domingo, 23 de novembro de 2008

Bem-vindo ao Deserto do Real! (Slavoj Zizek)


... O resgate do soldado Ryan de Spielberg possui um semblante de desmistificação da matança generalizada da guerra. Mas trata-se de dois tipos de combates na nova ordem mundial, os quais sejam: as lutas entre homo sacer e as luta contra os USA. A distinção entre Homo Sacer e cidadão total de Agamben começa assim: um é, apesar de ser humano vivo, excluído da comunidade política. Não só os terroristas são excluídos, mas aqueles que se colocam como vítimas da ajuda humanitária: os sans papiers na França, os habitantes das favelas no Brasil e a população afro-americana nos EUA, etc. O Homo sacer é objeto da biopolítica humanitária. Reconhece-se o paradoxo dos campos de concentração e os de refugiados, onde vale a anedota de Lubitsch: ser ou não ser?

Percebe-se um problema com a noção de Homo Sacer proposta por Agamben, primeiro por estar filiada à linha da ‘dialética do esclarecimento’ de Adorno e Horkheimer e, segundo, ao poder disciplinador e do biopoder de Michel Foucault. Ao reafirmar a dimensão messiânica revolucionária, Agamben demonstra que a vida nua não é o terreno último da política, além de rejeitar espaço para o projeto democrático para renegociar o limite que separa cidadão de pleno direito e Homo Sacer. Trata-se de certa antipatia ao Muselman – sujeito dessubjetivado levado ao extremo da objetividade, morto-vivo do campo de concentração, existência do impossível, apagamento da contingência – impossibilidade absoluta de dar testemunho. Mas resta a simpatia pela criação de Zizek ao conceber a noção de Homo Otarius, aquele que manipula e explora os outros, mas que acaba por ser explorado. Esta concepção foi levada às raias dos seus múltiplos significados.

Os Refuseniks Israelitas não são apenas pacifistas, eles cumprem sua missão de lutar contra os países Árabes, porém não lutam apenas para dominar, expulsar e humilhar todo um povo. Talvez? Acaba-se por promover a estratégia judaica a qual se inscreve na máxima: “queremos que vocês resistam para poder esmagá-los”. Assim os refuseniks passam de Homo Sacer para o próximo, enquadrando-se na proposta judaico-cristã, ao tratar os palestinos não como cidadãos iguais, mas como próximos também.

Um segundo caso é o da Opus Dei (o trabalho de Deus), máfia branca da igreja com suprema obediência ao papa, tem por tarefa principal subordinar seus membros aos altos círculos políticos e financeiros. Mas estes membros geralmente escondem sua identidade com a Opus Dei. Esses fiéis adotam a perversa instrumentalização da vontade do grande Outro, onde acontecem os casos de abuso sexual de meninos por padres – generalizados da Áustria aos Estados Unidos. A Opus Dei interfere abafando os escândalos sexuais envolvendo sacerdotes. O fato que justifica é tal que se a necessidade sexual desses sacerdotes se manifesta de forma patológica, como permitir o casamento entre padres?

Capitonnage é uma operação que nos permite identificarmos um único poder que controla os fios por trás de uma multidão de adversários reais. Assim, nessa multidão, o terrorista não se posiciona entre dois adversários: o reacionário fundamentalista e o militante esquerdista. Do New York Times tira-se um título de artigo de 7 de abril de 2002 que se inscreve do seguinte modo: ‘A Cor do Terrorismo Doméstico é Verde’, não do fundamentalismo colocando em propulsão o antraz, mas os verdes que nunca matam. A mensagem da campanha de TV americana contra as drogas na primavera de 2002 que dizia que ‘quando você compra drogas, está oferecendo dinheiro para os terroristas!’ O terrorismo é um equivalente oculto de todos os males sociais.

Todas essas manobras ilustram a antipatia pelo Homo Sacer e uma construção significativa designada Homo Otarius. A paixão pelo Real como identificação com a obscenidade suja do outro lado do poder, marcando a fronteira entre o deserto do Real no Terceiro Mundo e o mundo digitalizado no Primeiro...

A Professora de Piano de Michael Haneke que, apesar de desejar servir ao Outro em seu masoquismo, é ela própria quem define as regras de sua servidão... A impressão que fica desse filme franco-austríaco é tamanha! Mais que isso, esse texto é menos um romance Real do que a imagem dos USA se transformando, na sua fantasia paranóica, em plasma cinematográfico!

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