quarta-feira, 26 de novembro de 2008

O Normal e o Patológico (Georges Canguilhem)


Trata-se de uma tese de doutorado em Medicina publicada em 1943, em que os fenômenos patológicos são fenômenos normais perseguidos por variações quantitativas. Nas práticas hipocráticas, na medicina grega, oferece-se uma concepção não mais ontológica, mas sim dinâmica da doença, onde a harmonia entre o equilíbrio e o desequilíbrio está em questão. Só com Morgagni, na viragem dos séculos XVII-XVIII, o patológico é designado a partir do normal. Restaurar o normal acaba por anular o patológico. É no patológico que se realiza o ensinamento da saúde. Apenas no século XIX que os fenômenos normais e patológicos alcançam sua identidade real, dogma cientificamente garantido. Com caráter de identidade conceitual em Augusto Comte e numérico, quantitativo em Claude Bernard. Por um lado, em Comte, o caminho que se percorre é do patológico para o normal, o que se tem que especular são as leis do normal. Por outro, em Claude Bernard, percorre-se do normal para o patológico para criar uma ação racional sobre o patológico.

Augusto Comte chama de ‘princípios de Broussais’ um alcance universal na ordem dos fenômenos biológicos, psicológicos e sociológicos. Broussais explica que toda doença é um excesso ou falta de excitação dos tecidos abaixo ou acima do grau que consiste o estado normal. Todas as doenças são apenas sintomas e as perturbações das funções vitais produzem lesões de órgãos e de tecidos. Comte usa o axioma geral de Broussais: qualquer modificação (artificial ou natural) da ordem real diz respeito somente à intensidade dos seus fenômenos correspondentes, assim os fenômenos da doença coincidem com os fenômenos da saúde, mas difere apenas na intensidade.

Claude Bernard destacou a continuidade entre o normal e o patológico e usa indiferentemente duas expressões que são variações quantitativas e diferenças de grau, isto é, utiliza dois conceitos: homogeneidade e continuidade. Os Fenômenos patológicos são qualitativos e quantitativos, de acordo com o ponto de vista em que nós nos colocarmos, conforme consideramos o fenômeno vital em sua expressão e seu mecanismo. A doença é vista pela sua qualidade e por sua quantidade. Já uma função é tida por normal quando ela for independente dos efeitos que a produz. Para Claude Bernard a patologia é inseparável da fisiologia. De modo tal que a medicina é uma arte de viver, ou seja, uma terapêutica que supõe uma patologia experimental. A doença é uma violação do organismo, um evento resultante da ação das funções permanentes do organismo. O fato patológico é uma alteração do estado normal, a fisiologia das funções está diante de fatos patológicos devido às informações clínicas prévias. A patologia (anatômica ou fisiológica) é o estudo dos mecanismos da doença, ela pouco considera que a doença é uma forma diferente de vida para o doente. A doença é uma forma diferente de vida.

Se na clínica o que se questiona é a relação médico/doente, com Leriche o que está em jogo é a relação doente/doença. Para Leriche o que importa é a opinião do doente em relação à realidade de sua própria doença. Trata-se da doença sob a consciência do doente, sob o seu ponto de vista. Como um doente que morreu de acidente sem ter consciência de um câncer. É a doença do ponto de vista do doente o conceito mais adequado.

O homem doente serve para o conhecimento do homem normal. O estudo da doença tende a ser um elemento essencial da fisiologia normal. Para Comte, o estado normal precede o patológico, diferentemente, Leriche destacou que a fisiologia é revelada pela doença. A doença como modo de vida. Exprime uma relação entre o ser vivo e o meio. A anomalia e a mutação não são patológicas: exprimem outras normas possíveis. O patológico é uma norma biológica diferente, mas repelida pela vida. Portanto, o estado normal de um ser vivo se transcreve na relação normativa, impondo novas normas, a determinados meios.

Nenhum comentário: