tipos de guerra: uma guerra espacial, de conquista, e uma guerra total, de penetração, de assalto. A guerra do tempo não é guerra do espaço-tempo, mas do espaço-velocidade. Pois quanto maior a velocidade, mais dilatado será o tempo e menor a distância a ser percorrida. Avanços tecnológicos de armamentos e veículos que passam pelos canhões, blindados, submarinos e caças.

No tocante à guerra, a velocidade resulta tanto dos meios de transporte quanto dos armamentos (balísticos), isto é, a artilharia é um híbrido de dois tempos de deslocamento, o da carreta (mais ou menos rápido) e o do projétil (fulminante) rumo à explosão. O canhão produz velocidade indireta, isto quer dizer que é preciso precipitar-se contra eles, matando os seus operadores, mas os soldados de infantaria dispõem de um tempo muito curto. A vida desses soldados depende da velocidade da sua corrida. A velocidade significa tempo ganho no sentido absoluto! “A salvação está no assalto”! Assim, pela Blitzkrieg (guerra relâmpago) o antigo muro-fronteira (das cidades muradas, fortalezas) fora substituído pela via rápida, velocidade do assalto.

A partir do século XIX, partilhou-se o mundo numa luta ou enfrentamento entre duas nações, uma povoando a terra e a outra o oceano. Associar a velocidade (dêmos) à liberdade de movimento e o direito ao mar associado à noção de “mar livre”, isto foi uma criação própria do ocidente, incluindo o direito ao espaço aéreo. O mar e o espaço aéreo compõem o modelo de espaço aberto, trata-se da 'fleet in being'. O que é a 'fleet in being'? Pode-se entendê-la como uma logística das estratégias de invisibilidade dos corpos em movimento, a possibilidade de uma frota marítima golpear a qualquer instante um adversário, aniquilando-o por uma zona de insegurança global, a própria insegurança do território. Não se trata mais de derramamento de sangue, de enfrentamento direto. Maurício da Saxônia foi quem compreendeu que a violência pode ser reduzida apenas aos movimentos. Assim, o “assaltar” se diferenciará de acordo com as épocas e suas máquinas de destruir. O submarino pode ilustrar o objetivo da 'fleet in being' como fundamento do direito ao mar. O submarino estratégico não precisa ir a parte alguma; ele se contenta em, permanecendo no mar, ficar invisível; mas seu fim temporal já está marcado.

Se na Primeira Guerra Mundial as ações em espaço terrestre predominavam, isto impedia a ubiqüidade da guerra (guerra total: mar, céu e terra). Sobre o espaço terrestre houve uma inovação tecnológica capaz de transformar um espaço repleto de obstáculos numa verdadeira fleet in being, atingindo todas as direções, mais do que invisível, o equipamento poderia surgir de qualquer ponto da superfície. “Vencer é avançar”! O capitão de Poix concebeu um engenho, um “fortin automóvel”, o blindado: capaz de percorrer todos os terrenos, invenção que data de 1916. A velocidade tornou-se a esperança ocidental, fazendo da guerra um desgaste cômodo. O transporte num veículo blindado elimina todos os obstáculos, a própria terra, para ele, não existe mais, menos que um veículo para qualquer terreno, ele é um veículo sem terreno.

Contando com o espaço do céu, com efeito, numa guerra total (ubíqua, em toda parte e em qualquer momento) equipamentos técnicos de suma importância como os caças F117 americanos podem ilustrar os avanços tecnológicos da guerra. Aviões Stealth que sofreram diversos acidentes na Guerra do Golfo Pérsico. Típico avião fantasma cuja habilidade é não ser captado pelos sensores dos radares, ensinando-nos sobre a evolução e a plasticidade de nosso ambiente audiovisual. Uma vez que na nova guerra óptica eletrônica o que é visto já é destruído, mais vale ser destruído antes de ser visto, análises sobre a fusão da velocidade e da imagem. O F117 é um engenho apto às camuflagens em relação direta com a rápida identificação de alvos, alvos que já não são simplesmente mísseis falsos ou verdadeiros, mas verdadeiros ou falsos sinais de radar, verossímeis ou inverossímeis imagens (acústicas, óticas ou térmicas). Se aparentemente entrávamos na era da ‘simulação generalizada’ das missões militares, realmente estamos na era da ‘dissimulação generalizada’. Enganar sobre a duração da trajetória e tornar secreta a sua imagem, camuflar os “vetores de liberação de explosivos”, isto é, os aviões, os navios, os foguetes. Enganar o adversário sobre a credibilidade e a presença da passagem virtual da máquina: geração de armas ‘discretas’, Stealth, veículos furtivos e indetectáveis... As técnicas da decepção ultrapassam os segredos que a indústria-militar reservam sobre a bomba atômica.

Cultura e Imperialismo (Edward W. Said)


Edward W. Said busca descrever de modo geral as relações entre ‘Ocidente metropolitano’ e os ‘territórios ultramarinos’ com base nos textos europeus, nos seus discursos e estereótipos (literaturas estruturadas de sentimento que sustentam as práticas imperiais). Não negligencia dessa vez a reação do domínio ocidental – o grande movimento de descolonização no Terceiro Mundo com as resistências culturais e armadas em locais específicos. Percebe tanto as relações entre nativos e metrópole quanto às ‘outras culturas’ como alternativas políticas ao imperialismo. A cultura e as formas estéticas derivam da história. O objetivo é o exame geográfico da experiência histórica. A invocação do passado ainda é uma estratégia para as interpretações do presente. O empreendimento imperial depende da cultura para promover a posse de um Imperium como conjunto de experiências sob a presença de dominados e dominadores: a subordinação do colono. Os procedimentos imperiais foram além de práticas econômicas e decisões políticas, por isso promoveram a cultura nacional. Utilizam-se duas definições de culturas. De um lado, refere-se à cultura como prática e saberes populares ou mesmo disciplinares especializados – protótipo do romance realista moderno. Nações e narrações se entrecruzam, quando a terra remete, como objeto de disputa imperialista, a uma narrativa para definir a propriedade e planejamentos futuros. De outro lado, o conceito de cultura é significado pelo refinamento e elevação (o melhor de cada sociedade) associando-se, muitas vezes, ao Estado ou à Nação – cultura como fonte de identidade. A cultura se mostra como campo de batalha entre indivíduos que pertencem a sua nação e tradições, mas eles denigrem as outras culturas.

São justaposições de populações e vozes, o imperialismo moderno e as experiências sobrepostas de orientais e ocidentais. Encontra-se uma disputa interminável e a confusão política sangrenta perante a diferença. Nas narrativas apresenta-se a consciência como principal autoridade que dá sentido às ações colonizadoras e aos povos. Apesar dos horrores e do derramamento de sangue, o Império foi partilhado e interconectado. Até a extinção do colonialismo e do imperialismo, o conceito dessa relação era um poder de uma metrópole distante que controla uma colônia, então o imperium deve ser planejado para governar povos subordinados, inferiores e menos avançados. É uma quase-exclusividade, a potência do império como prática sócio-cultural européia. De todos os impérios discute-se, em especial, por sua coerência única e importância cultural, o francês, o britânico e o americano, ou seja, investe-se no domínio ultramarino que caracterizam estas três culturas.

O mundo imperial britânico foi um todo integrado, o que estava em joga eram territórios e possessões, geografia e poder. Uma nova geografia que não é dos soldados nem dos canhões, mas das imagens e das representações, que derivam da concentração do poder mundial nas mãos da Grã-Bretanha e da França. Em 1914, 85% do mundo estavam na forma de colônias (commonwealths). Os ingleses e os franceses não se constrangiam em admitir a cultura imperial, coisa que os EUA receavam em admitir as suas intenções imperiais. Destacam-se os EUA, no Pós-guerra-fria, como única superpotência mundial, no ato de conduzir povos ‘inferiores’ sob o apelo ao poder e ao interesse nacional em oposição às revoltas nativas. Se o imperialismo avançou nos séculos XIX-XX ampliou a resistência, ou seja, houve uma retroalimentação do imperialismo ocidental e do nacionalismo terceiro-mundista. Com o surgimento de novos alinhamentos de fronteiras acabaram-se as oposições binárias simples entre imperialismo e nacionalismos. Uma concepção estática de identidade foi contestada com esses novos alinhamentos, embora o contato do europeu com os ‘outros’, desde o século XVI, não variou com a idéia bem definida entre ‘nós’ e ‘eles’. A cultura eurocêntrica codificava tudo o que se referia ao mundo não-europeu. São analisadas as obras de Jane Austen (Mansfield Park), Rudyard Kipling (Kim), Joseph Conrad (Heart of Darkness e Lord Jim) e Timothy Mitchell (Colonising Egypt)... Trata-se de territórios sobrepostos e de histórias entrelaçadas.

Diferença e Repetição (Gilles Deleuze)


O pensamento moderno nasce da falência da representação, da perda das identidades e da descoberta das forças que agem sob a representação do idêntico. O mundo moderno é o dos simulacros, onde as identidades são apenas simuladas. O simulacro é uma cópia, mas a subverte e subverte os modelos. Demonstram-se duas orientações de pesquisa: 1) o conceito de diferença sem negação, por não ser subordinada ao idêntico, não se estende à oposição ou à contradição; 2) o conceito de repetição que vai em direção a uma repetição oculta em que se disfarça e se desloca um diferencial. O empirismo é uma criação de conceitos. Os conceitos são as próprias coisas em estado livre e selvagem. As individuações são impessoais e as singularidades são pré-individuais.

A mais exata repetição tem como correlato o máximo de diferença. Há diferença de natureza entre a repetição e a semelhança. Percebem-se duas grandes ordens da generalidade: ordem qualitativa das semelhanças e ordem quantitativa das equivalências. O ponto de vista da generalidade exprime a troca/substituição de um termo por outro. A repetição é uma singularidade não substituível. O roubo e o dom são os critérios da repetição. Repetir é se comportar em relação a algo único ou singular, sem semelhante ou equivalente. A generalidade do particular se opõe à universalidade do singular. Há duas linguagens: a científica, onde cada termo pode ser substituído por outro, e a lírica, em que cada termo é insubstituível. A generalidade é da ordem das leis.

A lei só determina a semelhança dos sujeitos a ela submetidos e a sua equivalência a termos designados pela lei. A lei mostra como a repetição seria impossível para sujeitos da lei (os particulares). A lei constrange os sujeitos à ilustra-la às custas de suas próprias mudanças. Impossibilidade da repetição (mudança como condição geral a que a lei da natureza condena as criaturas particulares – apreensão em termos fixos). A repetição é mais da ordem do milagre do que da lei. A existência da repetição deve-se a singularidade contra o geral e a universalidade contra o particular. A repetição é transgressão, ela remete a uma potência singular que difere por natureza da generalidade. O erro estóico: esperar pela repetição da lei da natureza. A repetição não ocorre de acordo com a natureza. O homem do dever inventou uma ‘prova’ da repetição determinada pelo ponto de vista do direito. A lei moral nos deixa numa generalidade segundo a natureza do hábito. O hábito não forma uma verdadeira repetição. Há duas maneiras de subverter a lei da moral, de um lado, a ironia (arte dos princípios, da ascensão aos princípios, da subversão dos princípios) e o humor (arte das conseqüências e das quedas, das suspensões). A repetição manifesta uma singularidade contra os particulares submetidos à lei, ela pertence ao humor e a ironia, por causa da sua natureza transgressora, exceção.

Questiona-se o problema do teatro, o movimento que atinge a alma e é o próprio movimento da alma. Ele é o movimento real e extrai o movimento real das artes que utiliza – a essência e a interioridade deste movimento é a repetição. Hegel representa conceitos e faz um falso drama, um falso movimento. O teatro é o movimento, a repetição. Pensa-se no espaço cênico e o aparelho da repetição é uma potência terrível. No teatro das representações experimenta-se pelas forças e traçados no espaço que agem sobre o espírito e por uma linguagem que fala antes das palavras. Nietzsche funda a repetição no eterno retorno, na morte de Deus e na dissolução do eu. As máscaras nada recobrem, salvo outras máscaras. Não há primeiro termo que seja repetido.

A diferença deve sair de sua caverna e deixar de ser monstro. A maior diferença é sempre a oposição, a diferença individual é pequena demais. A contradição é um movimento de exterioridade, ‘pulsação do infinito’. É preciso que cada um expulse seu outro, que expulse a si próprio e se torne o outro que ele expulsa. Representação orgíaca que tem o fundamento como princípio e o infinito como elemento. Salto que testemunha. Distribuição demoníaca dos distúrbios subversivos de uma distribuição nômade, que introduz nas estruturas sedentárias da representação. Distribuição nomádica, partilhando o distribuído, sem propriedade, sem cerca e sem medida. Repartição dos que distribuem num espaço aberto (sem limites precisos).

Caosmose: um Novo Paradigma Estético (Félix Guattari)


Refere-se à semiotização e a opinião pública. Trata-se de três problemas acerca da oposição entre sujeito individual e sociedade: 1) dos fatores subjetivos que desempenharam papel de grande importância pelos mass mídia de alcance mundial (estudantes chineses, povo indiano, queda da cortina de ferro, guerra do golfo, etc.). É como se tivesse que domesticar a opinião árabe por um processo de subjetivação que envolvesse o ponto de vista yankee por meio da mídia e das armas. São singularidades subjetivas reivindicadas na história contemporânea, pois fracassou certa representação universalista da subjetividade. As ciências estão insuficientes e mal armadas para a mistura de apego arcaizante às tradições culturais e a aspirações à modernização tecnológica. Torna-se necessário forjar a concepção transversalista da subjetividade respondendo às amarrações territorializadas [territórios existenciais] e para abertura de sistemas de valor [universos incorporais] sociais e culturais. Ressalta-se a heterogeneidade dos componentes semiológicos significantes; os elementos fabricados pelos mass mídia, cinema e as dimensões semiológicas a-significantes; 2) das produções maquínicas do subjetivo. Transformações tecnológicas que reduzem e homogeneízam a subjetividade e uma tendência a singularizar seus componentes, no caso dos microcomputadores. A produção maquínica de subjetividade nem é pior nem é melhor, depende de sua articulação com os agenciamentos coletivos de enunciação. Melhor é a criação de universos de referência, pior quando depende da mídia; c) dos aspectos ecológicos e etológicos, na renúncia aos complexos freudianos universais constituintes da subjetividade, por fases desde a infância. Valorizar o caráter trans-subjetivo (ecologia mental e social). Busca-se uma intersecção de universos incorporais ou de referência para recompor uma corporeidade existencial. Re-singularizar: transplantes por transferência, procedimentos de uma criação, o paradigma estético – criam-se novas modalidades de subjetivação, tal qual um artista plástico. A tecnociência, o seu processo criativo (estético) e a criatividade tendem a encontrar uma especificação artística, mas o paradigma estético implica uma instância ético-política.

A definição de subjetividade dá-se quando o individuo ou coletividades emergem como territórios existenciais auto-referentes em adjacência com uma alteridade subjetiva. O coletivo é uma multiplicidade além do indivíduo, junto ao socius, e aquém da pessoa. As condições de produção evocam instâncias humanas intersubjetivas (linguagem) e instâncias sugestivas ou identificatórias (etologia, interação institucional, dispositivos maquínicos, universos de referências incorporais): parte não-humana, a heterogênese da subjetividade. Conteúdos ditos científicos (psicanalíticos), mitologias religiosas e míticas valem como produção de subjetividade. A subjetividade capitalística está no contexto do desenvolvimento contínuo dos mass mídia, dos equipamentos coletivos, da revolução informática. Trata-se de descentrar da questão do sujeito para a questão da subjetividade. Tomar a relação sujeito/objeto pelo meio e passar o que se exprime e o conteúdo em primeiro plano, pois a subjetividade dá consistência à qualidade ontológica enunciadora. Todas as modelizações se equivalem, exceto por suas relações (agregações) que traçam certo vetor, uma escolha micropolítica. O inconsciente maquínico de Proust é, por exemplo, uma discursividade a partir de ritornelos complexos que desenvolvem universos de referencias heterogêneos, há a necessidade de um corte, uma parada ou mudança temporal.

O inconsciente é um equipamento coletivo. Do paradigma cientificista ao ético-estético. Admitir que cada indivíduo, cada grupo social veicule sua modelização de subjetividade através de cartografias, de demarcações cognitivas, míticas e rituais em relação aos seus afetos, angústias, inibições e pulsões. O inconsciente superpõe múltiplos estratos heterogêneos de subjetivação (de extensão e consistência). Trata-se de um inconsciente mais esquizo, de fluxo e de máquina abstrata, mais do que de estrutura e de linguagem. Há a criação de uma textura ontológica heterogênea, uma nova tomada de conhecimento sem mediação, mas aglomeração ou prática (não-discursiva) de subjetividade, ela mesma mutante.

Lógica do Sentido (Gilles Deleuze)


Primeiro, Alice, depois, os estóicos. A obra de Lewis Carroll é um jogo do sentido, do não senso (um caos-cosmos). O sentido é uma entidade não existente, ele com o não-senso têm relações particulares. Lewis Carrol promoveu encenações do paradoxo, o que se aproxima dos estóicos na constituição paradoxal com o sentido. Alice e do outro lado do espelho tratam dos acontecimentos, dos acontecimentos puros. Simultaneidade do devir – maiores do que éramos e menores do que nos tornamos, na medida em que se furta o presente: o devir não suporta a cisão nem a diferença do antes e do depois (passado e futuro). A essência do devir é puxar nos dois sentidos ao mesmo tempo. O bom senso é uma afirmação de um sentido determinável em todas as coisas – o paradoxo, que afirma os dois sentidos ao mesmo tempo. O puro devir é o ilimitado, matéria do simulacro, quando se furta a ação da idéia, quando contesta ao mesmo tempo o modelo e a cópia: as coisas medidas se acham nas idéias. O paradoxo desse puro devir (quando é capaz de furtar-se ao presente) é a identidade do infinito, dos dois sentidos ao mesmo tempo: a) Alice - contestação da identidade de pessoal, na aventura da perda do nome próprio, pois o nome é garantido por um saber; b) o eu pessoal tem necessidade de Deus e do mundo, os substantivos e os adjetivos estão fundidos, paradas e repousos arrastados pelos verbos de puro devir, que desliza na linguagem dos acontecimentos, em que toda identidade se perde para o eu, o mundo e Deus; c) o paradoxo destrói o bom senso como único sentido, mas destrói em seguida o senso comum como designação das identidades fixas.

Para os Estóicos há uma distinção entre duas espécies de coisas: a) Os corpos com suas qualidades e suas relações (ações e paixões) e os estados de coisas (relações determinadas pelas misturas entre as coisas). Há, então, uma unidade destes corpos em relação a um Fogo Primordial. O único tempo dos corpos é o presente: o único tempo dos estados de coisas. Só os corpos existem no espaço e só presente no tempo. Todos os corpos são causas e a unidade das causas se chama destino. b) Os corpos são causas de efeitos incorporais, isto é, atributos lógicos ou dialéticos. Causas que não são coisas nem estados de coisas, mas são acontecimentos, verbos resultados de ações e paixões. Os verbos são presentes infinitivos, o Aion ilimitado – devir que divide o infinito (passado e futuro) se esquivando do presente. Podemos distinguir agora duas leituras simultâneas do tempo e no tempo: 1º) O presente só existe no tempo e reúne, absorve o passado e o futuro. 2º) Só o passado e o futuro insistem no tempo e dividem ao infinito cada presente. O paradoxo é uma série de questionamentos, isto é, de proposições interrogativas que procede segundo o devir por adições e subtrações sucessivas. Tudo passa na fronteira entre as coisas e as proposições. O paradoxo exibe os acontecimentos na superfície e no desdobramento da linguagem neste limite. Acontecimentos-devir e devir-linguagem são coextensivos. O atributo não é um ser, expresso por um verbo, porque ele é uma maneira de ser. É uma maneira de ser encontrada no limite, na superfície de ser e não pode mudar de natureza. Esta maneira é um resultado, logo, um efeito. Há duas maneiras de ser: 1) a força (o ser profundo e real); 2) os fatos (produzidos na superfície do ser e instituem uma multiplicidade de seres incorporais). O que há na superfície dos corpos são as misturas, que determinam estados qualitativos das coisas (um corpo penetra e se retira do outro). O que vai resultar destas misturas são os acontecimentos incorporais encontrados na superfície: crescer, diminuir, verdejar... O que se quer dizer com, por exemplo, “crescer”, “diminuir”, “ser cortado”, “verdejar”. Aparentemente são verbos no infinitivo, no entanto, agora o que se trata é de outra natureza. Não mais estados de coisas ou misturas no fundo dos corpos, mas acontecimentos incorporais na superfície, que resultam dessas misturas. Ex.: A árvore verdeja; o punhal corta a carne.

Toda a empresa de a Lógica do Sentido tende diretamente a deslocar e fazer emergir a “divisão” como um ponto notável na série platônica. Converter o platonismo é fazê-lo inclinar-se com mais piedade para o real, para o mundo e para o tempo. Platão quer investigar quem é o verdadeiro. Buscar o autêntico e saber Quem é, e não O que é. Distinguir entre os falsos, o verdadeiro: a oposição entre o mundo de cima das essências e o mundo de baixo das aparências. Se o sentido é uma fronteira e um espelho, reflexos através dos quais as proposições se compõem por efeitos incorporais causados pela relação dos corpos, a subversão platônica é, sem dúvida, tornar a superfície dos acontecimentos o reverso paradoxal da profundidade mais sulcada pelos corpos.

Manicômios, Prisões e Conventos (Erving Goffman)


Sabe-se que, por razões próprias, Erving Goffman optou por estudar mais minuciosamente os manicômios. Deste modo, um interno novato é despido pela instituição total da sua ‘cultura aparente’ derivada do ‘mundo da família’, há certo desculturamento do interno em longa estada. Cria-se uma tensão entre o mundo doméstico e o mundo institucional: uma força estratégica que se denomina ‘mortificação do eu'. O primeiro processo de ‘mortificação do eu’ é a barreira posta pela instituição entre o interno e o mundo exterior. Uma ‘morte civil’, em cujos processos de admissão tenta-se obter a história de vida, um interrogatório do interno. A lógica da obediência e castigo compõe os processos de admissão como formas de iniciação. O segundo processo de ‘mortificação’ designa-se por mutação do eu: perda do nome, separação das posses, de seus bens (deformação pessoal); maus-tratos, marcas e perdas dos membros do corpo (desfiguração pessoal); violação do território do eu, invasão das fronteiras entre o ser dos indivíduos e o ambiente (exposição contaminadora). A violação é um modelo de contaminação interpessoal, o exame e o examinador violam o território do eu. Para suavizar essas mortificações – os sistemas de privilégio. Há três elementos desse sistema: a) as regras da casa; b) a obediência a essas regras; c) prêmios e privilégios a quem obedece a essas regras.

Algumas táticas de adaptação são exercidas em relação aos sistemas de privilégio e ao processo de mortificação. 1) tática de afastamento da ‘situação’ – o indivíduo somente se relaciona com os acontecimentos que cercam seu corpo; 2) tática de intransigência – o interno desafia a instituição e não coopera com a direção; 3) tática de colonização – o mundo externo, que é reservado ao indivíduo, é considerado como o todo. Uma existência estável e satisfatória. Trata-se de uma redução usual entre o mundo externo e o mundo institucional; 4) tática de conversão – há a aceitação do internado a interpretação oficial (‘o internado perfeito’). Cada tática representa uma forma de enfrentar a tensão entre o mundo original e o mundo institucional.

Ressalta-se o problema do ambiente, algum local ou alguma região do hospital. Há os espaços fora do alcance, tudo o que estivesse fora das paredes de onde a equipe dirigente observe. Há o espaço de vigilância, área destinada ao paciente onde estava sujeito à autoridade e às restrições. Os espaços não-regularizados, meios temporários em que se evita a vigilância, espaços físicos limitados designados por ‘locais livres’ – a face oculta das relações usuais entre internos e dirigentes. Casa de guarda, cantina e refeitório são esses ‘locais livres’, ambientes empregados para as atividades proibidas, preenchido por um relaxamento, em uma conquista de tempo livre do controle rígido. Mas quando um grupo de pacientes acrescenta, ao seu acesso a um local livre, um direito de manter afastados todos os outros pacientes: elucidam-se ‘restrições territoriais’ ou território de grupos. Enumeramos os locais livres, os territórios de grupo, faltam-nos definir os territórios pessoais – contínuo entre o lar e o refúgio. O quarto de dormir é o tipo básico de território pessoal. O cobertor é um espaço mínimo em que se transforma em território pessoal. Um território pessoal pode ser criado dentro de um local livre ou de um território de grupo. Doravante, há o ‘stash’ (esconderijo): local pessoal de armazenamento que impede intromissão e a interferência ilegítima, um corpo humano (vivo ou morto) pode ser um objeto guardado em esconderijos.

Nesta toponímia, o hospital psiquiátrico é, pois, uma organização formal instrumental com limites físicos, que podem ser incidentais, mas neste caso os limites são as paredes, ou seja, são organizações muradas e há a adesão visível, isto é, há a submissão dos indivíduos nas atividades da organização. Em primeiro lugar, há alguns direitos garantidos de padrões de bem-estar; em segundo, visa-se a cooperação por valores comuns; em terceiro, torna-se necessário dar incentivos; enfim, induz-se por castigos para que o participante coopere (sanções negativas). Tudo isso incita o desejo de fuga dos internados. Toda organização inclui disciplina de atividade e disciplina de ser. Há, entretanto, o esforço de a equipe hospitalar em frustrar atos autodestrutivos que tendem a gerar ‘maus-tratos’, ora... e os castigos em celas fechadas?

O Normal e o Patológico (Georges Canguilhem)


Trata-se de uma tese de doutorado em Medicina publicada em 1943, em que os fenômenos patológicos são fenômenos normais perseguidos por variações quantitativas. Nas práticas hipocráticas, na medicina grega, oferece-se uma concepção não mais ontológica, mas sim dinâmica da doença, onde a harmonia entre o equilíbrio e o desequilíbrio está em questão. Só com Morgagni, na viragem dos séculos XVII-XVIII, o patológico é designado a partir do normal. Restaurar o normal acaba por anular o patológico. É no patológico que se realiza o ensinamento da saúde. Apenas no século XIX que os fenômenos normais e patológicos alcançam sua identidade real, dogma cientificamente garantido. Com caráter de identidade conceitual em Augusto Comte e numérico, quantitativo em Claude Bernard. Por um lado, em Comte, o caminho que se percorre é do patológico para o normal, o que se tem que especular são as leis do normal. Por outro, em Claude Bernard, percorre-se do normal para o patológico para criar uma ação racional sobre o patológico.

Augusto Comte chama de ‘princípios de Broussais’ um alcance universal na ordem dos fenômenos biológicos, psicológicos e sociológicos. Broussais explica que toda doença é um excesso ou falta de excitação dos tecidos abaixo ou acima do grau que consiste o estado normal. Todas as doenças são apenas sintomas e as perturbações das funções vitais produzem lesões de órgãos e de tecidos. Comte usa o axioma geral de Broussais: qualquer modificação (artificial ou natural) da ordem real diz respeito somente à intensidade dos seus fenômenos correspondentes, assim os fenômenos da doença coincidem com os fenômenos da saúde, mas difere apenas na intensidade.

Claude Bernard destacou a continuidade entre o normal e o patológico e usa indiferentemente duas expressões que são variações quantitativas e diferenças de grau, isto é, utiliza dois conceitos: homogeneidade e continuidade. Os Fenômenos patológicos são qualitativos e quantitativos, de acordo com o ponto de vista em que nós nos colocarmos, conforme consideramos o fenômeno vital em sua expressão e seu mecanismo. A doença é vista pela sua qualidade e por sua quantidade. Já uma função é tida por normal quando ela for independente dos efeitos que a produz. Para Claude Bernard a patologia é inseparável da fisiologia. De modo tal que a medicina é uma arte de viver, ou seja, uma terapêutica que supõe uma patologia experimental. A doença é uma violação do organismo, um evento resultante da ação das funções permanentes do organismo. O fato patológico é uma alteração do estado normal, a fisiologia das funções está diante de fatos patológicos devido às informações clínicas prévias. A patologia (anatômica ou fisiológica) é o estudo dos mecanismos da doença, ela pouco considera que a doença é uma forma diferente de vida para o doente. A doença é uma forma diferente de vida.

Se na clínica o que se questiona é a relação médico/doente, com Leriche o que está em jogo é a relação doente/doença. Para Leriche o que importa é a opinião do doente em relação à realidade de sua própria doença. Trata-se da doença sob a consciência do doente, sob o seu ponto de vista. Como um doente que morreu de acidente sem ter consciência de um câncer. É a doença do ponto de vista do doente o conceito mais adequado.

O homem doente serve para o conhecimento do homem normal. O estudo da doença tende a ser um elemento essencial da fisiologia normal. Para Comte, o estado normal precede o patológico, diferentemente, Leriche destacou que a fisiologia é revelada pela doença. A doença como modo de vida. Exprime uma relação entre o ser vivo e o meio. A anomalia e a mutação não são patológicas: exprimem outras normas possíveis. O patológico é uma norma biológica diferente, mas repelida pela vida. Portanto, o estado normal de um ser vivo se transcreve na relação normativa, impondo novas normas, a determinados meios.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

A Hermenêutica do Sujeito (Michel Foucault)


Michel Foucault neste texto não considera as sociedades disciplinares nem as sociedades de soberania, mas as que lhes deram suporte: as sociedades arcaicas. Os estratos históricos são outros: Socrático-Platônico (séc. IV a.C.); Helenístico-Romano (séc. I-II d.C.); Ascético-Monástico (séc. III-IV d.C.). Trata-se das “Técnicas de Si”. A finalidade destas técnicas num primeiro momento se refere ao “cuidar de si” e de “conhecer a si mesmo” com o objetivo de governar a cidade: cuidar de si para cuidar dos outros; a “Governamentalidade” como meta de Alcibíades nos diálogos com Sócrates; estas são práticas destinadas à aristocracia. Num segundo momento percebe-se que a meta do “cuidado de si” deslocou-se para “o eu”, tornando-se uma prática destinada e aplicável a todos; trata-se, sobretudo, de um modo de vida ou de uma “lei universal”; através da disseminação dos filósofos, reconhece-se uma “cultura de si”. O questionamento que povoa esta obra se refere ao modo pelo qual se constitui o sujeito da verdade nestes três estratos.

No período Socrático-Platônico (séc. IV a.C.) é através da Pedagogia – a transmissão de uma verdade que dota um sujeito de aptidões, capacidades e saberes que ele não possuía. É do lado do Mestre que tudo se incide, é a ele que se colocam as obrigações com a verdade: formulando a verdade como convém e de acordo com determinadas regras intrínsecas ao discurso que ele transmite. Trata-se do “franco-falar” (parrhesía). Questionam-se dois aspectos pedagógicos em Atenas: o déficit pedagógico (em relação à Esparta e a Pérsia) e a erótica (aproximação do mestre aos adolescentes que depois os abandona). Assegurar boas maneiras, grandeza da alma, coragem e resistência através de exercícios (Esparta); sabedoria, justiça, temperança e coragem (Pérsia). Destaca-se então a necessidade de uma pedagogia voltada, neste contexto, ao “governo de si e dos outros”, pois ressalta-se a rivalidade e a “idade crítica”.

No período Helenístico-Romano (séc. I-II d.C.) é por meio de uma Psicagogia – transmissão de verdades que visa modificar o modo de ser do sujeito a quem se endereça, ao contrário de dotá-lo de qualquer aptidão. Ainda assim é do lado do mestre que pesa a necessidade do “dizer-verdadeiro” (parrhesía), bem como as regras necessárias para que a verdade produza o seu efeito – a mutação do modo de ser do sujeito. Portanto, é preciso que o mestre (diretor de consciência) diga o que pensa e pense o que diz, deste modo, a linguagem tende a estar de acordo com a sua conduta. Trata-se de um pacto ou compromisso entre a fala e o pensamento, onde o sujeito da enunciação esteja adequado, seja idêntico ao sujeito da conduta: o exemplo é condição para a transmissão da verdade, assim a sua transmissão torna-se propriedade de quem a manifesta (quem experimenta o pensamento como verdadeiro).

No período Ascético-Monástico (séc. III-IV d.C.) a questão se põe em termos da Confissão – a verdade não está ao lado do guia espiritual, ela está na exegese, sob uma tripla condição: Revelação, Palavra, Texto etc. O guia da consciência está submetido a regras, encargos e obrigações, entretanto o custo essencial da verdade (parrhesía) pesará sobre o dirigido. Observa-se a “arte de falar” sob dois registros: do lado do mestre (fundada na Palavra fundamental da Revelação e na escrita do Texto) e do lado do dirigido que tem que dizer a verdade, mesmo na ordem da perdição e da ignorância. Portanto, no discurso do guiado, o sujeito da enunciação deve ser o referente do enunciado: “a verdade de si mesmo”, como condição da salvação e elemento de pertencimento a uma comunidade, pois recusar a confissão pode causar a excomunhão.

A Áskesis (ascese) é uma maneira de ligar o sujeito à verdade e não de submetê-lo a lei. Trata-se de práticas e exercícios da verdade, mas entre os gregos e os romanos as relações entre sujeito e verdade resultam não só na ação, mas no modo de ser do sujeito. São práticas de subjetivação do discurso verdadeiro que se desencadeiam pelo ouvir, leitura e escrita, pela palavra. Trata-se de uma maneira através da qual, pela escuta, transpassa-se do lógos (do discurso) ao êthos (condutas). Assim, o “sujeito da enunciação” torna-se idêntico ao “sujeito das condutas”. Este é um esforço para arquitetar o fóssil, nessa arqueologia, do Self-europeu.

Arqueologia da Violência (Pierre Clastres)


São textos incríveis de antropologia política. Para compreendê-los melhor destacam-se três aspectos: a distinção entre Genocídio e Etnocídio; os Mitos e Ritos dos índios da América do Sul, com destaque para a antropofagia; e a guerra entre os índios sul-americanos.

Em primeiro lugar, para uma reflexão sobre etnocídio determina-se este fenômeno em distinção com o genocídio. Em 1946 foi criado o conceito jurídico de genocídio como tipo de criminalidade, com o extermínio sistemático dos judeus pelos nazistas alemães. Houve acusações de genocídio contra as potências coloniais, das guerras pós-1945 no Terceiro Mundo. A expansão colonial no século XIX e a constituição de impérios coloniais europeus responsáveis por massacres de populações autóctones – uma máquina de destruição dos índios desde 1492 na América. Trata-se de etnocídio e genocídio. O etnocídio se define pela destruição da cultura, dos modos de vida e pensamento, enquanto genocídio nos remete a idéia de raça. O genocídio mata o corpo e o etnocídio mata o espírito. Etnocídio e genocídio tratam da morte e têm ambos uma versão idêntica do Outro: má diferença. O Genocida extermina os outros porque são maus e o etnocida, os outros são maus, trata-se de obrigá-los a se identificar com um padrão. Destaca-se a atitude etnocida dos missionários, que aparecem na América do Sul como militantes da fé cristã. A atitude evangelizadora implica uma dupla certeza: a diferença (paganismo) inaceitável, e o mal dessa diferença pode ser abolido. Eliminar a força da crença pagã é destruir as sociedades primitivas. O etnocídio é determinado por dois axiomas: hierarquia das culturas e a superioridade da cultura ocidental. O etnocentrismo é a vocação de avaliar as diferenças pela própria cultura, assim afirma sua superioridade cultural, mas recusa os outros como iguais. Toda cultura é etnocêntrica, mas só a ocidental é etnocida. Ela é etnocida no interior de si mesma e contra outras culturas também. Toda formação estatal é etnocida, da cultura francesa a Inca. Trata-se de uma supressão autoritária das diferenças sócio-culturais inscritas na máquina estatal ao proceder por uniformização da relação que tem com o indivíduo; reconhece apenas cidadãos iguais diante da lei.

Em segundo lugar, sobre as religiões índias da América do Sul. Destaca-se dentre os rituais sagrados, o rito funerário que se divide em dois momentos: a) ciclo cerimonial complexo que acompanha o enterro dos mortos; b) o esqueleto descarnado em cortejo até ser lançado no rio mais próximo. Há dois rituais funerários, o enterro dos vivos e o canibalismo. Algumas sociedades não enterram seus mortos, elas os comem. A antropofagia se define com o tratamento diferenciado e destinado aos prisioneiros de guerra, os tupis-guaranis praticavam o exocanibalismo, diferentemente de outras tribos como a yanomami, que comem os corpos dos parentes mais próximos. O endocanibalismo tem como seu efeito a integração total dos mortos aos vivos, mas leva ao extremo a separação entre vivos e mortos: o ato dos vivos comerem os mortos é com o intuito de privá-los de uma última fixação no espaço, no túmulo. Trata-se de uma conjunção com os antepassados fundadores, uma aliança e uma inclusão, mas tratam-se também de uma disjunção com a comunidade dos mortos, uma ruptura e uma exclusão.

Em terceiro lugar, o descobrimento da América forneceu ao Ocidente o seu primeiro contato com os ‘selvagens’, no século XVI, os europeus se confrontaram com um tipo de sociedade diferente: o ‘mundo dos selvagens’ era impensável para o pensamento europeu. Os ‘povos primitivos’ era dados à guerra, caráter belicoso que impressionava aos observadores das ‘culturas primitivas’. São sociedades violentas, seu ser social é um ‘ser-para-a guerra’. A guerra é um modo de vida das sociedades primitivas (distribui unidades sociopolíticas iguais, livres e independentes) sob uma lógica centrífuga e múltipla em oposição à lógica da unificação e da força centrípeta – a lógica do Um, do Estado. A máquina de guerra é o motor da máquina social, a sociedade primitiva se baseia na guerra que impede o Estado. Recusa do Estado é a recusa da exo-nomia (lei externa), recusa à submissão. A sociedade primitiva se compõe por uma multiplicidade de comunidades indivisas e a guerra é o meio para garantir a lógica centrífuga. Quanto mais guerra, menos unificação. O Estado é o inimigo da guerra, deste modo a guerra impede o Estado. Trata-se, portanto, de uma sociedade para guerra, logo, de uma sociedade contra o Estado. A vida guerreira é um combate perpétuo, assim é preciso que o empreendimento seja mais difícil, o perigo mais terrível e o risco mais considerável – o guerreiro e o seu ‘ser-para-a-morte: paixão pela glória que age por uma paixão pelo instinto de morte.

Em Defesa da Sociedade (Michel Foucault)


Michel Foucault dedicou-se as origens de um discurso que entendeu a política como a continuidade da guerra por outros meios, inversão do aforismo de Clausewitz. Discursos históricos que entendiam as lutas, os conflitos ou a guerra como analisadora geral dos discursos. O discurso histórico-político foi desenvolvido predominantemente, na França, por Boulainvilliers e surgiu na virada dos séculos XVII-XVIII, posicionando as relações belicosas de forças como analisadoras do poder. Fez-se, inicialmente, uma desagregação de um discurso que louvava Roma por duas maneiras: primeiro, por uma evocação à invasão e, por conseguinte, pela introdução de um novo sujeito e de uma nova área de objetos: a nação, entendida no seu sentido lato. Assim, Michel Foucault organizou as distinções e rupturas discursivas acerca das análises do poder, diferenciando o discurso filosófico-jurídico (Hobbes fora tomado como exemplo em Leviatã) do discurso histórico-político. É pela idéia de nação que derivam as noções de nacionalidades, raças e classes.

Numa análise dos discursos controversos à história do Estado-Nação francês, Foucault identificou na nobreza francesa a própria autoria deste novo tipo de história, colocando a nação como sujeito-objeto num princípio de desagregação. Tratava-se de frentes colocadas pelos nobres. A nobreza buscou, então, nestas frentes apoiar-se nas liberdades fundamentais do povo germano ou franco que invadiu a “antiga” Gália. Nesta busca histórica acerca dos Estados Nacionais absolutistas, Michel Foucault tentou desvelar as lutas, as invasões e as conquistas, por conseqüência a guerra propriamente dita como analisadores das relações de poder e, com efeito, a repartição das raças como práticas preparatórias exercidas na modernidade, séc. XVIII-XIX.

De fato, a Gália era uma verdadeira terra de conquista, isto foi aquilo que o povo franco-germano lá encontrou. Com base no direito romano o fato da conquista transformou a Gália num reino consentido pela dominação. Esta é a Gália infeliz, descrita por Boulainvilliers, por exemplo, entre tantos outros historiadores da nobreza, na segunda metade do século XVII. Por um lado, ao entrarem na Gália os romanos desarmaram, no início, a aristocracia guerreira, única força militar. Causando o aumento dos impostos e a desvalorização da moeda para cobrir o investimento dos mercenários, logo, desvalorização da moeda. Por outro lado, a força dos francos frente aos romanos é a presença de uma aristocracia guerreira. A sociedade era organizada em torno de homens guerreiros: o povo germânico, mesmo que os próprios francos tenham sido os servos.

A aristocracia guerreira era atribuída a um rei – este era escolhido pelo consentimento comum dos leudes (homens de armas) apenas no momento de guerra. O chefe era, assim, o chefe de guerra, servindo, em certos casos, como chefe da sociedade civil. Em todo caso, esta era uma sociedade cujo poder era o mínimo, mas a liberdade era máxima. A liberdade dos guerreiros germanos derivava do egoísmo, da rapina e da avidez pela batalha e pela conquista: retrato que se encontrou do bárbaro, a partir do séc. XVIII. Com a vitória dos francos, o rei (chefe de guerra) reservou para si uma parte das terras, mas os guerreiros se tornaram proprietários. Os francos resistiram nesta conquista (na Gália) por terem confiscado as armas dos gauleses, isolando-as numa zona interior do país – constituindo uma casta militar inteiramente germana. Os gauleses permitiram que os franco-germanos ocupassem as terras reais e não teriam, então, outra função que não fosse guerrear. Enquanto que os gauleses seriam os cultivadores e contribuintes, com efeito, minimizavam-se as hostilidades entre os camponeses gauleses e os guerreiros germânicos. Quando os francos invadiram a Gália, os aristocratas gauleses tiveram confiscado as suas terras, assim, encontraram refúgio no solo da Igreja e conheceram o latim, além de cultivarem o direito romano – de forma absolutista. A estratégia da Igreja de investigar com o latim o direito romano conseguiu fazer com que a nobreza perdesse o seu poder. Os nobres por pertencerem a outro sistema lingüístico (a língua germânica) foram pouco a pouco ludibriados. O rei, a Igreja e aristocracia gaulesa espoliaram a aristocracia guerreira, manipulando as leis através do latim e do direito romano.

Identifica-se uma invasão bárbara e uma luta de raças após a conquista da Gália. Percebe-se a própria genealogia do racismo no fascismo de tipo alemão e socialista, afinal desvela-se que Marx e Engels encontraram a narrativa da luta de raças para o conceito de luta de classes. Esses senhores deveriam estudar as obras históricas de Thierry, Guizot, Jhon Wade, etc.

Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais (Stuart Hall)


Nasce a diáspora afro-caribenha em 1948, no pós-guerra, com o navio-transporte SS Empire Windrusch que conduzia imigrantes do Caribe para a Grã-Bretanha. A questão da diáspora em sua complexidade se refere a construção e ao imaginário da nação e da identidade. Um sujeito imaginado está em jogo, bem como diásporas e identidades múltiplas. O assentamento dos negros na Grã-Bretanha não se desligou de suas raízes no Caribe. Assim uma minoria étnica emerge através da identificação com os locais de assentamento, com re-identificações simbólicas com culturas africanas e afro-americanas. Essencialmente presume-se a experiência diaspórica e a identidade cultural, que é tanto fixada no nascimento e parte da natureza quanto é impressa pelo parentesco e constitutiva do nosso interior.

O conceito de diáspora é bem conhecido, provém da história dos judeus que foram levados à escravidão no Egito, Moisés e seu grande êxodo e pela significação do holocausto nazista. Os mitos fundadores são, por isso, aistóricos, afinal uma tribo imutável e atemporal é capaz de ligar o passado, o futuro e o presente numa linha ininterrupta (a tradição de um mito). De um lado, da diáspora judia (retorno a Israel) há o conflito com os países do Oriente Médio (os palestinos, em especial). De outro, a África se refere a uma variedade de povos, tribos, culturas e línguas, mas possuem um ponto em comum – o tráfico de escravos. Os híbridos caribenhos passam por uma lógica cultural ‘transcultural’ e da ‘crioulização’, são grupos marginais selecionados que criam a partir do material oferecido pela metrópole. Observa-se uma zona de contato, de co-presença espaço-temporal de sujeitos (antes isolados) que agora se cruzam. A diáspora em uma concepção binária de diferença (passagem, deslize), fronteira de exclusão, construção de um outro em oposição rígida. De Salman Rushdie e do hibridismo destaca-se uma formação sincrética em que os elementos formam desigualdades (inscrições diferentes nas relações de poder), onde a luta cultural está em relação de dependência e subordinação às histórias imperiais.

Será que o Estado-nação constitui uma estrutura útil para compreender as trocas culturais entre as diásporas negras? A globalização e a tensão entre a heterogeneidade do mercado global e as forças centrípetas do Estado constituem as primeiras fases da história global: o apogeu do imperialismo no século XIX, as duas guerras mundiais e a independência/descolonização terminam esta fase. Trata-se da resistência das culturas a serem encurraladas nas fronteiras nacionais. Com a globalização pós-1970 houve o enraizamento nas disparidades de poder e riqueza. O descentramento cultural e os Estados-nação foram subordinados a operações globais mais amplas. Nessa perspectiva diaspórica da cultura restou a subversão ao modelo orientado para as nações. Como articular a proposição novamente em que a ‘África vive’ na narrativa caribenha?

A supressão da África não foi irresistível. A raça permanece como o segredo culposo, o código oculto, o trauma indizível, mas a África torna pronunciável a raça como condição social e cultural da existência dos caribenhos. As identidades formadas no interior da matriz dos significados coloniais são construídas para barrar e rejeitar o engajamento com as histórias reais de nossa sociedade ou de suas ‘rotas culturais’. Assim, o rastafari surge para descolonizar a mente dos migrantes caribenhos.

A cultura é uma produção de conhecimento da tradição como o ‘mesmo em mutação’ e um conjunto de genealogias. Fazer-nos capacitar a nos produzir a nós mesmos de novo através da cultura, como novos tipos de sujeitos. A cultura como uma questão de se tornar. Os processos de migrações livres e forçadas estão diversificando as culturas e pluralizando as identidades. Fluxos não regulares de povos são praticamente fluxos de capital e tecnologia. Fluxos de povos que inauguram um novo processo de minorização em antigas sociedades metropolitanas. Há dois processos opostos nas formas contemporâneas de globalização: as forças dominantes de homogeneização cultural (cultura americana) e os processos sutis de descentramento dos modelos ocidentais (disseminação da diferença cultural). O local e o global atados um ao outro como condição entre si, mas a diáspora é a trajetória de um povo e de uma cultura modernos.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

O Local da Cultura (Homi K. Bhabha)


O pós-colonial está prenhe aqui de uma identidade confrontada por seu outro. Cisão do sujeito. Na invisibilidade que se opõe ao ego em sua equivalência da imagem e identidade. Questiona-se o modo de representação da alteridade. Para compreender as contribuições de Homi K. Bhabha destaca-se o estereótipo e a mímica como estratégia de conhecimento e identificação. Modo de representação complexo, ambivalente e contraditório. Trata-se da construção do sujeito no discurso e poder colonial, articulada sob as formas da diferença (racial e sexual). O sujeito dominado e o dominador estão estrategicamente colocados no interior do discurso colonial.

Há uma atribuição de ambivalência das relações saber/poder e os estereótipos de selvageria, canibalismo, luxúria e anarquia interpõem-se. São processos de subjetivação que se desenvolvem através dos estereótipos. O discurso colonial se torna um aparato de poder que reconhece e repudia a diferença cultural, criando ‘povos-sujeitos’ e legitimando os estereótipos do colonizador e do colonizado. Discurso que apresenta o colonizado como degenerado, um outro que é apreensível e visível. Percebe-se uma estratégia de coordenadas do saber (racial e sexual) como modo de diferenciação no discurso colonial por meio do conceito de dispositivo e aparato, entretanto faz-se uma leitura do estereótipo em termos de fetichismo – um elo funcional entre o fetiche e o estereótipo. A pele é, como diferença racial e cultural, o mais visível dos fetiches.

Pode-se referir em fetiche ou estereótipo como uma identidade baseada na dominação e na defesa, uma crença contraditória em reconhecer e recusar a diferença. Por um lado, crença na diferença que torna o sujeito colonial como desajustado, por outro, o estereótipo é a falsa representação de uma realidade. O estereótipo fixa, enfim, o racismo. Fixação em uma consciência negadora do corpo ou fixação em uma consciência como novo tipo de homem. Ao sujeito colonial é reservada a negação que dá acesso ao reconhecimento da diferença. O sujeito colonial como efeito de poder através de uma vigilância que se define como ‘pulsão escópica’: prazer de ver, o olhar como objeto de desejo – o fetichismo localiza o objeto vigiado no interior da relação imaginária. Colocar o estereótipo (modo retido e fetichista de representação) dentro do campo de identificação é um objetivo imaginário como transformação no sujeito que assume uma imagem distinta que lhe permite postular equivalências, semelhanças, identidades entre os objetos do mundo ao seu redor. O sujeito reconhece uma imagem alienante que se relaciona entre as duas formas de identificação com o imaginário: narcisismo e agressividade – formas estratégicas do poder colonial em relação com o estereótipo.

A mímica é uma outra estratégia do saber/poder colonial. A mímica colonial é o desejo de um Outro reformado e é marcada por uma indeterminação – representação de uma diferença como processo de recusa. Ressalta-se a ambivalência da mímica (quase o mesmo, mas não exatamente) que rompe o discurso colonial e fixa o sujeito como presença ‘parcial’ (incompleto e virtual). A mímica em sua visão dupla revela a ambivalência do discurso e desestabiliza sua autoridade. A visibilidade da mímica torna-se uma interdição no discurso colonial, que se posiciona entre o conhecido e o permitido, e aquilo que deve ser oculto, embora conhecido. O desejo da mímica tem objetivos estratégicos: metonímia da presença. Presença branca e semelhança negra – ambivalência da sujeição colonial. A mímica é uma estratégia errática e excêntrica do discurso colonial. A mímica é um objeto parcial e um fetiche que imita as formas de autoridade, mas as desautoriza.

No confronto da identidade com seu outro tece um entre-lugar no local onde se emaranha estratégias de saber/poder colonial, cujo fetiche do estereótipo e a metonímia da mímica são a desautorização daqueles que só lhes é reservado a negação do pedagógico e do performativo.

O Novo Imperialismo (David Harvey)


Um ‘novo’ imperialismo pode estar se desenvolvendo no capitalismo global. O fim do Império Britânico e a passagem para o Império norte-americano aconteceram ao passo da descolonização da Ásia e da África. Trata-se de formas heterogêneas de Império, visíveis sob a variação e a instabilidade das concepções imperiais norte-americanas. O imperialismo capitalista é uma fusão contraditória entre ‘a política do Estado e do Império’ e os ‘processos moleculares de acumulação do capital no espaço e no tempo’. Deste modo, o imperialismo capitalista se define pela lógica territorial e pela lógica capitalista de poder. Os poderes (territoriais e capitalistas) se distinguem, mas se entrelaçam pelo império.

As aventuras externas de Bush estão relacionadas a problemas internos como, por exemplo, a recessão norte-americana em 2002. A própria sociedade civil norte-americana (compostas por migrantes de diferentes culturas) impõe uma impossibilidade democrática. Os EUA é a nação mais devedora de todos os tempos. Em 1990 a sociedade civil americana estava perdendo a sua coesão, assim foi Bush, em 2000, que apelou para o fortalecimento de uma coesão de uma sociedade a beira da perda de controle: a possibilidade da guerra assegurou à sociedade civil americana o seu poder.

Após o Afeganistão se submeter ao poder norte-americano mudou-se o foco para o Iraque. Articulando a Al Qaeda e Saddam como inimigos que justificam uma ação militar, considerando a trajetória desde Colin Powell, para promover planos militares contra o Iraque na Guerra do Golfo, até o 11 de setembro. A história geopolítica dos EUA gira em torno do temor a um movimento pan-árabe contra governos americanos. O 11 de setembro afirmou uma ordem nacional e impôs ordem a sociedade civil. Combate ao terrorismo e ao Iraque submeteu a comunidade norte-americana. Os oponentes à guerra do Iraque estão determinados pelo petróleo. Se empresas inglesas e dos EUA foram excluídas do Iraque as francesas, russas e chinesas foram favorecidas.

Controlar o Oriente Médio é controlar a maior torneira de petróleo do mundo, logo, a economia global. O plano de mudança de regime no Iraque abre as portas para governos democráticos favoráveis aos Estados Unidos na região. De 1960 a 1973 houve um boicote e alta de preços, afinal a intervenção deixou de ser indireta. Os EUA estimularam o Iraque na guerra contra o Irã, mas o crescimento do poder iraquiano incitou a guerra do golfo. Houve um aumento das forças dos EUA entre 1997-98 para inspecionar o desarmamento no país.

As configurações regionais de poder político-econômico que desafiam a hegemonia global dos EUA: derrubar Chávez e Saddam; armar os sauditas; passar o foco do Iraque para o Irã; impor presenças militares na Ásia Central (dominando a Bacia do Mar Cáspio); os EUA assim poderão controlar o petróleo e a economia nos próximos cinqüenta anos... Acontece que, antes onde os Estados Unidos governavam com forte influência, hoje está em decréscimo sua credibilidade, evidencia-se este fato na América Latina. Lula exibe um pronunciado ativismo internacional, assinando com a Índia um importante acordo bilateral com o Mercosul, ele afirmou confiante que Índia, Brasil, Rússia e China podem juntos redesenhar a geografia econômica do mundo, em linhas bem mais justas que as atuais.

domingo, 23 de novembro de 2008

Homo Sacer: O Poder soberano e a Vida Nua (Giorgio Agamben)


... Viver e deixar morrer... A vida nua. O campo – paradigma biopolítico. De Hannah Arendt, o campo de concentração, e de Michel Foucault, a biopolítica, nestas fissuras emerge a sujeição dos homo sacer e a vida nua: desfilam Flamen Diale, sumos sacerdotes da Roma Clássica, as esferas privada e pública de suas vidas se identificam; o Führer é um nomos empsychos, uma lei vivente. Sacerdote banido, mas rege a política com autoridade jurídica. Desaparece a distinção entre auctoritas (carisma) e potestas (jurídico). Mas não confundir isso com a doutrina jurídica dos dois corpos do rei é uma questão de perspicácia política. O corpo místico do rei interpretado na articulação da jurisprudência e da teologia medieval. Resulta também daí a efígie de cera ou imagens do rei em medalha. Ao rei era consagrado o funus imaginarium, uma cerimônia fúnebre, cuja efígie cerea pértinax se assemelhava ao ritual antes do combate, quando ele voltava vivo para salvar a cidade do perigo...

... A vida sem valor, a vida nua, enuncia-se desde que o homem soberano tenha o poder sobre a sua própria vida, desde que o suicida tenha a soberania do homem vivente sobre a sua própria existência. Rebuscar nos princípios da eugenia a vida sem valor dos velhos que adquiriram sua idiotia e das crianças que nasceram com ela, assim, leva ao riso das memórias do Doutor Fritz: eliminação da vida indigna de ser vivida (dos doentes mentais incuráveis). Leva a agonia. Assustadoramente VP (Versuchepersonem), cobaias humanas, por exemplo, para a tecnologia da guerra aérea: quando se conduziu uma VP hebréia de 37 anos a uma pressão de 12.000 metros de altitudes até menear a cabeça, após cinco minutos, cãimbras eram produzidas, entre 6 e 10 minutos, a respiração diminui a três inspirações por minuto, até que o colorido fortemente cianótico apresentou-lhe baba em volta dos lábios. Um limiar.

O paradoxo da soberania se retrata quando o soberano está dentro e fora do ordenamento jurídico, mas ele tem a decisão do estado de normalidade. O ordenamento jurídico-político é a inclusão daquilo que é expulso. O estado de exceção é o princípio de toda localização jurídica, pois só ele abre o espaço em que a fixação de um ordenamento e de um território se torna pela primeira vez possível, mas o estado de exceção é, ele mesmo, ilocalizável. O nexo entre localização e ordenamento constitui o nómos da terra e contém em seu interior uma zona ilocalizável (exceção) que age sobre o nexo como princípio de deslocamento infinito. O nomos soberano é conexo com o estado de natureza e o estado de exceção. O nexo é a localização no ordenamento. Formula-se que o estado de natureza em relação com o estado de direito resulta no estado de exceção. Somente a decisão do soberano sobre o estado de exceção pode abrir o espaço que troca até os confins com o interno e o externo e determinadas normas podem ser atribuídas a determinados territórios. A relação de exceção é um bando. O bando não é banido, mas abandonado pela lei. A lei não significa nada, mera vigência sem significado que coincide com a vida. Faz-se anedota do camponês de Kafka, que não entra na igreja porque não quer. Outro limiar e... Quem está nu? O rei, o sacerdote ou os súditos? Nesse tabuleiro de xadrez... and live and let die...

Bem-vindo ao Deserto do Real! (Slavoj Zizek)


... O resgate do soldado Ryan de Spielberg possui um semblante de desmistificação da matança generalizada da guerra. Mas trata-se de dois tipos de combates na nova ordem mundial, os quais sejam: as lutas entre homo sacer e as luta contra os USA. A distinção entre Homo Sacer e cidadão total de Agamben começa assim: um é, apesar de ser humano vivo, excluído da comunidade política. Não só os terroristas são excluídos, mas aqueles que se colocam como vítimas da ajuda humanitária: os sans papiers na França, os habitantes das favelas no Brasil e a população afro-americana nos EUA, etc. O Homo sacer é objeto da biopolítica humanitária. Reconhece-se o paradoxo dos campos de concentração e os de refugiados, onde vale a anedota de Lubitsch: ser ou não ser?

Percebe-se um problema com a noção de Homo Sacer proposta por Agamben, primeiro por estar filiada à linha da ‘dialética do esclarecimento’ de Adorno e Horkheimer e, segundo, ao poder disciplinador e do biopoder de Michel Foucault. Ao reafirmar a dimensão messiânica revolucionária, Agamben demonstra que a vida nua não é o terreno último da política, além de rejeitar espaço para o projeto democrático para renegociar o limite que separa cidadão de pleno direito e Homo Sacer. Trata-se de certa antipatia ao Muselman – sujeito dessubjetivado levado ao extremo da objetividade, morto-vivo do campo de concentração, existência do impossível, apagamento da contingência – impossibilidade absoluta de dar testemunho. Mas resta a simpatia pela criação de Zizek ao conceber a noção de Homo Otarius, aquele que manipula e explora os outros, mas que acaba por ser explorado. Esta concepção foi levada às raias dos seus múltiplos significados.

Os Refuseniks Israelitas não são apenas pacifistas, eles cumprem sua missão de lutar contra os países Árabes, porém não lutam apenas para dominar, expulsar e humilhar todo um povo. Talvez? Acaba-se por promover a estratégia judaica a qual se inscreve na máxima: “queremos que vocês resistam para poder esmagá-los”. Assim os refuseniks passam de Homo Sacer para o próximo, enquadrando-se na proposta judaico-cristã, ao tratar os palestinos não como cidadãos iguais, mas como próximos também.

Um segundo caso é o da Opus Dei (o trabalho de Deus), máfia branca da igreja com suprema obediência ao papa, tem por tarefa principal subordinar seus membros aos altos círculos políticos e financeiros. Mas estes membros geralmente escondem sua identidade com a Opus Dei. Esses fiéis adotam a perversa instrumentalização da vontade do grande Outro, onde acontecem os casos de abuso sexual de meninos por padres – generalizados da Áustria aos Estados Unidos. A Opus Dei interfere abafando os escândalos sexuais envolvendo sacerdotes. O fato que justifica é tal que se a necessidade sexual desses sacerdotes se manifesta de forma patológica, como permitir o casamento entre padres?

Capitonnage é uma operação que nos permite identificarmos um único poder que controla os fios por trás de uma multidão de adversários reais. Assim, nessa multidão, o terrorista não se posiciona entre dois adversários: o reacionário fundamentalista e o militante esquerdista. Do New York Times tira-se um título de artigo de 7 de abril de 2002 que se inscreve do seguinte modo: ‘A Cor do Terrorismo Doméstico é Verde’, não do fundamentalismo colocando em propulsão o antraz, mas os verdes que nunca matam. A mensagem da campanha de TV americana contra as drogas na primavera de 2002 que dizia que ‘quando você compra drogas, está oferecendo dinheiro para os terroristas!’ O terrorismo é um equivalente oculto de todos os males sociais.

Todas essas manobras ilustram a antipatia pelo Homo Sacer e uma construção significativa designada Homo Otarius. A paixão pelo Real como identificação com a obscenidade suja do outro lado do poder, marcando a fronteira entre o deserto do Real no Terceiro Mundo e o mundo digitalizado no Primeiro...

A Professora de Piano de Michael Haneke que, apesar de desejar servir ao Outro em seu masoquismo, é ela própria quem define as regras de sua servidão... A impressão que fica desse filme franco-austríaco é tamanha! Mais que isso, esse texto é menos um romance Real do que a imagem dos USA se transformando, na sua fantasia paranóica, em plasma cinematográfico!

sábado, 22 de novembro de 2008

Estado de Exceção (Giorgio Agamben)


O Estado de Exceção é o ponto de desequilíbrio entre o direito público e o fato político, assim como a guerra civil, a insurreição e a resistência estão na intersecção entre o jurídico e o político. A exceção é o dispositivo em que o direito se refere a vida e a inclui por meio de sua suspensão – o abandono do vivente ao direito. Difícil definição essa de Estado de Exceção, por sua estreita relação com a resistência, a guerra civil e a insurreição. O totalitarismo instaura sim (por meio do Estado de Exceção) uma guerra civil que permite eliminar os adversários políticos, os inimigos. O Estado de Exceção e a ‘military order’, acontecida nos EUA, no ano 2001, autoriza a detenção de não-cidadãos aos terroristas. Anulação do estatuto jurídico do indivíduo como juridicamente inominável e inclassificável, como o caso dos talibãs. O Estado de Exceção define seu limite enquanto há a suspensão da própria ordem jurídica.

Trata-se dos plenos poderes, da ampliação dos poderes executivos que promulgam decretos com força de lei. O Estado de Exceção é a constituição de ‘vazios de direito’ e são, assim, plenos poderes que o caracteriza de modo que há a abolição da distinção entre legislativo, executivo e judiciário. Como se o Estado de Exceção fosse a divisão entre o ordenamento que regulamenta e o ordenamento sem regulamentação. O choque entre o direito de resistência e o Estado de Exceção, ou seja, a suspensão dos direitos da constituição e o poder parlamentar ou soberano de regulamentação. Sob o paradigma do Estado de Exceção, toda a vida político-constitucional das sociedades ocidentais toma nova forma. A Primeira Guerra Mundial e os anos que a sucederam foi um laboratório de experimentação dos dispositivos funcionais do Estado de Exceção, como se a ditadura constitucional fosse um meio de alternação entre formas democráticas de governo. A França de De Gaulle, a Alemanha de Hitler, a República de Weimar com uma ditadura constitucional como uma fase de transição que conduz ao regime totalitário.

Demonstra-se um modelo em miniatura do estado de exceção: o ‘iustitium’ romano. O ‘iustitium’ é uma interrupção ou suspensão do direito, uma produção de vazio jurídico. O que promove uma suspensão do direito e põe de lado todas as prescrições jurídicas – nenhum cidadão romano tem poderes ou deveres (férias jurídicas). Assim, o poder ilimitado provém da suspensão das leis que limitam os poderes. O estado de exceção não se define como plenitude de direitos (ditadura), mas se define como um ‘vazio e interrupção do direito’.

Há outra manifestação do Estado de Exceção na teoria do soberano como ‘lei viva’ (nomos empsychos) o que naturaliza a anomia do poder supremo. A fórmula nomos empsychos que faz a conexão lógica com o caráter anômico do soberano: o rei mais justo é mais legal; não há ‘sem rei sem justiça’, mas há justiça sem lei; justo causa o soberano (lei viva). O Rei se aproxima de Deus. O nomos empsychos origina o nexo estabelecido pelo Estado de Exceção entre fora/dentro da lei: arquétipo da teoria moderna da soberania. Portanto, totalitarismo, iustitium e nomos empsychos podem ser as três maiores ilustrações do Estado de Exceção.

Império (Michael Hardt e Antonio Negri)


Para compreender o “Império” é necessário analisar a produção biopolítica como uma concepção conceitual que passa, pelo menos, por três abordagens: a) a passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de controle; b) o biopoder; c) a biopolítica através das corporações e a comunicação. Primeiramente, no que diz respeito à sociedade disciplinar, o comando social se realiza a partir de uma rede difusa de dispositivos que produzem e regulam os costumes, hábitos e práticas produtivas; há obediência às regras e mecanismos de inclusão/exclusão, por meio de instituições disciplinares; o poder disciplinar se manifesta sancionando e prescrevendo comportamentos entre normal-desviantes. Foucault relacionava o surgimento das disciplinas ao antigo regime francês, mas Hardt e Negri associaram o dispositivo disciplinar à primeira fase de acumulação capitalista. Enfim, sobre a sociedade de controle, os mecanismos de poder se tornam mais ‘democráticos’ e imanentes ao campo social, distribuídos por corpos e cérebros; os comportamentos de integração e exclusão são mais interiorizados; o poder é exercido mediante máquinas que organizam o cérebro (sistemas de comunicação, redes de informação) e os corpos (sistemas de bem-estar, atividades monitoradas); caracteriza-se por intensificação e síntese dos aparelhos de normalização e disciplinaridade; o controle se estende bem para fora dos locais institucionais, mediante redes flexíveis e flutuantes. Não se trata apenas da distinção entre essas duas formas de controle social. Há também a distinção entre biopoder e biopolítica.

O Biopoder é uma forma de poder que regula a vida social por dentro, acompanhando-a, interpretando-a, absorvendo-a e a rearticulando. Só a sociedade de controle está apta a adotar o contexto biopolítico como terreno exclusivo de referência. O biopoder é definido como conjunto de tecnologias de poder que marcam a passagem das sociedades de disciplina para as sociedades de controle. A lógica do biopoder era parcial nas sociedades disciplinares, pois sua lógica era fechada, geométrica e quantitativa. O poder se expressa como um controle que se estende pela consciência e pelos corpos da população, através da totalidade das relações sociais.

A Biopolítica se exprime com o imperialismo. A partir da segunda metade do século XX as corporações transnacionais começam a estruturar biopoliticamente territórios globais, constroem o tecido conectivo fundamental do ‘mundo biopolítico’. Estas corporações ocupam o lugar do imperialismo, mas este lugar foi transformado pela nova realidade do capitalismo. As atividades das corporações são definidas por estruturarem e articularem territórios e populações. O complexo aparelho que seleciona investimentos determina uma nova geografia do mercado mundial, ou a nova estruturação biopolítica do mundo. No plano global, cada figura biopolítica aparece monetária. As grandes potências industriais e financeiras produzem mercadorias e subjetividades (produzem necessidades, relações sociais, corpos e mentes). Localizam a produção biopolítica na produção de linguagem, comunicação e do simbólico. A comunicação expressa e organiza o movimento de globalização, além de guiar o imaginário. O poder é formado imanente às relações sociais. A comunicação é coexistente ao contexto biopolítico. A síntese política de espaço social é fixada no espaço da comunicação. A linguagem comunica e produz mercadorias, cria subjetividade e põe umas em relações coma s outras e as ordena.

No pós-guerra, as políticas imperialistas dos países capitalistas dominantes foram transformadas como resultado do projeto de reforma econômica e social e hegemônica dos EUA. A nova cena global foi organizada em torno de três mecanismos: 1) o processo de descolonização que recompôs o mercado mundial em linhas hierárquicas a partir dos EUA; 2) a descentralização gradual dos locais e dos fluxos de produção; 3) a construção de relações internacionais que espalhou pelo globo a Rede Disciplinar em sucessivas evoluções. No entanto a resistência a essa Rede Disciplinar se inscreve não no Império, mas na multidão.